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O dia em que a albiceleste conquistou o mundo

Há 33 anos a Argentina batia a Holanda por 3 a 1 e conquistava seu primeiro título mundial. Para muitos brasileiros isso pode parecer surpreendente, mas esse título não se deveu apenas ao fato de os peruanos possivelmente terem entregue aquele famoso jogo. Havia muito mais coisas envolvidas naquele momento.

Pessoas mais jovens podem estranhar, mas a grande verdade é que foi só naquela decisão é que a albiceleste passou a ser uma seleção mundialmente respeitada. Na realidade a seleção argentina não tinha nenhuma tradição em mundiais, ainda que tivesse grande desempenho nos torneios regionais. Desde o vice nas Olimpíadas de 1928 e no Mundial de 1930 a albiceleste jamais havia tido performances expressivas nos torneios de nível mundial.

Depois de 1930 a Argentina participou de apenas 5 mundiais (1934, 1958, 1962, 1966 e 1974). Em nenhum deles chegou entre os quatro primeiros. Foram 17 partidas, com apenas 5 vitórias, 4 empates e 8 derrotas. Bons jogadores não f altavam, mas a seleção sempre esbarrava em problemas de organização. Agora, em casa, o vexame não poderia se repetir.

A história começa logo após o mundial de 1974, quando César Luis Menotti foi escolhido treinador da seleção. El Flaco tinha apenas 3 anos de carreira, todos no Huracán, clube que conduziu a seu único título na era do profissionalismo. Sua defesa do jogo bonito e do estilo clássico argentino desagradou a muitos, mas soava como música aos ouvidos do nacionalismo peronista, então no poder.

Menotti surpreendeu. Relegou a segundo plano ídolos históricos dos maiores clubes argentinos (como Ricardo Bochini, do Independiente, e J. J. López, do River Plate) e valorizou jogadores jovens, muitos de clubes pequenos e do interior. Como resultado, entre os jogadores que começaram a grande decisão de 33 anos atrás havia nomes como Luis Galvan, do Talleres de Córdoba, e Americo Gallego, do Newell’s Old Boys.

A seleção que começou o mundial não era nenhuma unanimidade. E para piorar havia ainda a violentíssima ditadura, que vivia então o auge do terror. Criticado externamente, e temerosa de passar uma imagem negativa, e temendo ser atacado pela ausência de direitos humanos, o regime inventou então o lema que marcaria aquele mundial: “somos direitos e somos humanos”.

Uma grande campanha de teor nacionalista tomou conta do país, visando convencer a população a apoiar a seleção como forma de expressar seu patriotismo. Um dos grandes nomes era José Maria Muñoz, popularíssimo narrador da Rádio Rivadávia, que apoiava o regime dos generais e se engajou na defesa da “pátria de chuteiras”. Com isso, se transformou na voz emblemática daquele mundial. Para o bem e para o mal.

O mais irônico de tudo, é que todos sabiam perfeitamente que aquela era uma seleção “peronista”, por assim dizer. Para os argentinos é impossível separar o futebol da política, e o estilo vistoso e cadenciado defendido por Menotti se alinhava com o antiimperialismo peronista, no sentido de ser uma resistência à invasão do estilo europeu.

Essa ambiguidade se eternizaria no futebol argentino, já que em 1986 a albiceleste ganharia seu segundo título, em um contexto de redemocratização e liberdade, mas com um futebol mais europeizado (genialidade maradoniana à parte). Assim, o nacionalismo argentino abraçou uma seleção que jogava “à européia” e repudiou outra que jogava “à argentina”, já que a seleção de 1978, por mais que jogasse à moda nacional, passou a ser associada ao terrorismo de Estado vigente naqueles anos.

Assim, há 33 anos havia uma grande divisão no país, uma divisão que se manifestava no interior de cada argentino. De um lado o ódio ao regime, à tirania, ao terrorismo de Estado, aos sequestros e execuções, e o ódio ao fato de a vitória da albiceleste servir para legitimar isso tudo. De outro, Menotti e seus jogadores, que não tinham culpa nenhuma em nada disso, jogaram um futebol bonito, ao melhor estilo argentino tradicional, e deram ao país que tanto ama o futebol seu primeiro título mundial.

Até hoje esse mundial é visto com essa mesma carga de ambiguidade pela grande maioria dos argentinos. De um lado, o orgulho pela seleção conquistar finalmente o mundo mostrando que o estilo de futebol jogado no país poderia vencer qualquer adversário. De outro, a vergonha de saber que esse fato tão espetacular serviria para ajudar os protagonistas do capítulo mais negro da história argentina.

Mas uma coisa é certa. Quando o genial Mario Kempes marcou os seus gols naquele dia, qualquer consideração política deve ter ido por água abaixo. Mesmo o mais fanático opositor ao regime deve ter berrado e se emocionado. E com toda a razão.

Tiago de Melo Gomes

Tiago de Melo Gomes é bacharel, mestre e doutor em história pela Unicamp. Professor de História Contemporânea na UFRPE. Autor de diversos trabalhos na área de história da cultura, escreve no blog 171nalata e colunista do site Futebol Coletivo.

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