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Quando a paixão entra em campo. E nos vestiários

Após leitura da carta, jogadores se unem em torno do pedido
Após leitura da carta, jogadores se unem em torno do pedido

Coisas do ascenso argentino. Coisas do mundo do futebol. Do ascenso argentino e da Argentina porque somente por lá há espaço para os cinco Grandes, mas também para milhares de nanicos de bairros. Muitos deles bem mais velhos do que a maioria dos principais clubes brasileiros. Na Argentina, esses clubes não vão às mãos de empresários, nem deixam de existir. Alguns têm apenas mil sócios. Ou menos. Mas são sustentados há mais de um século pela paixão desses “pobres-diabos” abnegados. Nas férias, pintam o clube, que em geral não tem dinheiro para isso. Quando falta material esportivo, eles compram dos próprios bolsos. Dão-se ao luxo de terem barras bravas e velhinhos, do tipo da Bengala Azul, do São Caetano; gente do bem e do mal, mas gente disposta a manter o clube por várias gerações. Gente que quando procura um emprego melhor o faz incentivada também pela perspectiva de aumentar uns centavos à parcela que mensalmente destina à sua “nanica” instituição.

Coisas do mundo do futebol, pois a paixão por esse esporte jamais pode ser medida e está em toda parte. No interior da Argentina, nos rincões do Brasil e em cada canto do mundo. Porém, do que estamos falando? O que há de importante na matéria para que ela ocupe este espaço? Estamos falando do Club Atlético General Paz Juniors. Simplesmente Juniors, como é chamado por seus torcedores. E a história é daquelas. Foi pela 15ª rodada do Torneio Argentino B, a 5ª divisão do interior. Vejamos.

O Clube e seu terreno de jogo

O General Paz Juniors é de abril de 1914. Vive o ano do centenário, portanto. É de Córdoba, particularmente de Boulevard Arenales, no bairro de Juniors, que oferece nome ao clube. Seu apelido é “Los Poetas del Cesped”. Tem estádio para 15 mil pessoas. Nos tempos áureos já jogou contra times grandes do país. Hoje não é sombra de times como Belgrano, Instituto, Talleres e até do rival, outra equipe que compõe esta nota, o Club Racing de Córdoba. Degradação é enorme. Sofrimento e choro também. Fidelidade da torcida nem se fala; foi isto que o manteve vivo até os dias atuais. A realidade do futebol diz ao clube que caia na real e feche suas portas. Porém, essa realidade é principalmente a do mercado que envolve o esporte bretão e não a do futebol que se hospeda nos corações dos seres humanos.

Seu terreno de jogo é o Torneio Argentino B. Explico. Na Argentina, há duas divisões no futebol, que ligam todo o país: a primeira divisão e a B Nacional. Até aí nada de novo, pois no Brasil é igual. Só que daí para baixo, o futebol se organiza em mais seis divisões. Três delas fazem parte do chamado ascenso metropolitano e reúnem as equipes do entorno de Buenos Aires e algumas de Rosário: Primeira B Metro, Primeira C e Primeira D (terceira, quarta e quinta). As outras três fazem parte do ascenso do interior e reúnem milhares de entidades de futebol espalhadas pelo país. Tratam-se do Torneio Argentino A, Argentino B e Argentino C, ou Torneio do Interior. O General Paz Juniors joga no Argentino B e luta para não ser rebaixado à quinta divisão do interior, onde se hospedam as equipes amadoras ou semiamadoras. Só no Argentino B 136 equipes entram em campo na luta pelo título e pelo acesso. Na ordem: título, depois acesso. Não importa que seja um canequinho, isto conta muito para eles.

Por que esta história está aqui?

A equipe vive apuros e está entre uma quase impossível vaga à próxima fase ou o rebaixamento, pois seus promédios são péssimos. Se não passar à outra fase, provavelmente será rebaixada. Então teve o clássico de Córdoba. Em campo, os dois rivais tão inimigos quanto nanicos. De um lado o Racing de Córdoba, em ótimo momento, líder do Zonal VI e virtual classificado à próxima fase. Do outro lado, o anfitrião, o Juniors, com a autoestima que não sai do túnel que leva aos vestiários. Por ser um clássico, o Juniors conseguiu levar a disputa em 0x0 até o fim do primeiro tempo, embora sofresse feito um cão.

A surpresa

Assim que chegaram ao vestiário, os jogadores receberam uma carta dos seus torcedores. O documento é qualquer coisa de extraordinário porque sintetiza bem o que pouco se explica com clareza: o efeito do futebol na alma do ser humano. Vejam a carta transcrita abaixo:

“Jogadores do Juniors:
É possível que seja apenas uma partida a mais para vocês, porém, para nós torcedores, não é. Por isso decidimos escrever uma carta.

Contam muitos anos ao longo dos tempos que nós vivemos para este clube; temos tratado de dar o melhor possível para que este clube se fortaleça, trabalhando para melhorar o estádio, viajando a todos os lados da Argentina ,e sempre pagando de nosso bolso (com exceção de uma única vez, que pedimos uma colaboração e a qual reforçamos nosso agradecimento por esta via), nos juntando para confeccionar bandeiras, programar de tudo e muitas coisas mais. Tudo isso sempre fizemos com coração e por amor ao clube.

Foram e são muitas às vezes em que deixamos nossos familiares para irmos ver ao Junior, em péssimas condições de estalagem, sem dormir, enfim, muitas coisas que nem mesmo nós entendemos como ocorrem, mas que configuram uma loucura incondicional. Trata-se do amor a um clube modesto. Fato que é digno de glamour, pois formamos parte dessa história, já que cada pequena alegria que alcançamos nos fazem felizes por sabermos o quanto participamos ativamente de sua construção.

Vocês podem e devem recordar quem são: lembrem-se do esforço que custou a cada um de vocês chegar aonde está. Tá certo que muitos não se originaram deste clube, mas se vocês optaram por jogar este esporte, o destino decidiu que hoje estejam no Juniors. E, assim como nós, também deixando muitos membros de suas famílias e amigos longe de vocês. Suas vidas são, essencialmente, a vida de um verdadeiro jogador de futebol, pessoa que deixa no caminho muitas coisas que a vida oferece mas que ele deixa de lado por estar em um clube e praticar o futebol.

Como nós entendemos vocês, queremos que nos entendam e que saiam a matar ou morrer por esta camisa; a jogar com coragem; a deixar a vida pelas cores, pois é possível que este clube seja mais um para vocês, porém façam algo por nós, pois se soubéssemos jogar um pouquinho seríamos os primeiros a ir às canteiras e a defender ao clube de nosso coração.

Queremos que ao pisarem na grama faltem com respeito ao rival; que seus jogadores tenham medo da sua enorme e profunda vontade de vencer. Deus deu a cada um de vocês dois “huevos” e pedimos que os apertem de forma a poderem dar a nós e à nossa gente um pouco de alegria, já que ninguém consegue entender ou ter noção do amor que temos pelo nosso Junior. Ganhar um clássico, para nós, é uma alegria que nos faria felizes, mas o efeito disso não é possível de se medir e se materializaria na possibilidade de nos tranquilizarmos em não vê o Junior rebaixado ao futebol das ligas amadoras. Pedimos-lhes que nos olhem nos olhos e que cumprimentem a cada torcedor vem aqui para vê-los. Pedimos-lhes que joguem com a cabeça, com o coração e com “huevos”. Deem a vida, pois ainda que este seja um clube de passagem para vocês, hoje estão por aqui e queremos que fiquem na história de nossa pequena instituição futebolística. Lutem pela bola como se ela fosse a última que os seus pés de jogadores chutariam.

Nunca se consegue nada sem entusiasmo e não se fracassa até que se faça a última tentativa. Pensem em suas famílias e saibam que muitos torcedores do Junior rezam para que este clube acenda (suba) este ano, mas que isto comece sobretudo na vitória de hoje. Muitos deixaram de lado suas vidas pessoais e lutaram para que este clube cresça. Vocês são privilegiados por esta instituição se dedicar ao futebol. Se pensarem em outras práticas desportivas verão que elas não recebem nenhum tipo de apoio; seus atletas quase não ganham nada e são obrigados, eles mesmos, a limparem o piso de uma quadra antes de uma partida, a comprarem a bola e não recebem salário nenhum. Por respeito a eles e a todos nós saíam a jogar de verdade e a defender nossas cores.

Seja qual for o resultado, se jogarem com alma estremos muito agradecidos. Esperamos haver-lhes tocado o coração. Todos somos parte de um clube, todos queremos o melhor; confiamos em vocês. Deem a vida em campo… por favor.

LEMBREM-SE. SAIBAM. ACREDITEM. CREIAM: VOCÊS PODEM

Lembrem-se: se querem triunfar, não fiquem olhando da escada. Comecem a subir com vigor, degrau por degrau, até que cheguem em cima, no gramado. Vamos garotos, que hoje todos nós ganharemos juntos. Força e muita sorte; lembrem-se: estamos com vocês.
Seus hinchas do coração”.

O Efeito da carta

O segundo tempo foi outro. Como um passe de mágica, o domínio do Racing, na primeira etapa, desapareceu e deu lugar à loucura do Paz Juniors. Parecia outro time. E de tanto martelar a área da Academia, Luciano Copetti foi o nome do gol, a 10 minutos do final. No desespero, o Racing se desguarneceu e levou mais um: aos 44 minutos, Cristian Jeandet, de pênalti, guardou o segundo gol para os “Los Poetas da Grama”. Final: General Paz Juniors 2×0 Racing de Córdoba. Ao menos por enquanto, seus torcedores podem sonhar com uma possível classificação e podem se aliviar do fantasma das ligas amadoras.

Só que a história não acaba por aí, no fim da partida, os torcedores do Racing invadiram o campo. A proposta era a de pegar alguns jogadores da equipe e descer o sarrafo. Outros queriam pegar o árbitro. A correria foi geral. Alguns policiais também correram. Como é de costume na Argentina, alguns correram para salva a própria pele; outros, para espalhar a multidão com aquelas malditas balas de borracha. Mas esta já é uma outra história do ascenso. Comum, mas cheia de capítulos.

Para conhecer mais do Racing e dos outros grandes cordobeses (Talleres, Belgrano e Instituto), clique aqui.

Joza Novalis

Mestre em Teoria Literária e Lit. Comparada na USP. Formado em Educação e Letras pela USP, é jornalista por opção e divide o tempo vendo futebol em geral e estudando o esporte bretão, especialmente o da Argentina. Entende futebol como um fenômeno popular e das torcidas. Já colaborou com diversos veículos esportivos.

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