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Há 30 anos, o San Lorenzo vencia a segundona

Cuervos entrando no Monumental de Núñez para enfrentar o Tigre, na sexta rodada. Mais gente esteve ali do que nos jogos paralelos da primeira divisão somados. Ainda é o jogo de maior público no campeonato argentino. O River Plate, dono do estádio, só o encheu mais uma vez, em uma final de Libertadores

Há exatas três décadas, no sábado de 6 de novembro de 1982, um jogo que ainda parece sem fim devolveu o Club Atlético San Lorenzo de Almagro à elite do futebol argentino. Não só parece, ao ser relembrado através dos tempos, como realmente o foi, com a plateia forçando sua interrupção aos 36 minutos do segundo tempo. A duas rodadas do fim, aquela partida diante do pequeno El Porvenir coroava uma campanha redentora no pior momento da história do clube.

Hoje novamente ameaçado seriamente pelo descenso – por bem pouco não caiu já na temporada passada –, o CASLA fora justamente o primeiro dos cinco grandes clubes argentinos a ser rebaixado (depois dele, Racing e River também cairiam. Independiente, que hoje periga, e Boca ainda não têm essa mancha). Nem mesmo seu arquirrival, o Huracán, tradicionalmente o “sexto grande”, havia passado ainda por vexame igual. A comoção na época foi tamanha que, para impedir eventuais descensos de outros grandes, instaurou-se para 1983 o famigerado sistema de promedios, ainda em vigor e que já ali salvou o próprio River Plate – mas condenou o Racing.

A inédita queda viera menos de dez anos depois de um dos melhores períodos da instituição do bairro de Boedo: em 1972, ao faturar tanto o torneio metropolitano quanto o nacional, ela se tornara a primeira bicampeã anual na Argentina, logrando os dois principais campeonatos do país. O título nacional de 1974 encerrara um raro período de conquistas em série, iniciado com o do metropolitano de 1968, quando o Ciclón, treinado pelo brasileiro Tim, tornara-se o primeiro time a ser campeão argentino de forma invicta no profissionalismo. Alguns dos principais baluartes da época dourada estavam presentes no descenso, a começar pelos técnicos.

Inicialmente, o treinador era Victorio Cocco, ex-volante presente naqueles quatro títulos, suficientes para fazerem dele um dos quatro jogadores mais vitoriosos do futebol profissional sanlorencista. Nascido na própria cidade santefesina de San Lorenzo que ajudara a inspirar o nome do clube (lá ocorrera uma das batalhas da guerra de independência da Argentina), sua imagem já estava manchada para os torcedores: a dívida trabalhista que ele exigira em juízo foi uma das maiores despesas que fariam o San Lorenzo ter de vender seu campo em 1979, ano em que se desfez também do campeão mundial Jorge Olguín (vendido ao Independiente) e Claudio Marangoni (para o Sunderland), duas de suas principais peças.

No dia do rebaixamento em 1981, contra o Argentinos Juniors. Eduardo Delgado perdendo o pênalti que poderia ter mantido o CASLA na elite

O terreno do antigo Gasómetro, então maior estádio do país, passaria para a rede de hipermercados Carrefour e, a partir dali, o clube deixou seu bairro de Boedo e passou a peregrinar sem casa fixa pela cidade, carma que duraria até 1993. Cocco, recém-chegado, resolveu tirar o veterano Sergio Villar, sua antiga dupla e outro tetracampeão cuervo (o goleiro Agustín Irusta e o atacante Roberto Telch são os outros dois), do time titular. A barra brava não perdoou o técnico e o insultou constantemente até que saísse, já com a equipe à beira do abismo. El Sapo Villar voltou para os últimos três jogos e acabaria encerrando seu ciclo no San Lorenzo ali, depois de outras 444 partidas; este uruguaio é também quem mais jogou nos azulgranas.

Outros ídolos antigos também se retirariam de cena naquela campanha. Mario Rizzi, artilheiro na segunda metade dos anos 70 e autor do último gol no Gasómetro (um 4 a 0 no minúsculo Cippolletti de Río Negro, no penúltimo jogo na antiga casa), saiu ao fim do primeiro turno, quando a situação não era tão catastrófica: ainda que não credenciasse para um título, as seis vitórias em 17 partidas vinham colocando o clube nas intermediárias da tabela: o Vélez, que terminou em 11º, ganhou oito jogos no campeonato inteiro, por exemplo; o Rosario Central, que venceu nove, terminou em 7º.

O CASLA, porém, só venceu três na metade seguinte, terminando com as mesmas 9 vitórias do Central. Só que os rosarinos engordaram seus pontos com 16 empates e os velezanos, com 15. O San Lorenzo tivera dez e perdeu as demais quinze partidas do certame. A penúltima derrota marcou a despedida de Héctor Scotta (seu irmão Néstor passou pelo Grêmio), que havia regressado do Sevilla. El Gringo, maior artilheiro do futebol argentino em um único ano – foram 60 gols seus em 1976 -, embora já não fosse o mesmo, até deixou o seu no referido revés. Só que foi em um 2 a 6 para o Instituto em Córdoba.

Os outros ídolos do passado a caírem foram o defensor Rubén Glaría (que voltava após defender o clube entre 1970 e 1974, ano em que esteve na Copa do Mundo) e o técnico que tentou tirar o time da lama: Juan Carlos Lorenzo. Este fora o treinador do bi anual de 1972 e repetiria tal sucesso em 1976, já no Boca Juniors, onde foi bi também na Libertadores – em 1977 e 1978, as primeiras vencidas pelo Boca.

Duas das quatro capas que a El Gráfico reservou ao San Lorenzo da segundona: os pontas López e Morel Bogado, “símbolos de una euforia ganadora” em legenda da capa; e o goleador Rinaldi, com cabelo do serviço militar que prestava

Após aqueles 2 a 6, El Toto até conseguiu manter o time invicto nas quatro rodadas seguintes (incluindo um 2 a 1 no grande River Plate da época), arranjando uma sobrevida que faria a equipe escapar até se empatasse na última rodada com o concorrente direto Argentinos Juniors. Ainda em 0 a 0, Eduardo Delgado perdeu um pênalti. Os adversários conseguiriam um 1 a 0 com Carlos Salinas – de pênalti – no estádio do Ferro Carril Oeste, onde os de Boedo vinham mandando os jogos.

Se Delgado acabaria crucificado pelo lance, de forma injusta ou não, outros descendidos conquistariam a torcida pela campanha de trinta anos atrás. A começar pelo próprio técnico Lorenzo, que decidiu ficar e convenceu promessas como o volante Leonardo Madelón a fazer o mesmo (o jovem de 17 anos pensara em largar o futebol). Ele e o atacante Jorge Rinaldi, de 19 anos, intercalariam seus jogos com o serviço militar, com Madelón recebendo baixa antes da hora e se livrando da Guerra das Malvinas após presentear um oficial com uma camisa azulgrana. Já El Chancha Rinaldi, afastado do descenso (quem esteve mais presente foi seu irmão, Osvaldo) por conta de uma lesão que também lhe cortara do mundial sub-20 de 1981, acabaria o goleador azulgrana, com 15 tentos na campanha.

Outros rebaixados que deram a volta por cima (ou melhor, para cima) foram o incansável Armando Quinteros, que perdia dois quilos por jogo na dupla com Madelón; e o goleiro Rubén Cousillas, que, apesar da irregularidade, conquistaria a massa sanlorencista pelo amor à camisa: o episódio de ficar para a B se somaria a outros, como jogar depois que o já titular José Luis Chilavert abandonou a concentração, mesmo El Flaco tendo passado a noite em claro ao acompanhar no hospital um irmão doente (em 1986) ou quando se improvisou como jogador e técnico após Nito Veiga demitir-se do comando (em 1987).

Quem chegou já para a Primera B foi o ponta Héctor Raúl López. Seria o vice-artilheiro da campanha campeã de 30 anos atrás, com doze gols vindos dos dois pés e do jogo aéreo. Especialista no “mundo ascenso”, onde viveu toda a carreira, subiria também com o Gimnasia y Esgrima La Plata, em 1984 – sua ida para o GELP foi acertada pouco após o título, em uma troca com os platenses pelo passe de Jorge Higuaín (pai do atacante do Real Madrid). Curiosamente, o acesso do Gimnasia impediu que o recém-rebaixado Racing também conseguisse voltar à elite logo depois de cair, obrigando este outro time grande a passar um ano a mais na segundona.

O plantel campeão há 30 anos

Outra boa peça contratada para a campanha foi outro ponta, o veterano paraguaio Eugenio Morel Bogado, campeão da Copa América de 1979 sobre o Brasil. Ainda ágil, marcou oito vezes e forneceu cruzamentos para vários outros, incluindo, indiretamente, o da jogada do título. Também contribuiu para o clube sendo pai de Claudio Morel Rodríguez, que, ao salvar em cima da linha um tentativa do Nacional uruguaio ao fim de um jogo em Montevidéu, impediu o CASLA de ser eliminado na primeira fase da Copa Mercosul de 2001. Aquela que acabaria sendo a primeira taça internacional dos cuervos e sobre a qual já falamos aqui, no início do ano.

Ao todo, o plantel de trinta anos atrás era formado por Rubén Cousillas, Rubén Insúa, Hugo Verdecchia, Norberto Díaz, Osvaldo Biaín, Jorge Rinaldi, Raúl Moreno, Carlos Schamberger, Armando Quinteros e Óscar Quiroga; Pablo Comelles, Daniel López, Miguel Batalla, Hugo Moreno, Héctor Osvaldo López, Leonardo Madelón, Claudio Peréz, Eugenio Morel Bogado e Héctor Raúl López; Hugo Sánchez, Óscar Ros, Ricardo Demagistris, Eduardo Abrahamian, Claudio Marasco, Ricardo Collavini, Víctor Barreras e Ernesto Aráoz. São, respectivamente, os jogadores da imagem acima, da esquerda para a direita.

A referida jogada do título teve a assinatura da peça mais valorizada na segundona: o volante Rubén Darío Insúa. No dia do rebaixamento, foi implorado por torcedores para que ficasse, apesar das ofertas de outros clubes. Além da garra e o fato de vir de uma família fanática pelo San Lorenzo (morava a sete quadras do Gasómetro; seu pai era sócio vitalício; e outro parente, Jaime Lema, fora goleiro no título de 1933, o primeiro profissional), fora poupado por ter sido afastado de alguns jogos por conta do serviço militar também.

El Gallego Insúa, com apenas 21 anos, seria a alma da equipe naquelas 42 rodadas. Não desde o início; desentendimentos com Lorenzo chegaram a afastá-lo por seis jogos. Já quando o treinador já era José Yudica (último em pé, na foto acima), ficou intocável. Este já havia ajudado o Quilmes a subir na temporada anterior (nos cerveceros, fora também o técnico campeão em 1978) e assumira o cargo de Lorenzo na antepenúltima rodada do primeiro turno, depois que o antecessor acertara com o Vélez. Mesmo volante, Insúa ainda marcou onze vezes.

“El Gallego” Insúa convertendo o pênalti do título e sendo festejado pelo artilheiro “Chancha” Rinaldi e demais colegas

Naquele campeonato de fórmula confusa (os times estavam divididos em duas chaves com onze cada, com todos jogando entre si e também com os do outro grupo em turno e returno; quem somasse mais pontos, considerando ambas as chaves, seria o campeão), episódios dos mais marcantes ocorreram em meio aos oito pontos de vantagem para o segundo colocado, em época em que a vitória valia dois e não três pontos. Por exemplo, contra o All Boys, onde estava jogando Sergio Villar, o antigo ídolo recebeu uma placa de agradecimento, mesmo também tendo ajuizado uma ação contra o Ciclón.

Já contra o Tigre, no Monumental de Núñez, na sexta rodada, houve mais plateia do que em todos os jogos do fim de semana na elite somados: 75 mil pessoas deram sua mostra de paixão pelo CASLA ao acompanhar um 1 a 1. Apenas as finais da Copa do Mundo de 1978 e da Libertadores de 1996 levaram mais gente de uma vez ao estádio do River; nem mesmo seus clássicos diante do Boca conseguiram tanto. Contando-se apenas o campeonato argentino, aquela partida de segunda divisão ainda é a de maior público já visto no torneio.

Os principais concorrentes ao título e acesso direto foram o Gimnasia y Esgrima La Plata, o Chacarita Juniors (no grupo A) e o Atlanta (no grupo B, o sanlorencista). As chances de ser superado por alguns deles limaram-se na 40ª rodada. Poderia ter vindo até na anterior, se o Deportivo Español tivesse sido vencido na Bombonera, em um duelo encerrado em 0 a 0. Já no estádio do Vélez Sarsfield, o El Porvenir também conseguia mostrar resistência, até que Morel Bogado cruzou e Rinaldi foi derrubado dentro da grande área após tentar dominar a bola com o peito, com a penalidade máxima sendo assinalada pelo árbitro Rubén Torres.

A massa azulgrana invadindo o estádio do Vélez após o gol do acesso. Ao lado, El Gráfico retratando “El Negro” Quinteros na firme briga pelo título da elite em 1983, já na volta à ela (e a posse do presidente Raúl Alfosín, o primeiro pós-ditadura)

“No campo do Vélez, havia 60 mil pessoas contra El Porvenir. (…) Sabíamos que não podíamos falhar. Como empurrava a torcida nesse dia! Buscamos, mas não conseguíamos marcar. Até que chegou o penal e eu meti o gol”, declarou o cobrador Rubén Insúa, que havia convertido todos os cinco penais que executara no certame e acertaria aquele no canto direito. “Faltavam apenas dez minutos para o final. Quanta tensão! Foi a emoção mais grande da minha vida”. E os tais minutos que faltavam foram logo suprimidos pela torcida: as comemorações foram estendidas ao gramado, invadido pouco depois e impedindo o prosseguimento da partida. A AFA decidiu manter o 1 a 0, o título e o acesso.

Uma das oito derrotas veio na última rodada e também renderia anedota parecida. Foi em um 0 a 1 diante do Banfield, único a vencer seus dois compromissos contra os campeões. O Taladro era treinado por Héctor Veira, que havia jogado por lá em 1974. Veira, todavia, era bastante identificado com a massa azulgrana, sendo um ídolo em Boedo na década de 60 mesmo sendo um torcedor do Huracán. Ao fim da partida, os torcedores, que elegeriam-no oficialmente a maior personalidade cuerva em 2008, nas comemorações do centenário do Ciclón, resolveram carregar El Bambino e não Yudica na volta olímpica.

O próprio Veira acabaria sendo chamado para dirigir o San Lorenzo na volta à elite. E o elenco demonstraria que voltara para ficar, terminando vice-campeão no metropolitano de 1983, um ponto atrás do campeão Independiente. Rinaldi e Insúa chegariam à seleção. E este, a fazer sucesso também no próprio Independiente (outro atualmente bastante ameaçado de descenso), estaria à frente de outra conquista sanlorencista a completar anos redondos neste 2012: a Copa Sul-Americana de dez anos atrás, a primeira taça continental do CASLA. Naturalmente, a ser retratada em breve aqui no Futebol Portenho.

Abaixo, edição de imagens do título, com enfoque nas belas festas da torcida.

http://www.youtube.com/watch?v=a4_xEowMzR8

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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