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55 anos do “desastre da Suécia”

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Carrizo caído, Lombardo lamentando e um tcheco celebrando: retrato fiel do desastre

Este 15 de junho ficará marcado no futebol argentino como o dia do inédito rebaixamento do Independiente, até então o único, ao lado do Boca, que jamais experimentara o descenso. Mas a data já era negra há 55 anos, por conta da seleção mesmo. Foi quando ela, ansiando a conquista da Copa 1958, acabou eliminada na primeira fase após sua maior goleada sofrida.

A Argentina só havia jogado dez vezes contra adversários europeus até a Copa do Mundo. Na época, era mais complicado um conhecimento mais aprofundado sobre seleções tão distantes geograficamente. Isso e o fato de a Albiceleste dominar o cenário sul-americano motivavam uma euforia em torno do elenco. Ela tinha onze títulos na Copa América, incluindo o mais recente, no ano anterior ao mundial.

Na época, o grande rival era o Uruguai, o segundo maior vencedor sul-americano (oito vezes) e que contava vantagem de seus quatro títulos mundiais – o bi olímpico e as Copas de 1930 e 1950. O Brasil, com apenas três canecos continentais, era apenas uma terceira força. Que, por sinal, perdera por 0-3 a partida pelo título daquela Copa América de 1957, gols de Antonio Angelillo, Humberto Maschio e Osvaldo Cruz.

Os três integravam um quinteto ofensivo a receber o apelido de Carasucias (“Cara-Sujas”, gíria para moleques) de Lima – o torneio foi realizado no Peru: Omar Corbatta-Maschio-Angelillo-Omar Sívori-Cruz. Três deles e o goleiro Rogelio Domínguez acabaram transferidos para a Europa. Angelillo, do Boca, foi à Internazionale. Sívori, do River, à Juventus. E Maschio, do Racing, ao Bologna. Já Domínguez foi contratado pelo Real Madrid.

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Corbatta, Maschio, Angelillo, Sívori e Cruz: só os pontas iriam à Suécia

Na época, deixar o país significava abdicar da seleção. Mesmo nos anos 70, quando, enfim, ela passou a admitir jogadores do exterior, o mais comum é que perdessem visibilidade fora do país e acabassem esquecidos, situação que começou a se inverter só nos anos 80. Ainda assim, o técnico Guillermo Stábile (o artilheiro da Copa de 1930 seguia no comando da seleção desde 1942) pediu pelo trio que fora a Itália, mas os clubes do país (não-classificado para o mundial) dificultaram. Não tinham ainda a obrigação de aceitar a convocação.

Na convocação, Stábile usou como base o River Plate, então vencedor dos três últimos campeonatos argentinos. Chamou sete millonarios: o goleiro Amadeo Carrizo, considerado o melhor que a Argentina já teve; os defensores Alfredo Pérez, Néstor Rossi e Federico Vairo; os atacantes Norberto Menéndez, Eliseo Prado e Roberto Zárate. Este último lesionou-se com a delegação já na Europa e, para o seu lugar, o treinador chamou outro do River: o veteraníssimo Ángel Labruna, à beira dos 40 anos, único remanescente do mais famoso ataque do clube (Muñoz-Pedernera-Moreno-ele-Loustau, de La Máquina dos anos 40) e 7 kg acima do ideal, de férias e fora de ritmo.

Completavam a convocação o goleiro Julio Musimessi, os Federico Edwards e Francisco Lombardo (os três, do Boca), os defensores David Acevedo (Independiente) e José Ramos Delgado (Lanús), os meias Eliseo Mouriño (Boca), José Varacka (Independiente) e Pedro Dellacha (Racing) e os atacantes Ludovico Avio (Vélez), Ricardo Infante (Estudiantes), Alfredo Rojas (Lanús), Norberto Boggio, José Sanfilippo (ambos do San Lorenzo), além de Corbatta (Racing) e Cruz (Independiente).

Em negrito, remanescentes da Copa América 1957. Percebe-se que foram poucos: a boa geração já vinha permitindo a alternar diferentes formações nas diversas Copas América, algumas em anos seguidos, em que treinou a seleção. No tri seguido nas de 1945-46-47, por exemplo, apenas cinco jogadores estiveram nas três. Baseando-se nisso, o presidente da AFA, Raúl Colombo, desistiu de correr atrás de Angelillo, Maschio e Sívori (todos passariam a jogar pela Itália; os dois últimos estiveram por ela na Copa de 1962): “a nós nos sobram jogadores”.

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O capitão Dellacha cumprimenta Schäfer; chute de Corbatta; e Labruna entre os norte-irlandeses

Ironicamente, nos amistosos de preparação, o trio foi enfrentado. Ainda não pela Azzurra, mas por um combinado dos clubes do norte italiano, derrotado por 0-2. A Argentina venceu também o Bologna de Maschio, por 1-0. Por fim, um 7-2 nos suecos de Raa. Além da Itália, o rival Uruguai e a Espanha de Di Stéfano também estavam fora da Copa, só aumentando o clima de conquista, embora os próprios argentinos não participassem do torneio desde a edição de 1934: por diferentes razões, vinham abdicando das seguintes. A Copa da Suécia marcava a volta.

Na estreia, algo esdrúxulo: na confusão de uniformes com a Alemanha Ocidental, os argentinos tiveram de usar a camisa amarela do IFK Malmö – comentamos sobre isso aqui. Mas o regresso tampouco terminou dourado para os argentinos: Corbatta animou-os abrindo o placar, mas, longe do preparo físico do germânicos, a Argentina levou a virada, 1-3. “Nós estávamos acostumados a jogar somente aos domingos, e a treinar terça e quintas”, justificou o capitão Dellacha, enquanto o mundial exigia jogos a cada três dias. O jogo foi histórico pelo primeiro gol de Uwe Seeler em Copas; só ele e Pelé marcaram em quatro mundiais.

Ainda havia consolo: tratava-se do detentor do título. O otimismo se renovou quando, pelo mesmo placar, venceu-se a Irlanda do Norte, com Labruna em campo. O grande papelão ocorreu contra os tchecoslovacos. Lombardo lesionou-se, e, como na época não se permitiam substituições, o atacante Avio foi recuado para reforçar a defesa, mas não ajudou: era por seu flanco que os ataques europeus foram se concentrando. Ao fim do primeiro tempo, já estavam vencendo por 3-0. Corbatta, um dos poucos poupados do fracasso (marcou nas três partidas), só diminuiu aos 20 do segundo tempo, antes dos colegas levarem mais três.

Nunca antes ou depois a Argentina sofreu goleada maior – os 1-6 só foram igualados, uma vez, contra a Bolívia, na altitude de La Paz em 2009 (curiosamente, o goleiro também era um Carrizo do River: Juan Pablo, sem parentesco com Amadeo, mas igualmente marcado – não esteve na Copa de 2010). “Fomos com os olhos vendados, às cegas. Não estávamos preparados para nem física nem tecnicamente”, admitiu Labruna. Os torcedores não perdoaram. No regresso ao aeroporto de Ezeiza, uma multidão reuniu-se para atirar moedas nos jogadores.

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O “desastre da Suécia” ocasionou o fim dos ciclos de outros festejados nomes daquela Argentina, casos de Cruz, Dellacha, Rossi, Vairo e do veterano Labruna, que encerrou naquela goleada em Helsingborg uma estadia de 16 anos na Albiceleste, recorde só quebrado pelos 17 de Maradona. Ele ainda é o mais velho a marcar e jogar pela seleção. Stábile também deixou o cargo, lamentando: “perdi o último round e se esqueceram de 20 anos de trabalho honrado”.

Outro dos mais afetados foi o goleiro Carrizo. Por trauma ou não, ele contou que “o avião não aterrissou onde fazia sempre, estacionou numa zona mais longe. Descemos e tivemos de ir caminhando até o terminal. Parecia que tudo estava armado para que nos insultássemos e agredíssemos. Em vez de nos proteger, nos expuseram, como se alguém tivesse organizado para que sofrêssemos. Nos trataram mal até quem tinha que revistar nossas malas. As abriam de qualquer jeito e jogavam nossas coisas no chão, sem qualquer cuidado”.

Embora atuasse em alto nível pelo River por mais dez anos, Carrizo passaria a recusar novas convocações – os goleiros do clube presentes nas Copas de 1962 (o mesmo Rogelio Domínguez) e 1966 (Hugo Gatti) eram seus reservas. Foram apenas 20 aparições suas pela Argentina, as últimas em 1964: foi titular na conquista da Copa das Nações, organizada no Brasil pela seleção canarinho – que perdeu por 0-3, com Carrizo pegando um pênalti de Gérson. Foi a pequena vingança que El Loco pôde ter.

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ARGENTINA: Amadeo Carrizo, Francisco Lombardo, Federico Vairo e Néstor Rossi, Pedro Dellacha e José Varacka, Omar Corbatta, Eliseo Prado, Norberto Menéndez, Alberto Rojas e Osvaldo Cruz. T: Guillermo Stábile. ALEMANHA OCIDENTAL: Fritz Herkenrath, Georg Stollenwerk, Erich Juskowiak e Horst Eckel, Herbert Erhardt e Horst Szymaniak, Helmut Rahn, Fritz Walter, Uwe Seeler, Alfred Schmidt e Hans Schäfer. T: Sepp Herberger. Árbitro: Reg Leafe (ING). Gols: Corbatta (3/1º), Rahn (33/1º), Seeler (42/1º) e Rahn (34/2º)

ARGENTINA: Amadeo Carrizo, Francisco Lombardo, Federico Vairo e Néstor Rossi, Pedro Dellacha e José Varacka, Omar Corbatta, Ludovico Avio, Norberto Menéndez, Ángel Labruna e Norberto Boggio. T: Guillermo Stábile. IRLANDA DO NORTE: Harry Gregg, Dick Keith, Alf McMichael e Danny Blanchflower, Willie Cunningham e Bertie Peacock, Billy Bingham, Wilbur Cush, Fay Coyle, Billy Simpson, Jimmy McIlroy e Peter McParland. T: Peter Doherty. Árbitro: Sten Ahlner (SUE). Gols: McParland (4/1º), Corbatta (36/1º), Menéndez (21/2º) e Avio (35/2º)

ARGENTINA: Amadeo Carrizo, Francisco Lombardo, Federico Vairo e Néstor Rossi, Pedro Dellacha e José Varacka, Omar Corbatta, Ludovico Avio, Norberto Menéndez, Ángel Labruna e Osvaldo Cruz. T: Guillermo Stábile. TCHECOSLOVÁQUIA: Břetislav Dolejší, Gustáv Mráz, Ladislav Novák e Ján Popluhár, Josef Masopust e Václav Hovorka, Milan Dvořák, Jaroslav Borovička, Pavol Molnár, Jiří Feureisl e Zdeněk Zikán. T: Karel Kolský. Árbitro: Arthur Ellis (ING). Gols: Dvořák (8/1º), Zikán (17/1º), Hovorka (39/1º), Corbatta (20/2º), Feureisl (24/2º), Zikán (37/2º) e Hovorka (44/2º)

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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