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O Clásico Rosarino está de volta

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Este domingo é marcado pela primeira edição em anos do Clásico Rosarino, que não ocorria desde 2010. O Rosario Central foi rebaixado naquele ano e só neste 2013 voltou à elite. O jejum podia ter acabado em janeiro deste ano, em amistoso cancelado por enfrentamentos prévios da torcida do Newell’s Old Boys com policiais. Trata-se da rivalidade mais ferrenha do país (e a mais antiga nas primeiras divisões) e mesmo a ausência de jogo pode reforçar isso, como a que originou os apelidos da dupla.

Essa estória começou no início dos anos 20, quando um hospital local pretendeu organizar entre as duas principais forças de Rosario (uma das poucas cidades argentinas em que as potências locais são mais populares regionalmente que Boca e River) um amistoso beneficente em prol dos acometidos de lepra. O Newell’s aceitou, o Central não. Com isso, os auriazuis foram tachados pelos rubronegros de “canalhas”, no que devolveram chamando-os de “leprosos”. Como comum na Argentina, as ofensas foram com o tempo orgulhosamente assumidas como alcunhas pelos próprios alvos.

Tão é verdade que atualmente a palavra canalla, em Rosario, remete primordialmente ao torcedor centralista e não a uma pessoa vil. Tanto que, para o sentido original do termo, Roberto Fontanarrosa, célebre escritor argentino fanático pelo Central, chegou a sugerir a criação da palavra canaya (que tem a mesma pronúncia no sotaque argentino). Não adiantou muito: os auriazuis a usam para si também.

Naqueles anos 20, não era incomum jogadores rivais posarem juntos para fotos. E é justo daquela época o único que chegou a jogar pela seleção vindo de ambos: o ponta-esquerda Juan Francia, de idas e vindas pela dupla. Começou no Newell’s, estreando por ele na Albiceleste em 1918. Em 1921, integrou o primeiro elenco argentino campeão da Copa América, já como jogador do Central – até trabalharia na empresa ferroviária que originou o clube. Em 1927, já era rubro-negro outra vez, marcando um dos gols nos 4-0 no Real Madrid, que visitava o país. Em 1930, estava no Central.

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Fotos dos anos 40, quando ainda era comum que os jogadores rivais confraternizassem antes dos jogos.

Outro vira-casaca da época foi Julio Libonatti. Começou no Central e em 1919 passou ao rival, onde se consagrou, chegando à seleção: marcou em todos os jogos da Argentina no primeiro título dela na Copa América, em 1921. Libonatti seria o primeiro jogador do futebol sul-americano contratado pelo europeu, onde brilhou no Torino, campeão italiano pela primeira vez em 1928 graças aos gols do argentino, que terminou também artilheiro do campeonato. Jogou pela Itália e chegou a ser o maior artilheiro da história do Toro (hoje, é o segundo) e segundo maior goleador do clássico com a Juventus: clique aqui.

Já Francia seguia no Central em 1931, quando o profissionalismo foi enfim assumido entre os grandes clubes argentinos. Desde então, só quinze defenderam as duas potências de Rosario, outro atestado das rixas, reforçadas ainda mais por outro dado: o último a virar a casaca o fez há quase 30 anos. Nem o ódio religioso de um Celtic-Rangers, político de um Lazio-Roma ou cinematográfico de um Millwall-West Ham os impediu de ter episódios do tipo desde então, assim como os também ferozes clássicos de Istambul, Praga e Belgrado. O tal último foi o goleiro Juan Carlos Delménico.

Delménico, que curiosamente defendeu os também ferrenhos rivais Estudiantes e Gimnasia LP, começou no Newell’s no início dos anos 70, passou pelo futebol colombiano e chegou ao rival em 1984, não sendo feliz: os auriazuis, que contavam com outro doblecamiseta, o zagueiro Mario Killer, caíram. Killer na verdade voltava ao Central, onde fora ídolo no início dos anos 70. El Colorado (era ruivo) participou dos dois primeiros títulos argentinos do time, em 1971 e 1973. O de 1971 foi especial também por outra razão: nas semifinais, os canallas eliminaram a Lepra em um gol reencenado até hoje por seu autor, Aldo Poy, em reuniões festivas. Comentamos aqui (clique).

Mario esteve no NOB ao fim da década, assim como seu irmão, o zagueiro Daniel Killer, colega seu naquele Central bicampeão. Daniel esteve na seleção argentina campeã mundial em 1978. Ambos os Killer são considerados ídolos do Central, apesar da troca. Inversamente, Sergio Robles é um grande ídolo leproso que passou ao rival (em 1982) e depois voltou (um ano depois). Ele esteve no primeiro título argentino do Ñuls, em 1974, que representou uma revanche: a taça veio no clássico. Ainda que com um empate, foi na casa adversária, mesmo palco a ser usado hoje, o Gigante de Arroyito.

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Francia, o único da rivalidade na seleção; Delménico, o último vira-casaca; e Daniel Killer, outro deles, campeão mundial em 1978. Seu irmão Mario também jogou nos dois

Os primeiros profissionais a jogar nos dois foi o ponta Juan Cagnotti, por três anos no Central e outro no Newell’s nos anos 30; o atacante Juan Carlos Cámer, por dois anos no Newell’s e depois um no Central nos anos 40. O defensor José Poi (não confundir com o ídolo são-paulino José Poy, primo de Aldo) fez o inverso na década seguinte. Já nos 60, Miguel La Rosa passou sete anos como auriazul antes de virar a casaca; Elio Montaño viveu três de Ñuls e chegou ao Central aos 32 anos; também na casa dos 30, o goleador canalla Juan Castro chegou ao rival; o goleiro Juan Carlos Bertoldi foi quatro anos centralista e esteve no NOB em 1966, ao lado do ex-colega Ricardo Giménez.

Jorge Weltscha conseguiu defendê-los no mesmo ano, em 1962, antes no Central e depois na 2ª divisão pelo rival. O ponta Hugo Rosales jogou uma vez pelos canallas e na virada da década já estava na Lepra. Rogelio Poncini foi outro rubronegro ex-auriazul dos anos 60. Já nos anos 70, Oscar Coullery nasceu no Newell’s, foi ao Central e regressou à sangre y luto depois, assim como Robles. Há ainda o caso de Miguel Juárez, ídolo centralista nos anos 50 e que trabalhou como técnico no rival, tendo como ajudante César Menotti, outro que como jogador brilhou nos auriazuis. Ángel Zof, mais vitorioso técnico do Central (onde chegara a jogar), começou treinando justo o NOB.

Se os Killer jogaram em ambos, houve famílias “separadas”. Na época amadora, o Central teve os irmãos Nazareno e Ramón Luna. Já o NOB teve Segundo Luna, outro irmão. Nos anos 60, foi a vez de Jorge Solari iniciar a carreira no Newell’s e depois ver o irmão Eduardo Solari debutar no Central – Eduardo foi outro campeão em 1971 e 1973 e é pai de Santiago Solari. Santiago é o mais famoso da família; jogava no Real Madrid na década passada. Apesar disso, El Indiecito é mais próximo do tio não só pelo apelido (Jorge era chamado de El Indio) como também por já ter se declarado hincha da Lepra, embora não tenha chegado a jogar nela. Conheça mais os Solari clicando aqui.

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Kempes e Maradona

Involuntariamente, Jorge Solari protagonizou uma das maiores fontes de gozação do rival. A dupla disputou palmo a palmo o título argentino de 1986-87. O Central havia acabado de vencer a segunda divisão e simplesmente a emendou com um título da elite, raríssimo bicampeonato – e sobre o grande rival. El Indio culpou a própria barrabrava rubro-negra pela perda, afirmando que não deixava os jogadores tranquilos e a tachou de pé-fria (Pecho Frío, na Argentina): clique aqui.

Apesar do trauma, o Newell’s reagiu bem: venceu o campeonato seguinte e em 1992 já estava igualado às quatro taças argentinas do rival, além de chegar a duas finais de Libertadores. O período também reservou recordados triunfos nos clássicos. Especialmente um de 8 de março de 1992: os leprosos jogariam um dia depois pela Libertadores e pediram que o dérbi fosse adiado, mas os rivais negaram; clique aqui.

O técnico leproso Marcelo Bielsa então usou nove reservas, que mesmo assim ganharam. A tarde ficou lembrada como Día de la Paternidad (“freguesia”). O técnico derrotado, aliás, era Eduardo Solari. O Newell’s terminaria campeão argentino, igualando-se aos quatro títulos do rival, e vice na Libertadores, para o São Paulo. O mencionado ídolo José Poy, que começou no Central, chegou a ser espião do tricolor para a final.

Algo que muita orgulha as metades de Rosario são a presença de nomes dos mais históricos do futebol argentino. Os leprosos se gabam de Batistuta, maior artilheiro da seleção e que começou no clube, de Maradona (falamos aqui) e por serem o time do coração de Messi. Por outro lado, Messi nunca jogou na Lepra, que até o “dispensou” ao recusar financiar o tratamento para problema hormonal que o acometia; e Bati e Diego não chegaram a brilhar. Já os canallas podem se orgulhar “mais genuinamente” de Kempes, protagonista do título da Copa 1978. El Matador despontou nacionalmente como auriazul. Fez até o gol de um 1-0 no clássico que definiu quem ia às semifinais da Libertadores 1975.

O Newell’s vive melhor momento e tem supremacia nacional: 6 títulos argentinos contra os 4 do rival e está a caminho do 7º, sendo líder atual. Mas ainda têm desvantagens na rivalidade: não tem nenhuma taça continental, e o Central sim, a mitológica Copa Conmebol de 1995 (perdeu para o Atlético Mineiro a ida da final por 4-0, devolveu o placar em Rosario e venceu nos pênaltis). As decepções sangre y luto na Libertadores, somadas àquela declaração de Jorge Solari, já renderam gozações como Newell’s Cold Boys. Outra desvantagem é no dérbi, com ligeira dianteira auriazul: 105 a 103.

Os canallas esperam aumentar hoje sua vantagem no Clásico Rosarino, jogando em casa e sem torcida rival, um território tradicionalmente bastante hostil aos leprosos: estes chegaram a passar quinze anos sem uma mísera vitória no Gigante de Arroyito pelo encontro, entre 1965 e 1980 – depois de 1980, passaram outros dez. O triunfo de 1965, por sinal, foi 1-0 com gol de um brasileiro: o ex-gremista João Cardoso, posteriormente titular dos únicos títulos do Racing na Libertadores de 1967 (fez um dos gols do título) e da Intercontinental no mesmo ano (a primeira de um time argentino).

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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