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Escócia, terra fundamental ao futebol argentino

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Independiente ergue a Sul-Americana 2010 após vencer o Goiás. Repare no brasão da camisa azul-marinha

Hoje a Escócia decidirá em plebiscito se, após 400 anos, separa-se da união com a Inglaterra. Trata-se de uma terra fundamental ao futebol argentino, apesar da decadência atual. Os primórdios do esporte bretão entre os hermanos estão diretamente atrelados à comunidade escocesa na Argentina. A importância da nação do uísque, gaita de foles, Nessie e kilts também vai além, tendo marcos na passagem de Maradona pela seleção e ainda hoje reluz em camisas de um gigante, o Independiente.

Das Highlands veio Colin Bain Calder, sócio-fundador e primeiro presidente do Rosario Central. Os primeiros campeões argentinos foram integralmente compostos por imigrantes escoceses, com os nomes das equipes contendo referências diretas às raízes: Saint Andrew’s e Old Caledonians. Santo André, com sua cruz em forma de X marcando a bandeira nacional, é o santo padroeiro da Escócia, chamada de Caledônia pelos antigos romanos. Os dois dividiram o título da primeira edição do Argentinão, em 1891. A comunidade britânica na Argentina, bastante numerosa, criou o campeonato nacional de futebol mais antigo do mundo fora do Reino Unido.

Curiosamente, o primeiro campeonato escocês encerrou-se naquele mesmo ano e também com o título dividido, entre Dumbarton e Rangers. Na Argentina, porém, hoje está mais aceito por mídia e historiadores que o Saint Andrew’s foi o único campeão, pois venceu o Old Caledonians em jogo-extra – só que a partida não valia a taça, e sim com quem ficariam as medalhas, pois a AAFL não tinha receita para pagar por duas coleções. A AAFL era a Argentine Association Football League, que não teve sucesso em produzir uma nova edição do campeonato para 1892 e se extinguiu. Uma nova AAFL foi fundada em 1893 e desde então o torneio é disputado ininterruptamente.

A atual AFA (Asociación del Fútbol Argentino) considera-se sucessora desta segunda AAFL e oficialmente não reconhece o torneio de 1891, razão pela qual a Copa Centenário (clique aqui) foi realizada em 1993 e não em 1991. E a nova AAFL também teve influência escocesa direta: seu fundador é considerado “o pai do futebol argentino”: Alexander Watson Hutton, imigrante entusiasta da prática esportiva nos colégios que dirigia, primeiro no próprio Saint Andrew’s (os primeiros campeões eram de escola de mesmo nome) e depois no Buenos Aires English High School, cujo time participou do certame. Watson Hutton atuou nele como árbitro. Mas a BAEHS só viraria potência na virada do século, com seu primeiro título vindo em 1900. Antes, o primeiro bicho-papão foi o Lomas Athletic, cujos escoceses William Leslie e Willie Stirling foram artilheiros do campeonato. Leslie, já pelo Quilmes, chegaria a jogar a primeira partida da seleção argentina, em 1902, marcando gol.

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Saint Andrew’s, o primeiro campeão argentino. Alexander Watson Hutton, considerado o pai do futebol argentino, e seu filho Arnoldo (recordista de gols no clássico com o Uruguai: fez seis) na seleção

Em 1901, o time do colégio de Watson Hutton passou a chamar-se Alumni. O clube, pouco sustentável financeiramente, deixaria o futebol dez anos depois após enorme sucesso nos campos: venceu dez títulos. Até hoje, só “os cinco grandes” – Boca, River, Racing, Independiente e San Lorenzo – o ultrapassaram. O Vélez conseguiu seu décimo título no ano passado, exatamente cem anos depois que a extinção do departamento de futebol do Alumni foi oficializada, em assembleia de 1913. E o Alumni, naturalmente o celeiro da seleção na época (a Argentina já chegou a entrar em campo com oito dos onze jogadores sendo do clube) esteve cheio de jogadores de origem escocesa. Um foi o próprio filho de Alexander Watson Hutton: Arnoldo Watson Hutton, nascido em Buenos Aires.

Artilheiro do campeonato de 1910, Arnoldo era descrito como cerebral e potente ao mesmo tempo, dono de chute demolidor, chegando à seleção por méritos próprios. Veio ao Alumni após formar-se em medicina em Edimburgo. Outros escoto-argentinos no clube eram os Brown, netos de imigrante que desembarcara junto com a primeira leva de escoceses na Argentina, nos anos 20 do século XIX. Houveram seis Brown na seleção: os irmãos Jorge, Carlos, Alfredo, Ernesto e Eliseo e um primo, Juan.

Jorge, duas vezes artilheiro do campeonato argentino, foi tido como o primeiro jogador-símbolo da seleção, havendo até clube com seu nome. Eliseo foi quatro vezes artilheiro do campeonato argentino, só sendo superado nisso por Maradona dentre os profissionais. Alfredo também foi artilheiro, uma vez. Carlos, ao viajar para estudos nas Escócia, foi convidado a profissionalizar-se lá como jogador, quando receber dinheiro para jogar estava longe de ser cogitado na Argentina. E Ernesto é o recordista de títulos argentinos, pois esteve nos dez do Alumni (com só 15 anos no primeiro, em 1900) e no primeiro do Quilmes, em 1912. Watson Hutton e os Brown, como muitos do clube, praticavam outra tradição de origem moderna escocesa: eram maçons.

O Quilmes era um clube de origem britânica também, adotando o branco da seleção inglesa e o azul marinho da escocesa, e havia recebido boa parte dos ex-jogadores do Alumni. O primo dos irmãos Brown, Juan, único da família que chegou a jogar contra o Brasil e a disputar a Copa América (na edição inaugural, em 1916), é exatamente quem mais jogou pela Argentina vindo dos Cerveceros, que só voltariam a ser campeões uma outra vez, mais de sessenta anos depois, em 1978.

Alumni de 1910 e a estreia da camisa alviceleste na seleção em 1908, com Arnoldo Watson Hutton e vários da família Brown (Alfredo, Jorge, Juan, Ernesto e Eliseo. Faltou Carlos)

O Alumni era tão respeitado que inspirou ao menos dois uniformes de prestígio: sua vestimenta (camisa com listras horizontais alvirrubras, calções e meias negras) foi adotada integralmente pelo Estudiantes, fundado em 1905. E o Uruguai adotou a icônica camisa celeste com calças e meias negras, cores ausentes na bandeira, para homenagear o River Plate uruguaio, que com essa combinação vencera o Alumni em amistoso de 1908 – a camisa original desse River era parecida com a do adversário. Seria uma homenagem ao feito e talvez também uma provocação aos derrotados, que tanto enchiam a seleção rival. O Alumni hoje ainda desfila nos gramados argentinos, mas nos de rúgbi, bem como o San Andrés, clube formado por ex-alunos da escola do Saint Andrew’s.

A partir dos anos 10, o futebol argentino se latinizou e a influência britânica foi sumindo, deixando para trás tempos de jogadores com sobrenomes típicos escoceses, como os de Carlos Buchanan, Walter Buchanan, Guillermo Ross (todos do Alumni), Colin Campbell (Estudiantes de Buenos Aires), Roberto Cochrane (Tiro Federal), Arturo Forrester (Belgrano Athletic, o rival do Alumni), Cándido Maccoubrey (Sportivo Barracas) e Juan Murray (Quilmes), todos usados pela seleção até os anos 20. O zagueiro Eleuterio Forrester, dos anos 30 e grande ídolo do Vélez, foi outro daqueles primeiros tempos. Em 1918, o fim da Primeira Guerra Mundial inspirou o nome do Douglas Haig, campeão da 3ª divisão em 2010. Douglas Haig era um marechal escocês líder das tropas britânicas.

Nos anos 40, o Boca teve o zagueiro Luis Laidlaw, que passaria pelo Botafogo, sem êxito duradouro em ambos. E o Newell’s adquiriu, em pacote em 1948, os três únicos escoceses nativos utilizados na era profissional da elite argentina, todos obscuros na própria terra natal e de serviços efêmeros aos rosarinos: o ponta-esquerda Stewart MacCallum (vindo do time galês Rhyl), o meia-direita William Kilpatrick (ex-Dunfermline, Stenhousemuir e Morton) e o centroavante Donald MacDonald, do Kilmarnock. Desde então, só outro jogador de origens escocesas teve algum destaque: o lateral Carlos MacAllister, ídolo de Argentinos Jrs e Boca na virada dos anos 80 para os 90. Com retrospecto invicto pela Argentina, El Colorado (era ruivo, como um típico escocês) chegou a ser cotado para a Copa 1994. Mas suas raízes são indiretas: seus antepassados MacAllister europeus mais próximos eram irlandeses.

Apesar do sumiço, cem anos depois vez ou outra os símbolos escoceses se fazem presentes no futebol argentino. É que o primeiro uniforme do Independiente fazia referência ao Saint Andrew’s. A camisa era branca com um brasão azul com a cruz de Santo André e as iniciais IFC, de Independiente Football Club, e as calças e meias no característico azul-marinho escocês, mantidas nessas cores após a camisa passar a ser vermelha. Essas origens são resgatadas com alguma frequência em camisas reservas, algumas inclusive em azul-marinho. Foi assim que os rojos decidiram a Intercontinental de 1972 contra o Ajax e tiveram sua última glória internacional, a Sul-Americana 2010, sobre o Goiás. Com a camisa branca, papou a Supercopa 1995 sobre o Flamengo em pleno Maracanã com 100 mil ansiosos por um título para o centenário flamenguista. Essas camisas reservas também reproduzem o antigo brasão.

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A primeira camisa do Independiente e as origens relembradas nos anos 60, 70 (Intercontinental 1972, contra o Ajax), 80 e 90 (Supercopa 1995, contra o Flamengo – o de boca aberta é Mondragón, o mais velho das Copas)

A Escócia também está marcada na carreira do ícone máximo do futebol argentino: foi contra ela que Maradona marcou seu primeiro gol pela Argentina, em um 3-1 em 1979 dentro de Glasgow (Leopoldo Luque fez os outros) em uma época em que os escoceses tinham a mais forte seleção britânica. E foi contra eles que Dieguito iniciou sua trajetória de técnico na Albiceleste, também no Hampden Park, em amistoso em 2008 – outra vitória, 1-0, gol de Maxi Rodríguez.

Argentina e Escócia se enfrentaram outras duas vezes: 1-1 na Bombonera em 1977, gol de Passarella, em jogo que crucificou o defensor Vicente Pernía por expulsão (perderia a Copa 1978 e só seu filho Mariano iria a um mundial, pela Espanha, em 2006); e outro desagradável, derrota de 1-0 em Glasgow em amistoso pré-Copa em 1990. Culpado, o brilhante zagueiro-artilheiro Edgardo Bauza (entenda o porquê), técnico do San Lorenzo recém-campeão da Libertadores, iria à reserva para o mundial.

De forma inversa, alguns argentinos também marcaram o futebol escocês. Caniggia é o único convocado de lá pela seleção: já no ocaso da carreira, com a Scottish Premier League ainda com algum prestígio (entre 1974 e 2002 a seleção, que quase havia ido à Euro 2000, perto de eliminar a rival Inglaterra fora de casa, se ausentara só das Copas 1994 e 2002), ele teve certo destaque no Rangers o suficiente para ser desenterrado por Marcelo Bielsa em 2002 e acabar indo à Copa do Mundo. Já havia ido bem no Dundee, que após a saída do astro encheu-se de argentinos para a temporada 2001-02: Juan Sara, Fabián Caballero, Luis Carranza (ex-Racing, Boca e Independiente e que jogou ainda por Quilmes e um clube chamado Alumni), Walter del Río, Alberto Garrido e Lucas Gatti (filho do mitológico goleiro Hugo Gatti) e até adotou uma camisa alviceleste como reserva. Pelos dois clubes, Caniggia fez gols em clássicos contra Celtic, em título da Copa da Escócia, e Dundee United.

Dado extrafutebolístico: se a Escócia optar pelo sim à independência, ela virá exatamente no ano em que se completam 700 da batalha de Bannockburn (a da cena final do filme Coração Valente), que marcara em 1314 a primeira independência escocesa junto à Inglaterra. Essa independência durou até 1603, com a união das coroas após o rei escocês Jaime VI, parente mais próximo da rainha Elizabeth I, que faleceu naquele ano sem filhos, assumir o vazio trono vizinho, mas mantendo o centro político em Londres.

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Forlán com outra camisa “escocesa” do Independiente

Abaixo, especiais relativos a diversos tópicos levantados na nota:

Futebol e Rugby – Parte 3: o Club San Andrés

Futebol e Rugby – Parte 4: o Asociación Alumni

100 anos sem o multicampeão Alumni

105 anos da estreia da camisa alviceleste na seleção

100 anos do primeiro título do Quilmes e o fim de uma era

Familiares na Seleção Argentina – Parte 1: os Brown

Familiares na Seleção Argentina – Parte 8: Pais & Filhos (II)

Caniggia, o Pássaro do Povo

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Maradona no dia em que marcou seu primeiro gol pela Argentina, em Glasgow. Caniggia pelo Rangers em clássico no Ibrox com o Celtic. E MacAllister, último escoto-argentino célebre no futebol

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

2 thoughts on “Escócia, terra fundamental ao futebol argentino

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