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Futebol e Rugby – Parte 5: o Belgrano Athletic Club

Manuel Belgrano é um dos principais nomes da história argentina. Foi um dos líderes do movimento pela independência do Vice-Reino do Rio da Prata (o território espanhol que deu origem à Argentina, Paraguai, Uruguai e Bolívia) e um dos membros da Primera Junta governamental da Argentina; hoje, ele jaz em um mausoléu no átrio da Basílica de Nuestra Señora del Rosario, igreja situada no bairro portenho de Monserrat.

Naturalmente, seu nome batizou diversas coisas na Argentina, e o esporte não foi exceção; duas delas estiveram de certa forma na mídia recentemente: o Belgrano, equipe da cidade de Córdoba, provocou em junho o inédito e tumultuado rebaixamento do River Plate, cujo estádio, o Monumental de Núñez, situa-se na realidade no bairro portenho de Belgrano, e não no vizinho Núñez; também no bairro de Belgrano (que fora originalmente uma cidade separada), há o pequeno Excursionistas, que tem como rival o também pequeno Defensores de Belgrano – que, em situação inversa à riverplatense, encontra-se de fato em Núñez.

Mais antigo do que todos esses (e também que o time de rúgbi Club Manuel Belgrano) é o objeto deste especial: o Belgrano Athletic Club, fundado em 1896 no bairro que lhe deu o nome como fusão do Saint Lawrence’s Football Club e do time da Buenos Aires and Rosario Railway (equipe que competira nos campeonatos de 1891, 1893 e 1894). No mesmo ano, disputou seu primeiro campeonato argentino de futebol; ficou em quarto lugar dentre cinco participantes, mas somente quatro pontos atrás da campeã Lomas Academy, em um torneio bastante equilibrado.

No certame seguinte, disputou com um time A e um B, à semelhança do que o Lomas Athletic fizera anteriormente (como visto no especial “futebol e rugby” dedicado a tal clube, a Lomas Academy era um time B deste). Este concorrente seria o campeão, com um ponto à frente do time A do Belgrano. O time B ficou em penúltimo, não durando para o campeonato seguinte, novamente vencido pelo Lomas.

Em 1899, dois fatos marcaram. No futebol, o Belgrano enfim quebrou a série de conquistas lomenses, faturando o campeonato argentino. O primeiro conjunto vencedor foi formado pelos titulares R.D. Barker; A.C. Addecott, G.L. Macfarlane, J.W. Baldock, Eduardo Duggan, E. Roy; Jorge e Carlos Dickinson (irmãos), F.C. Wibberley, Percy Hooton (artilheiro do certame) e G. Stalker, em um empate sem gols que lhes favoreceu diante do Lobos Athletic, o outro postulante ao título e que com o resultado permaneceu dois pontos atrás; o empate com o Lobos somou-se a cinco vitórias nas cinco partidas anteriores que fizeram do Belgrano um campeão invicto.

Além de obter tal conquista, em 1899 ele também fundou a União de Rúgbi do Rio da Prata, ao lado do mesmo Lomas, do Rosario Athletic e do Flores Athletic (outros que também praticavam simultaneamente o futebol) e do Buenos Aires FC (já um clube exclusivo de rúgbi, apesar do nome; foi o objeto do primeiro especial desta série).

Nos dois esportes, todavia, os torneios argentinos foram sendo dominados por outras equipes no início do novo século: o Buenos Aires empilhava os de rúgbi, enquanto os de futebol iriam para o Alumni, rival de bairro do Belgrano Athletic: este outro clube, tratado no especial “futebol e rugby” anterior, era o da Buenos Aires English High School, escola situada em Belgrano.

Essa rivalidade com o Alumni, embora dotada de cavalheirismo britânico, inaugurou uma tendência a ser seguida por outras equipes portenhas, com novos clássicos se originando por conta da vizinhança em um bairro ou entre bairros próximos. As rixas de Boca Juniors e River Plate, por exemplo, iniciaram-se por conta de os dois terem sido fundados no bairro de La Boca, bem antes de essas duas equipes – coincidentemente – tornarem-se poderosas e as mais influentes da Argentina (mais detalhes disso neste outro especial do Futebol Portenho).

Time do Belgrano Athletic Club campeão da Copa Competencia de 1900, edição inaugural do primeiro torneio interclubes americano

Em 1900, o Belgrano tornou-se o primeiro time argentino (e sul-americano) a obter um título internacional. Naquele ano, clubes das associações argentina e uruguaia e alguns rosarinos mediram forças na primeira edição da Copa Competencia, torneio de caráter eliminatório promovido por Francis Chevallier Boutell (por isso, a competição era oficialmente chamada Competencia Chevallier Boutell), presidente da associação argentina (e, posteriormente, também da União de Rúgbi do Rio da Prata).

Na campanha, superou o Lomas nas quartas-de-final, os uruguaios do Albion (time que promoveria no ano seguinte o primeiro Argentina x Uruguai, em jogo de validade contestada; a  AFA, entretanto, o reconhece como o primeiro da seleção argentina, em questão melhor abordada no referido especial do Lomas) em Montevidéu nas semifinais e, na decisão, bateu por 2 x 0 o Rosario Athletic.

Este adversário devolveria nos dois anos seguintes, eliminando-o nas semifinais. No campeonato argentino, as taças iam se acumulando na galeria do Alumni. Para piorar, na Copa de 1903, os arquirrivais de bairro enfrentaram-se nas quartas-de-final, com o Belgrano caindo por 1 x 6. O time também foi eliminado no jogo inicial da Copa de 1904, para o Barracas Athletic. Em compensação, naquele ano interrompeu a série de conquistas do Alumni na liga, obtendo, e novamente de forma invicta, o seu segundo troféu nacional no futebol.

O endereço, a concorrência, a origem britânica e as convocações para a Seleção Argentina não eram os únicos fatores que aproximavam ambos: o ponta-esquerda belgranense Wilfred Stocks era casado com a irmã de Arnold Watson Hutton, atacante do Alumni que posteriormente viria a jogar futebol no Belgrano, após seu time se extinguir em 1912 (o volante Arturo Jacobs também veio ao Belgrano após o fim do futebol no Alumni); cada rival também contava com um irmão Dickinson: Alfredo era alvirrubro e Carlos, auricastanho. Ambos defenderam a Argentina, mas curiosamente também jamais jogaram juntos por ela.

Além disso, alguns adversários antes e depois de suas disputas nos clássicos tratavam-se como irmãos no interior de lojas maçônicas, no que foi comprovado em relação ao mesmo Stocks, Arturo Forrester (futuro presidente do Belgrano), Haroldo Grant e Jorge Howard, assim como muitos membros do Alumni.

Também jogaram pela Argentina, como todos estes mencionados jogadores acima, Eduardo Duggan, A. Addecot, Jorge e Carlos Dickinson, Harold Ratcliff (que estiveram naquele jogo de 1901, fazendo do Belgrano Athletic a equipe mais presente entre os argentinos ali; os quatro primeiros eram integrantes do time campeão de 1899), Pablo Frers, Ángel Mallen, Martín Murphy, J. Penco, J.B. Sheridan, Horacio Vignoles (curiosamente, um uruguaio), Charles Whaley e Juan Wood.

Whaley foi outro a ter se sagrado artilheiro (em 1906), assim como também Herbert Dorning (1901). E, como o arquirrival, o Belgrano também reunia famílias: E. e F. Wibberley, E. e T. Ibbetson, Arturo e Norman Forrester e A. e Pablo Frers foram outros pares de irmãos presentes em elencos do Athletic, além dos mencionados Carlos e Jorge Dickinson.

Elenco campeão nacional de 1908, último título do Belgrano no futebol. Em pé: C. East, Juan Wood, H. Stocks, Harold Ratcliff e Juan Pena; sentados: Urbano Fernández, Arturo Forrester, Charles Whaley, A. Morgan e F. Dickinson; no chão: Martín Murphy e C. Lester

Em 1905, o time B logrou o acesso à elite, onde competiria como Belgrano Athletic Extra. No mesmo ano, um novo torneio internacional foi criado: a Copa Honor, similar à Competencia, mas com final em jogo único em Montevidéu – o que fez sua conquista ser mais valorizada pelos competidores do lado ocidental do Rio da Prata.

Após anos de decepções (o Extra logo foi rebaixado, o Alumni emendou novos títulos na liga argentina e goleou o rival por 10 a 1 na final da Competencia de 1906), em 1907 o Belgrano venceu a Copa Honor sobre o CURCC (Central Uruguayan Railway Cricket Club, o time que deu origem ao Peñarol), e faturou seu primeiro campeonato de rúgbi. No ano seguinte, conseguiu seu terceiro campeonato argentino, com o especial sabor de garantir o título com uma vitória sobre o Alumni no campo do rival.

No rúgbi, o Belgrano obteve novo título em 1910, com o gosto a mais de ser no ano em que a Revolução de Maio (movimento que desencadeou a independência do Vice-Reino do Rio da Prata) completava seu centenário, homenageado pela comunidade britânica de Buenos Aires, da qual os membros do clube faziam parte, com a torre-relógio do bairro de Retiro (conhecida popularmente como Torre de los Ingleses e, desde a Guerra das Malvinas, oficialmente como Torre Monumental).

Entre os campeões, haviam aqueles que também praticavam futebol: os cunhados Stocks e Watson Hutton (que, neste esporte, ainda jogava pelo Alumni, que só viria a praticar rúgbi décadas mais tarde). Stocks foi ainda árbitro auxiliar do primeiro jogo da Seleção Argentina de Rúgbi, também ocorrido em 1910. Do Belgrano, o selecionado chamou para a partida inaugural os jogadores L. Gribbell, C.J. MacCarthy, J.F. Saffery e W.A. Watson, que seriam campeões com o clube semanas mais tarde.

Já no futebol, a última alegria foi aquela de 1908; o time não conseguiu mais postular seriamente aos títulos dos torneios que se seguiram, com más campanhas se sucedendo, seja por colocações medianas no campeonato argentino, seja por eliminações precoces nas Copas. Até que a penúltima colocação na liga de 1916 resultou no rebaixamento do Belgrano. Semelhantemente ao que ocorrera com o Lomas Athletic em 1909, o descenso decretou o fim da equipe de futebol.

À esquerda, Belgrano x San Isidro (esta foi a primeira capa que a El Gráfico dedicou ao rúgbi); à direita, contra o CUBA

E, também da mesma forma que quanto aos lomenses, isso não veio a significar títulos em série no rúgbi: a equipe teve nos anos seguintes dura concorrência com o Club Universitario de Buenos Aires e, principalmente, com o San Isidro (outro oriundo do futebol). A imagem acima mostra as duas El Gráfico em que o Belgrano Athletic (identificado pelas calças brancas) esteve na capa, com cada uma retratando justamente disputas com estes dois oponentes.

Com isso, o Belgrano ficou tendo conquistas bissextas na URBA (entidade sucessora da União de Rúgbi do Rio da Prata). Até hoje, foram dez no total, a última em 1968, dividida com o CUBA. Ainda é o quarto maior vencedor do torneio. Curiosamente, dois anos após seu último título, passou a reeditar, no rúgbi, os seus clássicos contra o Alumni. O arquirrival detém mais vitórias nos encontros diretos, mas ainda possui metade das taças reunidas pelo Belgrano.

Do clube, que se dedica também ao hóquei sobre grama, saíram as duas maiores personalidades argentinas de cada esporte: Lisandro Arbizu, ex-capitão e recordista de jogos pelos Pumas (87 entre 1990 e 2005 e participante das três Copas do Mundo realizadas na década de 90) e Magdalena Aicega (capitã das Leonas, a celebrada seleção feminina de hóquei).

A instituição, hoje sediada na cidade de Virrey del Pino (no partido de La Matanzas, a oeste da capital federal), foi co-fundadora também das associações argentinas de tênis, críquete, boliche e squash, onde também mantém atividades.

Elenco recente do Belgrano Athletic Club

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Sobre o último jogo dos Pumas, o selecionado entrou em campo com a Geórgia já praticamente classificado: o adversário já se encontrava eliminado e o principal concorrente argentino pela segunda e última vaga do grupo, a Escócia, já havia sido derrotada pela arquirrival Inglaterra. Depois de um susto ao fim do primeiro tempo, quando os georgianos empataram a partida no minuto final com um try e o chute de conversão do mesmo (deixando o placar em 7 a 7), a Argentina aniquilou a equipe do Cáucaso sem maiores dificuldades na segunda etapa.

O escore final terminou em 25 a 7 para nossos vizinhos, no que selou sua classificação às quartas-de-final. O problema é que nela irão encarar a favoritíssima Nova Zelândia, equipe mais temida do esporte e sedenta por um título que não lhe vem há 24 anos, e que ainda por cima é a anfitriã desta edição da Copa do Mundo.

Argentina: Lucas González Amorosino (Martín Rodríguez), Horacio Agulla, Marcelo Bosch, Felipe Contepomi (Agustín Gosio), Juan José Imhoff, Santiago Fernández, Nicolás Vergallo (Alfredo Lalanne), Leonardo Senatore (Genaro Fessia), Juan Manuel Leguizamón, Julio Farías Cabello, Patricio Albacete, Mariano Galarza (Tomás Vallejos), Juan Figallo (Martín Scelzo), Mario Ledesma (Agustín Creevy) e Marcos Ayerza. Técnico: Santiago Phelan.

Geórgia: Malkhaz Urjukashvili (Merab Kivirikashvili), Lekso Gugava (Lasha Malaguradze), Davit Kacharava, Tedo Zbzibadze, Aleksandre Todua, Lasha Khmaladze, Irakli Abuseridze (Bidzina Samkharadze), Mamuka Gorgodze, Viktor Kolelishvili, Giorgi Chkhaidze, Vakhtang Maisuradze (Ilia Zedginidze), Levan Datunashvili (Giorgi Nemsadze), Davit Kubriashvili, Akvsenti Giorgadze (Jaba Bregvadze) e Vasil Kakovin (Goderdzi Shvelidze). Técnico: Richard Dixon.

Georgianos comemorando o try de Khmaladze. Depois do susto, os argentinos recuperaram-se na segunda etapa e garantiram a vaga com certa facilidade

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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