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Dez anos do mais emocionante Boca-River

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O empate de Tévez para o desconsolo de Montenegro (que substituía o suspenso Gallardo. É o mesmo que liderou a volta do Independiente à elite) é a imagem mais marcante, mesmo com o River conseguindo mais um gol depois

O Superclásico, para muitos o maior dérbi do mundo, é repleto de episódios épicos, favoráveis seja ao Boca ou ao River. Mas, pelo peso de uma semifinal de Libertadores, três reviravoltas e outras circunstâncias especiais, é muito difícil cravar outro que não o de 17 de junho de 2004 como o mais emocionante duelo entre xeneizes e millonarios. E o Boca, a considerar aquele Superclásico quase que como um título, passaria pelo anticlímax de perder aquela Libertadores e ver o rival campeão pouco depois. Mas talvez a ferida seja maior no River, que nadou, nadou e morreu na margem (*). Venceu três dos quatro encontros que teve diante do rival naquele ano, incluindo o de dez anos atrás. Não bastou.

Após grande seca de títulos nos anos 90, que por sua vez tiveram um River esplendoroso, o Boca se reergueu na virada do século. Até 1999, ambos tinham a mesma quantidade de Libertadores (duas cada) e Intercontinentais (uma). Carlos Bianchi chegou aos auriazuis em 1998 e reprojetou o Boca. Desde o segundo e então último título na Libertadores, em 1978, o time só havia sido campeão nacional duas vezes até a vinda de El Virrey. Com ele, faturou-se imediatamente outros dois, ambos da temporada 1998-99, no embalo de 40 jogos seguidamente invictos, até hoje um recorde no país. Mas o melhor estaria por vir. Em 2000, o Boca voltou a ficar na frente no número de Libertadores e Intercontinentais.

Na Libertadores 2000, aliás, destaque para outro Superclásico histórico: após perder de 1-0 no Monumental, Riquelme & cia fizeram 3-0 na Bombonera em um retorno cinematográfico de Martín Palermo, que seis meses após lesionar o joelho voltou aos campos no fim da partida para marcar o terceiro no último minuto. Outro semestre depois, já plenamente recuperado, El Titán fez os dois gols para ganhar no Japão a Intercontinental em cima do Real Madrid. Em 2001, nova Libertadores para os comandados de Bianchi. E em 2003, mais uma… O sucesso em série do rival precisava de uma pronta-resposta do River, mas nem a Sul-Americana 2003 ele conseguiu: perdeu-a ao Cienciano.

O Millo montava seus bons times, mas tinha asa-negra nos brasileiros (caiu nas semis para o Vasco em 1998 e o Palmeiras em 1999 e levou de 4-0 do Grêmio logo nas oitavas de 2000) ou mexicanos (eliminado nas quartas de 2001 pela Cruz Azul e nas de 2003 pelo América, após eliminar o Corinthians). Quanto aos clássicos, talvez ainda esteja fresca na memória a série entre Barcelona e Real Madrid em 2011, pela reta final do Espanholzão, decisão da Copa do Rei e semis da Liga dos Campeões. Há dez anos, viveu-se algo parecido na Argentina, que em cerca de quatro semanas viu três Superclásicos. O primeiro, em 16 de maio, foi pelo Clausura na Bombonera. O seguinte, novamente no campo do Boca, mas pela semi da Libertadores, foi em 10 de junho. No dia 17 de junho, outra semi, no Monumental.

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Cavenaghi, Ameli, Husaín, Gallardo, Ricardo Rojas e Maxi López comemoram na Bombonera pelo Clausura 2004.

A prévia das semis em 16 de maio também teve componentes extras. O Boca vinha emendando todos os títulos que disputava desde julho: Libertadores 2003, Apertura 2003 (vencendo o River no Monumental, com o recordado gol de Iarley), Intercontinental 2003 e liderava aquele Clausura 2004 dois pontos à frente do River. Logo no começo do jogo, o ídolo Marcelo Salas se lesiona e precisa sair já aos 8 minutos. Em seu lugar, entra o garoto Maxi López. É de Cavenaghi o único gol do jogo, mas os meios elegem como melhor em campo justo Maxi. O River reverte a dianteira, passando à liderança em dérbi na casa do maior rival. Nova vitória ali só viria dez anos depois, no último campeonato.

Aquele clássico só não ganhou contornos ainda maiores porque o River, apesar de provas, não se reconhece como fundado em 15 de maio de 1904 (entenda neste outro Especial), senão poderia propagar que pôde se presentear um dia depois de completar seu centenário. Com a proximidade de dois dérbis ainda mais inflamáveis, autoridades de segurança dirigidas pelo ex-árbitro Javier Castrilli, do qual os torcedores da Portuguesa jamais esquecem, determinam a polêmica medida de que não haveria torcida visitante nos dérbis pela Libertadores. Controvérsia então inédita.

Chega o dia 10 de junho e Salas ainda não se recuperou. Aos 28 minutos, Schiavi, naquele que considera o gol mais importante de sua carreira, abre o placar com a cabeça, aproveitando mesmo caído um cruzamento de Barros Schelotto pela direita. Para piorar para o River, ele logo depois se desfalca de seu outro expoente dos bons tempos, o meia Gallardo, para aquele e também para o próximo jogo: El Muñeco recebe um carrinho por trás de Cascini, originando um tumulto que resultou na expulsão dos dois, que trocaram cabeçadas. Ensandecido, Gallardo ainda usa a mão para arranhar o rosto de Abbondanzieri e o reinício pós-tumulto demora quase dez minutos.

“Veja se vou querer arranhar alguém! Nããão. O certo é que perdi o controle, não era consciente do que fazia. Depois nos eliminaram e vi atitudes de gozação de alguns jogadores do Boca, entre eles o Pato [Abbondanzieri], e não me deram ganas de pedir-lhes desculpas. Senão, teria feito”. Ainda no primeiro tempo, o River também tem Garcé expulso ao desferir um pontapé em Vargas, mas segura o revés mínimo no placar até o fim na casa rival. Um lucro: o árbitro Claudio Martín não assinalou uma mão de Coudet dentro da área no fim do jogo e também anulou um gol boquense, de Calvo.

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Três semanas depois, novamente na Bombonera, Schiavi pôs o Boca na dianteira. À direita, Abbondanzieri ferido pelo expulso Gallardo

As semis tiveram catimba também extra-campo: “antes desses jogos, Bianchi lançou isso do complô dos árbitros para desfavorecer o Boca. E logo depois saiu que Taddeo, o bandeirinha, era torcedor do River. E quem terminou melando nós? Taddeo. Nesse momento não abri a boca porque supostamente o River não tinha o costume de falar dos árbitros. (…) Se falasse, talvez passássemos nós. (…) Futebolisticamente fomos muito superiores ao Boca”, desabafou em 2008 o então técnico do River, Astrada, ícone dos anos 90: é o jogador mais vezes campeão no clube, com dez Argentinos (recorde no país), a Libertadores 1996 e a Supercopa 1997, até hoje a última taça internacional do Millo. Parara de jogar um ano antes, com o pai sequestrado.

Na volta, o Boca se segura no primeiro tempo e tem a sorte de Héctor Baldassi não assinalar um pênalti claro de Schiavi ao rodopiar um Maxi López impedido assim de cabecear bom cruzamento de Cavenaghi que ainda raspa na trave. Mas mal começa o segundo e Vargas (o mesmo colombiano que depois jogaria no Internacional), que já havia recebido cartão amarelo após entrada em Lucho González, é expulso aos 20 segundos, ao segura-lo quando Lucho se aproximava da área após drible de vaca em Clemente Rodríguez. Lucho que aos 6 minutos igualou o placar agregado. Ele quase marcara no último lance do primeiro tempo em cabeceio salvo perto da linha por Perea, mas acertou chute na entrada da área após correr com a bola desde antes do meio-campo. Ela ainda tocou na trave antes.

O River teria praticamente toda uma etapa e um homem a mais para marcar outros gols. Com vantagem numérica e buscando ampliar o placar, Astrada substitui Mascherano, único amarelado em campo no clube, por Salas aos 15. Maxi López recebe leve puxão de Schiavi na grande área, mas insiste e obriga Abbondanzieri a espalmar a escanteio. Maxi que depois deu passe que não chegou a um Cavenaghi diante do gol vazio. E aí entrou em ação o jogo psicológico de um especialista nessa nuance da Libertadores: o intocável ídolo xeneize Barros Schelotto. Sofre falta, depois encaminhada a escanteio e se aproveita do descontrole de torcedores e gente da comissão do River para gastar tempo. 

Anos mais tarde, Schelotto detalhou: “fui chutar um escanteio, me atiraram uma garrafa da arquibancada, a mostrei ao bandeirinha e de repente vi um cara me xingando desde atrás das placas de publicidade. Não sabia quem era, depois vi que era Sodero. Como Hernán Díaz e Corti [assistentes de Astrada] também começaram a me xingar, aí sim segui e disse ao árbitro que havia outros senhores. A verdade? Precisávamos de tempo porque o River nos ganhava de 1-0, tinha um jogador a mais e vinha, assim aproveitei para descansar…”. A sorte voltou a sorrir ao Boca: o River, que tinha um homem a mais, repentinamente se viu com um a menos – Rojas rompeu os ligamentos do joelho em um choque. O River já tinha feito todas as substituições. O bandeirinha Taddeo então relatou que foi xingado por Sambueza, que Schelotto fizera acreditar ter sido expulso e acabou realmente sendo, pela reclamação.

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Cinco minutos após Tévez empatar no Monumental, Nasuti marca os 2-1 aos 50 do segundo tempo e dá sobrevida ao River: não havia critério de gols fora de casa na época

O River teria que seguir com nove em campo a partir dos 40 do segundo tempo. Schelotto talvez não pretendesse tanto mas executou quase uma jogada de xadrez. Bianchi então fez uma substituição certeira, Cagna por Cángele. E este, em sua primeira jogada pela esquerda, cruzou rasteiro aos 43 e meio. Juan Fernández não conseguiu chegar para afastar e a bola chegou ao endiabrado Tévez completar de primeira girando com a canhota e calar um Monumental já incrédulo antes por ter visto uma situação tão favorável vir se dissipando. Na comemoração, Carlitos não se conteve, cacarejando como uma gallina, apelido pejorativo dado aos torcedores do River justamente pelo clube ter “amarelado” em outra Libertadores, na final que perdeu em 1966 para o Peñarol após abrir 2-0. Tévez foi logo expulso.

O jogo rumou a 7 minutos de acréscimo para o River buscar nova vantagem após não saber trabalhar a inicial. E aos 50 o Monumental desentalou: Cavenaghi cobrou falta longe, Montenegro desviou de cabeça, a bola chegou ao defensor Nasuti, livre, emendar com a canhota e desaparecer no monte humano que colegas formaram sobre ele. Nicolás Burdisso já contou o que houve depois: “Bianchi nos disse: ‘é uma lástima, mas vamos ganhar igual’. Nosso cobrador era o Flaco [Rolando Schiavi], então Carlos disse ‘primeiro vá você, Rolando’. Em seguida avisei que eu também chutaria. ‘O quarto, Nicolás; segundo e terceiro vão Ledesma e Álvarez’. Todos nos olhamos, porque os garotos não haviam chutado nunca. Aí saltou Cángele: ‘eu vou de sexto’. Então Bianchi disse: ‘mas falta o quinto’, e aí se ofereceu Villarreal”.

Salas, no alto à direita. Schiavi, no alto à esquerda – Lux encostou mas não tirou o petardo do gol. Montenegro, no limite do canto direito. Álvarez quase no meio do gol. Cavenaghi como Montenegro. Ledesma acertando reto no gol. Lucho à esquerda, deslocando Abbondanzieri. Burdisso deslocou, no alto à esquerda. Foi então que Maxi chutou à esquerda, mas à meia-altura e não no canto, fácil para Abbondanzieri espalmar: ele voou exatamente nas direções que todos do River haviam escolhido na polêmica decisão por pênaltis contra o Santos Laguna nas oitavas (em que Montenegro perdera sua cobrança mas um passo mínimo à frente do goleiro fez ela ser recobrada). E Villarreal acertou no meio. Restou aos 70 mil no Monumental ficarem entre os aplausos à luta ou a engolir em seco.

A vitória boquense cobrou seu preço: “todo esse desgaste emocional (…) depois nos afetou na final que perdemos com o Once Caldas”, já disse Burdisso. Haveria nova decisão por pênaltis e ele, Schiavi, Cascini e Cángele perderam os seus. Lamentos que não se compararam ao do River, mesmo com título argentino vindo dez dias após aquele 17 de junho. Palavras de Astrada: “perdemos nós [no sentido de que não foi o Boca quem venceu]. E em um escritório [sobre não ter rebatido aquelas insinuações de Bianchi]. Eu estava jogando a vida nesse jogo. Se ganhássemos essa Libertadores em nosso primeiro semestre [sobre o primeiro do trabalho dele de técnico] e eliminando o Boca, teria dez anos de contrato no River. (…) Sem dúvidas nos equivocamos, não devíamos ter reagido [às provocações de Schelotto], mas sabes quão difícil é?”.

(*) Paráfrase de célebre metáfora que Jorge “El Filósofo” Valdano usou para descrever a si mesmo por não ir à Copa 1990: ele se aposentara em 1987 e vinha treinando por seis meses após o técnico Bilardo lhe dar a ideia de jogar mais uma Copa, mas se lesionou poucos dias antes da convocação.

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Mas o Boca terminaria sorrindo de novo, graças ao pênalti perdido pelo pobre Maxi López (aí reclamando de pênalti não marcado de Schiavi nele): melhor em campo na Bombonera pelo Clausura e de boa partida no Monumental, saiu como vilão

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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