Rugby

História dos Pumas – Parte I: Primórdios

Mold, Gribbell, Wilfred Stocks (que foi bandeirinha), Hayman e Donnelly; Sawyer, Maitland Heriot, St. John Gebbie, Bover, MacCarthy e Saffery; Talbot, Watson, Reid e Henrys. Na foto que reúne os primeiros jogadores da seleção argentina (então azul marinha), faltou apenas Heatlie

Ao meio-dia deste sábado de 18 de agosto, pelo horário de Brasília, a Argentina enfim fará sua estreia no torneio que desde 1996 reúne anualmente as melhores seleções de rúgbi do hemisfério sul. Com a entrada hermana, o antigo Três Nações, composto pelas bicampeãs do mundo África do Sul, Austrália e Nova Zelândia, torna-se Quatro, com o nome oficial de Rugby Championship. O jogo, a ser transmitido ao vivo pela ESPN + (antiga ESPN HD), será contra os sul-africanos. No embalo, começamos esta minissérie sobre a história dos Pumas, cujos primórdios teve a participação justamente de um Springbok.

Uma seleção argentina foi reunida pela primeira vez em 1910, onze anos após o início de um campeonato local. O título do certame, àquela altura, continuava restrito aos “quatro fundadores”: Buenos Aires FC (sobre quem fizemos, semana passada, um aperitivo para esta série), Belgrano AthleticLomas Athletic e Rosario Athletic possuíam ao menos um cada (houve um quinto fundador, o Flores Athletic, mas este participara apenas da inaugural edição de 1899).

Mas, depois de cerca de uma década, já haviam ocorrido mudanças significativas. Todos estes clubes nasceram no seio da comunidade britânica e chegaram a disputar o campeonato argentino de futebol, existente desde 1891. Conforme decaíam nele e o viam ser cada vez mais adotado por criollos (descendentes de espanhóis) e outros imigrantes, foram se fixando na bola oval. Porém, mesmo em 1899, jogadores de nomes L.P. Ponce e J. Negrón competiram, pelo Flores.

E, em 1910, já haviam equipes “hispânicas” aplicando tackles e hand offs, formando rucks e scrums, alcançando tries e marcando drop goals. O primeiro deles foi o a da Faculdade de Engenharia, em 1904, que tinha em seus quadros ninguém menos que o pioneiro da aviação argentina e hoje nome do aeroporto doméstico de Buenos Aires, Jorge Newbery – falamos sobre ele e sua bela ligação com o Huracán aqui. Dois anos depois, vieram os da Faculdade de Direito e da de Medicina, cujo time contava com Bernardo Houssay, futuro prêmio Nobel em 1947.

A equipe da Faculdade de Engenharia foi a primeira criolla no rúgbi argentino. Contou com Jorge Newbery, pai da aviação nacional

O mais importante destes novatos, inicialmente, foi o Gimnasia y Esgrima de Buenos Aires. Inscreveu-se em 1908 e já ali venceu a segunda divisão. Também naquele ano, a pedido dele e do referido Bernardo Houssay, as atas e regramentos da River Plate Rugby Union passaram a ter versões também em castelhano. Em 1909, após mandatos de Leslie Corry Smith, Francis Chevallier Boutell, James Oswald Anderson, Maurice Gilderdale e Robert Anderson, o órgão teve como sexto presidente o senhor Mariano Paunero, ex-integrante do time dos engenheiros.

1909 marcou ainda a única participação do Quilmes em um torneio de rúgbi. Originalmente anglo-argentino, com seu título de 1912 no futebol sendo o último da era britânica, ironicamente foi representado quase que inteiramente por latinos: D. Castro Videla, M. Fernández, E. Lagos, R. Crespo, R. Jiménez, A. Pividal, A. Williams, L. Guerrico, A. Acevedo, R. Onetto, C. Moy e A. Levanti, A. Woodhouse, A. del Campo Wilson, J. del Campo Wilson e J. Lanusse foram alguns rugbiers cerveceros.

Não obstante, o primeiro elenco da seleção foi todo anglo-saxão. Foi reunido por ocasião do centenário da Revolução de Maio, movimento que desencadeou a independência do Vice-Reino do Rio da Prata, o território espanhol que daria origem à Argentina, Bolívia, Paraguai e Uruguai. Robert Anderson, antes de ceder o cargo a Mariano Paunero, conseguira convencer ninguém menos que a seleção das Ilhas Britânicas para participar das festividades.

Tal selecionado, conhecido atualmente como British and Irish Lions, reúne atletas das quatro nações do Reino Unido, sendo utilizado para celebradas turnês de amistosos. Ainda hoje, mesmo para um irlandês, escocês ou galês (e, é claro, também para um inglês), ser convocado para uma gira leonina é tão honroso quanto sê-lo para uma Copa do Mundo – diferentemente do que se viu nas Olimpíadas de 2012 com o Team GB de futebol, vale dizer.

Barry “Fairy” Heatlie, o único a ter jogado pelos oponentes de hoje: Pumas e Springboks

Os Lions, sem inconvenientes, chegaram antes do dia 25 de maio (o dia da independência) e realizaram seis amistosos, vencendo todos: dois contra combinados de clubes criollos (17 a 13 e 43 a 5), um contra o Belgrano Athletic (58 a 0), um contra o Buenos Aires (28 a 0) e um contra um time dos universitários (41 a 10), além do test match contra a seleção.

Um dos jogadores do selecionado já havia enfrentado – e vencido (duas vezes, uma em 1896 e a outra em 1903) – a seleção britânica. Trata-se de Barry Fairy Heatlie, ex-capitão da seleção sul-africana. A África do Sul só seria criada politicamente em 1910, mas antes disso uma seleção já juntava as então colônias britânicas do Cabo, Natal, Rio Orange e Transvaal.

Foi por conta das vitórias com o uniforme verde do clube de Heatlie, o Old Diocesan (a equipe do Cabo usava o uniforme do clube em que jogava o capitão), que tais cores foram adotadas de forme fixa pelos Springboks, apelido que teria sido sugerido por ele também – trata-se de uma gazela da região. Depois, viriam os detalhes em dourado.

Em 1910, o sul-africano atuou aos 38 anos de idade, quase vinte anos depois de ter participado do debute também de sua seleção original, em 1891, igualmente contra os Lions. Já na da Argentina, seria superado apenas pelos mitos argentinos Hugo Porta (39) e Mario Ledesma (também 38, com alguns meses a mais) no quesito idade.

Na bacia da Prata, Heatlie havia juntado-se ao Lomas Athletic, que, por conta dele, adicionou o verde e o dourado em suas cores. Ele foi precisamente o único atleta dos decadentes lomenses (que, depois do título de 1899, só venceriam pela segunda e ainda última vez em 1913) presente no elenco, preenchido praticamente só com jogadores dos “quatro fundadores”: Henry Talbot foi outro representante único, vindo do Rosario Athletic. O intruso foi A. Bover, da Southern Railway, como se chamava o Ferrocarril Gran Sud.

O Belgrano Athletic campeão de rúgbi em 1910, ano do primeiro jogo da Argentina: T. Choate, T. Clarke, R. Nicol, R. Jackson, G. Burgess, W. MacCallum e F. Maitland; Arnold Watson Hutton, C.J. MacCarthy (*), Wilfred Stocks, J.E .Saffery (*), G. Bush e F. Bell; W. Watson (*) e J. Sampson. Comparando com a imagem da seleção, pode-se ver que W. Watson, e não Arnold Watson Hutton, foi convocado (*). Na foto, faltou L. Gribbell, outro belgranense na seleção de 1910

O Belgrano Athletic, a ser semanas mais tarde o campeão de 1910, forneceu quatro: L. Gribbel, C.J. MacCarthy, J.F. Saffery e W.A. Watson. Este último, por vezes, é confundido com Arnold Watson Hutton, outro integrante do Belgrano daquela época. Filho de Alexander Watson Hutton, “o pai do futebol argentino”, Arnold teria sido o único a representar a Argentina tanto na seleção de futebol (naquele ano, ele seria campeão – e artilheiro – também neste esporte, pelo Alumni, a mais importante equipe da época e hoje igualmente dedicada à bola oval) quanto na de rúgbi, caso realmente tivesse enfrentado os Lions. Stocks, também do Belgrano, participou da partida como bandeirinha.

Do Buenos Aires, a grande potência daquela década e campeão de 1909, saiu a mais da metade restante: A. Donnelly, W.H. Hayman, F. Henrys, Frank Maitland Heriot, Carlos Mold, Alvan Reid, Frederick Sawyer e o capitão Oswald St. John Gebbie. A formação ficou em Saffery, MacCarthy, St. John Gebbie, Maitland Heriot, Talbot, Mold, Watson, Reid, Donnelly, Bover, Sawyer, Henrys, Hyman, Gribbell e Heatlie.

Já a escalação leonina foi John Raphael, Alexander Palmer, Barrie Bennetts, Edward Fuller, Harold Monks, Anthony Henniker-Gotley, Robin Harrison, Peter Strang, Martin Tweed, Walter Huntingford, William Fraser, Henry Whitehead, Horace Ward, Robert Waddell e Whaley Stranach. Todos eram ingleses, à exceção dos neozelandeses Palmer (que jogava pela Inglaterra) e Tweed e dos escoceses Waddell e Fraser, além do capitão Raphael, atleta da seleção inglesa nascido na Bélgica – onde morreria na Primeira Guerra Mundial.

O primeiro conjunto nacional argentino perdeu por 3 a 28 o seu cotejo inaugural, disputado no antigo campo do Flores Athletic. Os visitantes pontuaram com dois tries de Monks e um cada de Fraser, Raphael e Ward, além de suas conversões de Harrison e outra de Ward, e também um penal de Harrison e um drop goal de Monks. MacCarthy, com um try, anotou os primeiros três pontos (conforme o valor da época para tal jogada, hoje em cinco) da seleção argentina. Críticos da época teceram elogios a St. John Gebbie (futuro presidente da União Argentina, assim como Maitland Heriot) e ao fullback do Belgrano, Saffery.

O San Isidro em capa da El Gráfico de 1922. Já era pentacampeão seguido do rúgbi argentino e em quatro anos, com novos títulos consecutivos, superaria o Buenos Aires FC como maior campeão nacional. Seria a base da seleção argentina reunida em 1927, com a equipe já decacampeã seguida (seriam treze em série)

Um selecionado argentino demoraria quase duas décadas para ser reunida pela segunda vez, em 1927 – poderia ter sido três anos antes, nos Jogos Olímpicos de Paris (últimos a contarem com o rúgbi de quinze jogadores; problemas econômicos impediram a viagem de uma seleção argentina). O número de clubes registrados, que em 1910 eram dez, estavam acrescidos de outros dezoito, embora alguns tenham se desligado no período, notadamente os de futebol, como o Racing e o Atlanta. Em 1911, o Gimnasia de Buenos Aires tornara-se o primeiro time criollo campeão no rúgbi, dois anos antes do próprio futebol ter um assim, com o Racing.

E, em 1927, em que o presidente da União Argentina era Jacinto Caminos, o maior vencedor do rúgbi já era um clube hispânico: o San Isidro, que vinha faturando simplesmente todos os campeonatos realizados desde 1917, em uma série só interrompida depois do 13º título seguido. Este clube passaria a ser referido pela sigla CASI, de seu nome completo (Club Atlético de San Isidro), depois do surgimento do arquirrival San Isidro Club (o SIC) em meio a um cisma interno da instituição original, já na década de 30. Os dois clubes sanisidrenses tornariam-se os maiores rivais e vencedores do rúgbi argentino e a cidade de San Isidro, sua natural capital.

Três Lions na capa da El Gráfico por conta da visita deles em 1927: os ingleses Carl Aarvold e Ernest Hammett e o escocês Edward Taylor

O adversário da vez foram novamente os Lions. E foi justamente o bem-entrosado CASI quem ofereceu maior resistência, perdendo por 0 a 14. Os britânicos jogaram ainda contra um combinado de anglo-argentinos (27 a 0), contra um combinado de Gimnasia e do clube da Universidade de Buenos Aires, o CUBA (24 a 0), contra um combinado de Buenos Aires FC e Belgrano Athletic (44 a 3), e contra um combinado de clubes em geral (29 a 3).

Já contra a seleção argentina, foram quatro tests, com vitórias por 37 a 0, 46 a 0, 34 a 3 e 43 a 0 dos visitantes. Houveram folclores para os dois lados: os britânicos não conheciam estádios com alambrados, e se divertiram agitando as grades como feras enjauladas. Já para os locais, aqueles encontros marcaram a estreia de seu tradicional uniforme com listras horizontais alvicelestes na camisa, uma ideia dos dirigentes do Gimnasia y Esgrima, que, orgulhoso das raízes “argentinas”, usava tais cores.

Os jogadores utilizados pela seleção em 1927 também demonstram a evolução latina no rúgbi argentino. O próprio GEBA forneceu cinco (Norberto Escary, Vicente Grimoldi, César Pollano, Carlos Reyes e Alfredo Riganti), assim como o CUBA (Martín Ayerra, Rodolfo Serra, Julián Sommer, Francisco Torino e César Vázquez).

O multicampeão San Isidro não poderia deixar de ser o mais presente, com sete: Enrique Bustamante, Jorge Conrad, José Cuesta Silva, Marco Hernández, Fabio Lucioni, Antonio Pasalagua e Arturo Rodríguez Jurado – este, El Mono, foi o capitão e praticava também boxe; seria no ano seguinte campeão olímpico na categoria dos pesos pesados.

Completaram o elenco dos quatro amistosos cinco jogadores do Buenos Aires FC (W. Braddon, Archie Cameron, G. Cooke, Reginald Cooper e Antonio Hobson), três do Belgrano Athletic (Roberto Botting, A. Jacobs e Alberto Zoppa) e dois cada de Hindú (C. Derkheim e Salvador Müller) e do então Junín, atual San Martín (Llewellyn Makin e Miguel McCormick).

Daquela ocasião, a seleção já demoraria menos tempo para ser retomada, ainda que isso fosse demorar meia década. Em 1932, foi a vez de uma nova equipe estrangeira visitar a Argentina para enfrentá-la. Eram os Junior Springboks. Conforme veremos no próximo capítulo, foram estes os mesmos adversários contra os quais nasceram os Pumas, a se depararem mais uma vez, hoje, com os sul-africanos.

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

3 thoughts on “História dos Pumas – Parte I: Primórdios

  • Diogo Terra

    Belíssimo texto. Diametralmente oposto à nova camisa.

    A Nike sempre f… as camisas do Boca, mas com a dos Pumas extrapolou em termos de mau gosto.

    Prova que os dirigentes do rugby também só pen$am naquilo, me$mo que $eja bem meno$ que no futebol…

  • Caio Brandão

    Obrigado, Diogo! Eu também não gostei o que fizeram com a camisa dos Pumas, hehe. Em compensação, as belíssimas que a Adidas fez devem ter barateado, vou dar uma procurada… embora eu tenha a boa réplica deles (e dos Lions também) feita por este site brasileiro. http://www.retromania.com.br/loja/index.php/rugby.html

    Por sinal, a Adidas faz as camisas dos Lions. Considero das mais bonitas que ela produz, em todos os esportes!

    O rugby argentino é historicamente ultraconservador sobre o amadorismo. Até a ajuda de custo que começaram a dar a uma espécie de time B, com um “bolsa-atleta” para promessas (os Pampas XV), polemiza os puristas. Que dirá essa camisa nova, haha.

    Quanto ao do Boca, quando a Nike se atêm ao uniforme tradicional, até que não faz um trabalho ruim (o que vinha ferrando mesmo era a LG). O problema é quando bola os alternativos… o alvinegro, o sueco, o de faixa diagonal… por mais que estes tenham lá justificativas históricas…

  • Pingback: Argentina e Holanda, uma ligação histórica para além das (muitas) Copas do Mundo

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