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Argentinos Jrs e Ferro Carril Oeste se pegam na 2ª divisão, 30 anos após lutarem por elite e Libertadores

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Os maestros Márcico e Borghi disputaram até vaga para a Copa 1986

Argentinos Jrs e Ferro Carril Oeste têm inegáveis semelhanças. Ambos foram fundados há 110 anos, em 1904, e no mesmo mês, para começar. Considerados pequenos, experimentaram seu auge nos anos 80, década em que, cada qual por suas razões, eram excelências de clubes-modelo. Os bairros de La Paternal e Caballito disputaram palmo a palmo o título argentino de 1984, perto de completar exatos 30 anos. E se pegaram de forma duríssima também na Libertadores de 1985, onde tiveram felizes trajetórias no Brasil. Infelizmente, a decadência atual também os uniu. Estão ambos na segundona, onde se encontraram ontem. E longe da generosa classificação atual de acesso.

“São dois esquemas. O time do Argentinos Jrs é o mais ofensivo, exibe um futebol vistoso e alegre, que relembra a grande fase do futebol argentino. Tem dois pontas agressivos, Ereros e Castro, velozes e habilidosos que buscam quase sempre as finalizações do perigoso e objetivo centroavante Pasculli. O meio-campo se destaca pela criatividade e aplicação na marcação. O cérebro é o grandalhão e aparentemente lento médio-volante Batista, que dá início às jogadas de ataque, bem assessorado pelo veloz, resistente e habilidoso Videla. Na defesa se destacam o experiente goleiro Vidallé e o veterano Olguín, campeão mundial de 1978 e tido como o melhor líbero argentino na atualidade”.

“(O Ferro) tem estilo de jogo semelhante ao do Fluminense. Defende-se muito bem em bloco e é irresistível no contra-ataque. Não tem estrelas, vale pela força do conjunto. A base está formada há cinco anos com os zagueiros Cúper e Garré, os armadores Arregui, Brandoni e Martín – o ponta Oscar Acosta volta para formar o quarto homem no setor – e na frente Márcico, um centroavante oportunista. Para vencer o Ferro, só com um jogo de paciência, rodando, tocando a bola, tentando superar a forte marcação. É um time que mete um gol e se garante na retranca. Dificilmente um adversário consegue virar o jogo”.

As declarações acima foram dadas à revista Placar em 1985, em entrevista com o técnico argentino José Omar Pastoriza, campeão da Libertadores de 1984 pelo Independiente (confira essa campanha clicando aqui) e então recém-contratado pelo Fluminense exatamente para guiar o Tricolor pela Libertadores de 1985, onde o Flu e o Vasco encarariam a dupla argentina na fase de grupos – Pastoriza, porém, não duraria um mês no cargo, saindo ainda antes da estreia na Libertadores após desgosto com os dirigentes cariocas, fato que mencionamos em especial dedicado a ele: clique aqui.

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Verdolagas celebram os 3-0 sobre o River em pleno Monumental na final nacional de 1984; Domenech, outro craque do Argentinos Jrs, não se inibe contra Platini em Tóquio pela Intercontinental 1985

Pastoriza não mentia. O Ferro era um time tido como chato, eficiente para ganhar jogando feio, acusação com resposta na ponta da língua da torcida verdolaga“Dicen que somos un equipo aburrido/que especulamos, que jugamos para atrás/me chupa un huevo, todo el periodismo/a Caballito cada vez lo quiero más” (“Dizem que somos um time chatíssimo/que especulamos, que jogamos para trás/me chupa um testículo, todo o jornalismo/a Caballito cada vez eu quero mais”, em tradução livre). Mas o time sabia ser fulminante: foi campeão nacional de 1984 sapecando 3-0 antes dos 35 do primeiro tempo sobre o River de Francescoli. Dentro do Monumental. Márcico deu passe para dois gols e, após receber outro dele, Gargini sofreu pênalti que o mesmo Márcico converteria. Saiba mais clicando aqui.

O título nacional de 1984 foi o segundo (o primeiro foi o de 1982) e último do Ferro Carril Oeste, que teve uma década gloriosa muito além do futebol, com títulos nacionais e internacionais em vários outros esportes, especialmente no vôlei e no basquete – o time do bairro de Caballito seria premiado até pela UNESCO em 1988: confira aqui. Se não venceu mais, foi porque em seguida emergiu o belíssimo plantel do Argentinos Jrs, um Tifón (“tufão”, um dos apelidos do clube) a descarrilar a locomotiva verde. O grande maestro era Claudio Borghi, o primeiro especulado como “novo Maradona”. Roubou vaga na Copa de 1986 que poderia ter sido do grande maestro do FCO, Alberto Márcico.

Maradona fez o Argentinos Jrs ser conhecido mundialmente, mas só conseguiu títulos individuais pelo clube de La Paternal (cinco artilharias nos campeonatos argentinos profissionais, recorde exclusivo de Dieguito). Nunca foi campeão. O time só teria seu primeiro título em 1984, no campeonato metropolitano. Ele já havia ido bem no torneio nacional, onde caiu nas quartas-de-final para o Talleres – se tivesse avançado, encararia nas semifinais justamente o Ferro. O mencionado Pasculli, outro que aliás foi à Copa de 1986, havia terminado como artilheiro daquele nacional. Se o Argentinos não tinha a riqueza poliesportiva do concorrente, respondia com invejável trabalho de base que promoveria depois também Redondo, Sorín, Riquelme, Cambiasso, Insúa…

Pasculli voltaria a marcar muitos gols no metropolitano: foi vice-artilheiro, com 21 gols, e logo abaixo, em terceiro, ficara Márcico, com 17. Outra vez Caballito sediou a taça, só que ela foi para o Argentinos Jrs: o estádio do Ferro Carril Oeste é costumeiramente alugado por outros clubes, pela posição geográfica central do bairro em Buenos Aires, e recebeu na rodada final o 1-0 dos vermelhos sobre o Temperley, enquanto o FCO foi à La Plata encarar outro time com chances de taça, o Estudiantes: eles ficaram no 1-1 e por um ponto o título se festejou na Paternal.

httpv://www.youtube.com/watch?v=-7MLgalXNpc&hd=1

O metropolitano de 1984 foi precisamente o primeiro campeonato com três clubes fora dos “cinco grandes” (Boca, River, Racing, Independiente e San Lorenzo) disputando a taça e sintetiza bem a década terrível para o quinteto: em crise desde os anos 70, San Lorenzo e Racing não ganharam um único título na elite e foram até rebaixados (o Racing caíra em 1983 e nem como vice conseguiu voltar em 1984), assim como o Huracán, até então ainda visto simbolicamente como “sexto grande”. Boca e River atravessaram grandes jejuns: o auriazul viveu sua maior seca nacional, sem taças entre o maradoniano Metropolitano 1981 e o Apertura 1992, quando foi liderado exatamente por Márcico, e teve exatamente em 1984 seu ano mais negro, algo que explicamos aqui.

O River daria a volta por cima em 1986, com tríplice coroa: campeão nacional e, pela primeira vez, da Libertadores e Intercontinental. Mas foi um ponto fora da curva, pois não ganhou títulos de 1981 a 1986 (então o maior jejum do clube depois dos terríveis dezoito anos de 1957-75; depois, foi superado pelos seis de 2008-14), e depois de 1986 a 1990. A dupla havia apostado alto com os empréstimos em dólares de Maradona e Kempes em 1981. Em campo, o benefício veio só a curto prazo, com o Boca vencendo o Metropolitano e o River, o Nacional – ambos sobre o Ferro. Mas as despesas subiram à estratosfera junto com a alta da moeda ianque com os desarranjos econômicos do governo militar, aumentados após a derrota nas Malvinas, e os astros saíram logo após a Copa 1982.

O Independiente foi a exceção à regra, mas até as suas conquistas rarearam em relação aos anos 70 e 60. Assim, os anos 80 viram como nunca títulos de não-grandes: Rosario Central, Estudiantes, Ferro e Argentinos ganharam dois cada, e o Newell’s, outro, além de chegar a um vice de Libertadores em 1988. Até Quilmes e Racing de Córdoba conseguiram vices. Também roubavam a cena, embora igualmente sem taças, equipes como Talleres e outros sumidos, Temperley e Deportivo Español, que alcançaram terceiros lugares. Lanús, Banfield, Tigre, Arsenal e Godoy Cruz? Todos normalmente na segundona ou abaixo. O Vélez também adormeceu e por sinal viveu a única década onde mais perdeu do que ganhou o seu clássico – que é contra o Ferro (que naqueles anos chegou a impor dois 4-0 na casa rival).

Ferro e Argentinos Jrs não se chocaram só naquele Metropolitano 1984. Os vermelhos do técnico José Yudica se provaram os asa-negras dos verdes do treinador Carlos Griguol em torneios subsequentes. No nacional de 1985, eles se encararam nas semifinais, em jogo-único em campo neutro, em abril. E deu Argentinos Juniors, 3-0. No segundo semestre, começaram as disputas da Libertadores. Como campeões dos dois campeonatos argentinos de 1984, eles se encontraram na mesma chave – até os anos 90, a Libertadores, em nome da logística mais complicada da época, costumava unir duplas dos mesmos países na fase inicial. O torneio era muito mais duro que hoje e na época só o líder avançava de fase. E os dois estenderam a luta pela vaga única para além do calendário programado, pois foi preciso um jogo-extra.

httpv://www.youtube.com/watch?v=RsNqwePan-U&hd=1

O Ferro começou com tudo, vencendo o Argentinos Jrs fora de casa na estreia. Fez bonito contra os brasileiros: enfiou 2-0 no Vasco tanto em Buenos Aires como em São Januário, e soube sair do Maracanã com um precioso 0-0 contra o Fluminense, batido antes em Caballito. Só que os verdolagas tinham uma monstruosa pedra no sapato que era aquele regulamento rigoroso e a fase fantástica do concorrente: o Argentinos Jrs, após a estreia, teve que jogar duas vezes seguidas no Rio de Janeiro, e venceu ambas – o choro de emoção de Borghi no vídeo acima emociona. No quarto jogo, acabou cedendo em casa um 2-2 com o Vasco, mas em seguida teve revanche com o Ferro, vencendo-o em Caballito por 3-1.

O Argentinos Jrs venceu depois o Flu em casa e só não se classificou porque o Ferro, no último jogo da chave, venceu o Vasco no Rio, o que igualou a dupla argentina em 9 pontos. Um jogo-extra fez-se necessário e Borghi brilhou, marcando duas vezes na vitória por 3-1, de virada. As lamentações em Caballito só poderiam aumentar conforme o carrasco avançava: na fase seguinte, o Bicho eliminou o então campeão Independiente e depois venceria o torneio sobre o grande América de Cali da época. Por muito pouco, não bateu a Juventus de Platini em um jogaço de igual para igual em Tóquio.

O gol verdolaga naquele jogo-extra foi do lateral Garré, o único daquele grande FCO premiado com lugar no elenco da seleção campeã de 1986, ano que marcou o fim da fase áurea da dupla: Márcico havia ido ao Toulouse ainda em 1985 e o Ferro já não foi o mesmo. O Argentinos também não: Borghi, apesar de uma Copa ruim, rumou ao Milan em 1987 e o Bicho também decaiu. Dez anos depois, em 1996, voltou à segundona pela primeira vez em 40 anos. Em 2000, foi a vez do Ferro ser rebaixado, pela primeira vez desde os anos 70 – até hoje não voltou. O seu rival de 30 anos atrás ficou um iô-iô nos anos 2000 e voltou a cair agora, ao fim da temporada 2013-14. A exceção foi o Clausura 2010, seu terceiro e último troféu na elite e único após os saudosos anos 80.

O técnico em 2010 era o mesmíssimo Borghi, que voltou à velha casa após o recente rebaixamento. Mas, mesmo com Riquelme, ele viu dessa vez o Ferro surpreender e vencer por 1-0 dentro de La Paternal. O resultado foi a primeira vitória do FCO na temporada 2014-15 e o jogou para 9º entre 11 clubes no grupo A. O Argentinos estacionou em 7º. Terrível: na temporada em que a segundona premiará com acesso à elite absurdamente os cinco primeiros de cada grupo, a outrora poderosa dupla de 1984-85 poderá não subir. Para entender ainda mais esse contraste, conheça um pouco da história de cada, retratada pelos 11 jogadores do “time dos sonhos” que elegemos para os 110 anos que ambos completaram no mesmo mês, em agosto deste 2014: clique aqui para o Ferro e aqui para o Argentinos.

Em breve, aliás, faremos outros 11 jogadores para 110 anos: os que outra viúva de 1984 completarão em outubro, o Atlanta, que esteve pela última vez na elite naquela ocasião e que hoje está na terceirona.

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À esquerda, o encontro pela Libertadores 1985, quando o Ferro venceu o Argentinos em Paternal (lance do gol, de Esteban González, que marcaria sobre Vasco e Fluminense também). Resultado que se repetiu ontem, mesmo contra Riquelme

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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