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Goycochea, 50 anos: lembre do “Tapa Penales”

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Celebrando o gol de Caniggia contra o Brasil em 1990. Depois “Goyco” é que seria herói

“Não há segredo. É uma conjunção inexplicável do anímico, o psicológico e o técnico. Precisas de uma grande saída de pernas porque é uma jogada que não permite caminhar o arco, há de se dar um passo e voar. Logo jogam a personalidade, a frieza, a intuição… Saber que o chutador lida com a responsabilidade. E que vais agarrar os penais que vão a 60 centímetros das traves. Entre a trave e os 59 centímetros, esqueça”.

Esta seria uma parte da receita do a partir de hoje cinquentinha Sergio Javier Goycochea para agarrar pênaltis, aquilo que o celebrizou no futebol. Outra parte, realizada em decisões por pênaltis, era mais “externa”: urinar no gramado. Não por medo: começou contra a Itália na Copa de 1990 “por necessidade”, disse ele, e o ritual acabou mantido por superstição. Pela Argentina, Goyco jamais perdeu uma decisão por pênaltis. Foram cinco.

Nascido em Zárate, ao norte da província de Buenos Aires, era torcedor do Independiente, cujo maior ídolo, Ricardo Bochini, veio da mesma cidade. E começou na liga local, no clube em que seu pai era técnico, o Lima, a pedido dos próprios colegas que enxergavam talento no garoto. Em três meses no time principal do Lima, já estava na 3ª divisão nacional, no Defensores Unidos de Cambaceres. Ainda tinha 16 anos e já poderia ter independência financeira. No Defensores, chegou às seleções juvenis da Argentina e o River Plate o contratou em 1982. Ficaria até 1988.

Nunca foi titular lá, porém. Primeiro por “culpa” de Fillol e depois de Nery Pumpido, nada menos que os goleiros titulares dos dois títulos mundiais argentinos. Mas, a partir de 1986, foi ganhando mais chances no campeonato nacional, enquanto os titulares focavam-se na Libertadores e Intercontinental que o clube ganharia (pela primeira vez). A fase era tão boa que ele e outros reservas chegaram à seleção em 1987: Pedro Troglio e Claudio Caniggia. Caniggia e Goyco estrearam juntos até, em um 1-3 para a Itália em Zurique. Mas, também em 1987, problemas o tiraram do River.

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“Não tenho AIDS”, afirma à versão argentina da Caras em 1988. A volta por cima viria dois anos depois

Ficou descontente com o técnico recém-chegado, Carlos Griguol, tê-lo tirado de rara titularidade assim que Pumpido recuperou-se de lesão (perdera um dedo em acidente). Armou-se então um troca-troca entre River e San Lorenzo, que cederia Darío Siviski e o goleiro Chilavert em troca de Néstor Gorosito e Goycochea. Chila chegou a posar como goleiro do Millo, mas só a troca de meio-campistas se concretizou: o bisneto de bascos de San Sebastián ficou doente. E levantaria suspeitas de que tinha AIDS. E em uma época de mentes mais fechadas e pouco conhecimento da doença a não ser que ela era um atestado de homossexualidade (em um contexto muito mais machista que atualmente, não só no futebol) ou vício em drogas – e de óbito.

“Uma situação assim te marca a todo nível. Parecem frases feitas, mas te dás conta de quem está perto porque gosta e quem por conveniência. Tomei consciência de que integrava um meio carniceiro.” O que Goycochea teve foi um problema na clavícula que poderia denotar artrite, o que lhe impediria de jogar e por isso a princípio resolvera ficar silente sobre sua “misteriosa doença”. Em uma época em que o futebol colombiano, financiado pelo narcotráfico, estava muito forte, acertou com o Millonarios.

Na Colômbia, foi campeão nacional em 1988 (até hoje, este é o último título do clube no campeonato colombiano) e chegou com ele às quartas da Libertadores de 1989, eliminado pelo futuro campeão, o também cafetero Atlético Nacional. Mas também deixou o país por problemas extracampo: em 1989, um bandeirinha foi assassinado após prejudicar o Independiente de Medellín. “Obviamente, se suspendeu o campeonato e não voltei mais. Foi no fim de 1989 e tinha que me apresentar à seleção”.

Seleção que influiu até no casamento, já que o folclórico Carlos Bilardo lhe obrigou a treinar no mesmo dia. “Tinha data no civil para a quinta de 14 de dezembro de 1989, assim avisei no treino de quarta. ‘Não há problema, Goyco. Case-se no meio-dia e às quatro te espero no campo auxiliar do Vélez’”. O sacrifício compensaria: na época, ele era só a terceira opção de goleiro. Pumpido seguia titular e o reserva imediato era Luis Islas. Só que o próprio Islas, vendo-se em melhor momento que Pumpido e descontente com a reserva, pediu para ser desligado.

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Após “salvar” Maradona contra a Iugoslávia e pegando os pênaltis de Hadžibegić e Donadoni na Copa de 1990, que o tornou célebre

Goycochea subiu um degrau, mas não esperava jogar: “pedi a meu pai que gravasse os jogos dois minutos antes do começo, assim poderia ver meu nome quanto davam os reservas”. Mas na segunda partida da Copa do Mundo, passou à titularidade: Pumpido fraturou a perna ao chocar-se com Olarticoechea aos 12 minutos de jogo contra a URSS. Em um jogo já tenso (ambos haviam perdido na estreia; quem perdesse ali já estaria eliminado), os argentinos ganharam por 2-0. Depois empataram em 1-1 com a Romênia e se classificaram na bacia das almas.

Goycochea começou a ser decisivo nos mata-matas. Sorte, má pontaria brasileira e algumas intervenções suas garantiram que um Brasil melhor em campo não marcasse gols nas oitavas. Nas quartas, 0-0 contra a boa Iugoslávia e a primeira decisão por pênaltis. Os argentinos erraram dois, com Troglio e até Maradona. Mas o goleiro passa a herói nacional ao pegar duas cobranças e ver outra subir o travessão. Mais transcendental seria ainda contra a Itália, dona da casa, em uma Nápoles dividida entre apoiar a Azzurra ou a seleção de Maradona. 1-1 e nos pênaltis Goyco pega outras duas cobranças, ruindo as pretensões caseiras do tetracampeonato e colocando uma Argentina em frangalhos na final.

Talvez mais do que Roger Milla, Goycochea foi a grande revelação daquela Copa. A final, ironicamente, seria perdida por conta de um pênalti. Ele acertou o lado em que Andreas Brehme chutou, mas não pôde alcançar. Aquele pênalti duvidoso tirou o título argentino, mas o goleiro caíra nas graças do povo. Terminada a Copa, Goycochea foi até o goleiro do Resto do Mundo em outubro contra o Brasil, no dia em que Pelé jogou pela canarinho uma última vez, nas comemorações dos 50 anos do Rei. Torcedor do Independiente, estava justo no maior rival dele, o Racing. Segundo o arqueiro, foi importante mesmo assim, pois pôde desfrutar no auge do prestígio o carinho argentino de perto.

Mas a carreira clubística não decolou. Campeão da Copa América 1991 (a primeira vencida pela Argentina desde 1959), passou à 2ª divisão francesa, ao Brest. Em 1992, já estava no Paraguai, no Cerro Porteño. Era a esperança para o inédito título do Ciclón na Libertadores, mas o clube caiu nas quartas para o Barcelona de Guayaquil, justo nos pênaltis. Mas o argentino fez sua parte: defendeu quatro cobranças, o problema foi que os colegas perderam as cinco… Goycochea assim seguia na seleção e foi até o primeiro que ela usou do futebol paraguaio; por muito tempo, foi o único, até Guiñazú ser convocado do Libertad neste 2013. E foi o primeiro de uma rivalidade estrangeira.

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Algo pouco lembrado: só ele jogou pela Argentina vindo de outros dois países da América: Millonarios, Cerro Porteño (aparece entre Gamarra e Arce e à frente de Struway) e Olimpia (está ao lado de Ayala e o primeiro agachado é Romerito)

Ainda em 1992, passou ao Olimpia, sendo vice da Copa Conmebol. Só Goyco esteve na seleção por mais de dois clubes estrangeiros americanos. Nos alvinegros, fez a transição entre os dois históricos goleiros campeões das Libertadores no clube, o aposentado Éver Almeida (1979 e 1990) e o jovem Ricardo Tavarelli (2002). Esteve no páreo na Libertadores de 1993, mas outra vez foi eliminado nos pênaltis nas quartas-de-final. Justo para o rival Cerro, que tinha o jovem Faryd Mondragón, depois ídolo no Independiente. Ainda como jogador do Olimpia, venceu a Copa Artemio Franchi (tira-teima extinto entre campeões da Copa América e da Eurocopa) e a Copa América de 1993. Contra a Dinamarca dos irmãos Laudrup, foi mais efetivo que Peter Schmeichel em nova decisão por pênaltis.

Na Copa América, brilhou novamente em outras duas decisões, contra Brasil e Colômbia. A Argentina foi bi seguida e passou a ser a maior campeã do torneio e Goyco, eleito o melhor da competição, além de acertar uma volta ao River Plate. Falamos aqui. Na época, se imaginava que a Albiceleste, com uma invencibilidade de 32 jogos seguidos, era a maior candidata ao tri na Copa 1994 do que o Brasil ao tetra, e não que desde aquela Copa América não voltasse a ser campeã. Mas vieram as eliminatórias. Por bem pouco, a Argentina não ficou de fora até da repescagem.

Goycochea foi bastante contestado após os 5-0 da Colômbia em Buenos Aires (falamos aqui). Seguiu titular, mas o técnico Alfio Basile, na véspera da estreia na Copa, avisou que usaria Islas. O último jogo do Tapa Penales pela seleção foi um amistoso contra a Croácia logo antes da Copa. Depois do torneio, veio jogar no Mandiyú, treinado por Maradona, então suspenso de jogar pelo doping na Copa. A experiência foi um fracasso: relembre-a clicando aqui. Em 1995, passou ao Internacional. Chegou a defender um pênalti de Romário no Maracanã, mas também levou alguns frangos e não teve contrato renovado.

Mas, segundo ele, começou a se aposentar ao ir ao Vélez em 1996. Acreditava que Chilavert estarias prestes a ser vendido. Mas isso não ocorreu e acabou perdendo ritmo de jogo: além do mito paraguaio, o Fortín tinha consigo outro goleiro da seleção argentina, Pablo Cavallero. Terceira opção de banco, só jogou 2 vezes e passou ao Newell’s, onde encerrou a carreira em 1998. Passou a dedicar-se ao jornalismo esportivo, onde também angariou prestígio. Sempre lembrado pelos pênaltis na seleção, pegou os de Dragoljub Brnović, Faruk Hadžibegić, Roberto Donadoni, Aldo Serena (Copa 1990), Kim Vilfort, Bjarne Goldbæk (Copa Artemio Franchi), Marco Antônio Boiadeiro e Víctor Aristizábal (Copa América 1993) em decisões e, durante os 90 minutos, do soviético Igor Dobrovolskiy na Copa Stanley Rous em 1991.

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No início da carreira, no River, e recentemente, entrevistando José Mourinho no Real Madrid: hoje o Tapa Penales é um respeitado jornalista esportivo

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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