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Há 20 anos, Chilavert fazia seu primeiro gol de falta

 

Hoje está banalizado, mas há 20 anos era um assombro. Não foi o primeiro gol de Chila, que já havia marcado, mas só de pênalti. As faltas passariam a ser a marca registrada, por vezes até ofuscando como ele já era bom ao se focar em apenas impedir gols. A primeira vítima foi o Deportivo Español, hoje sumido mas que entre meados dos anos 80 e 90 aprontava – falaremos mais dele em breve. Foi o único gol da partida, abrindo caminho para algo que viraria ícone do futebol dos anos 90.

Não era uma habilidade desconhecida entre os argentinos. Ainda nos tempos de San Lorenzo, ele recebeu sua primeira autorização para o que era uma heresia. “Você não sabe como Chilavert pegava na bola desde garoto! (…) Nos treinos ele gostava de praticar tiros livres e pegava bem firme”, comentou em 2013 o técnico daquele San Lorenzo, Héctor Veira. Foi quem primeiro deu a “licença” ao paraguaio, em 1988, em um 2-2 contra o Banfield.

A bola não entrou e a ousadia grande demais tardou para receber nova chance – vale lembrar que ao marcar de pênalti pelo Real Zaragoza um ano depois, em 1989, Chilavert já gerara comoção tamanha que não voltou a tempo para as suas traves, e a Real Sociedad marcou em seguida chutando desde o meio-campo no reinício.

No Vélez, ele marcou pela primeira vez em 1993, de novo de pênalti, exatamente o gol do título argentino, o primeiro do clube após 25 anos, sobre o Estudiantes. A revista Placar retratou na época mais como folclore do que como a arma recorrente que a habilidade viraria ao fim da década.

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A primeira falta de Chilavert em jogos oficiais: pelo San Lorenzo contra o Banfield, em 1988

Naquele 2 de outubro de 1994, o Vélez estava nas nuvens. Um clube que até o ano anterior tinha dentro da Argentina apelo limitado ao seu bairro de Liniers e arredores havia acabado de, cerca de um mês antes, ser campeão da Libertadores, no Morumbi sobre o São Paulo de Telê (com Chilavert, na decisão por pênaltis, defendendo um do oponente e convertendo o que chutou): leia aqui. Mas o batedor oficial era o capitão, que ainda não era o paraguaio – e sim o defensor Roberto Trotta. Que naquela tarde chuvosa contra o Español estava ajeitando a bola, surpreendendo-se ao ver o colega chegar atrás desde a grande área. E não ficou nada animado com a diferente ordem de Carlos Bianchi.

Em 2010, Omar Asad, autor dos gols velezanos nas finais contra São Paulo e Milan, comentou: “esse vestiário era terrível, todos ganhadores. No dia em que Chila meteu seu primeiro gol de tiro livre, no Español, Trotta entrou superesquentado no vestiário, mas o técnico também ia de frente. ‘O que houve, Roberto? Veja que aqui quem manda sou eu’, lhe disse. Havia muito temperamento, muita raça, por isso é mais meritório ainda do careca, havia que manejar esses leões. Há que ter uma autoridade forte para saber impor os limites. Se o jogador não vê isso, te passa por cima”.

Há outra versão, levantada pelo historiador velezano Esteban Bekerman. No vestiário, Bianchi viu necessário aumentar o tom e Trotta protestou mais: “o único que me levanta a voz assim é meu pai”. O treinador encerrou imediatamente a discussão: “sim, mas aqui não está teu pai e o patrão sou eu”. Inteligente, Chilavert tratou de conter vazamentos, na edição pós-jogo da revista El Gráfico, quando o repórter comentou que ” de fora se notou que Trotta estava enojado, inclusive quase não festejou o gol”. A resposta foi categórica: “são calenturas do momento. Ademais, eu prefiro um companheiro irritado porque isso significa que é ganhador, que tem personalidade. E Trotta conta com todos esses atributos. Não aconteceu nada, está tudo bem… não busque onde não há [nada]”.

Controle exercido, os ânimos se apaziguariam sem rancores ao menos entre Trotta e o treinador. A ponto de, daquele Vélez, Trotta ser justamente o único chamado pelo técnico em 1996 para ir junto à Roma, que contratara Bianchi. A Roma também quase levou o paraguaio em 1996, quando Chila recebeu em setembro suspensão (que não se efetivaria) de treze meses em função de briga campal contra o Gimnasia LP ainda em 1994; Trotta teria lhe telefonado convidando-o à Roma, argumentando que usaria as origens italianas para buscar a cidadania local para abrir ao ex-colega uma das vagas de estrangeiro.

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Asad, Bianchi, Trotta e Chilavert, com a Libertadores. Ele usa a mesma camisa consagrada em seu primeiro gol de falta, registrado na foto que abre essa matéria

Se a relação do defensor com Bianchi se acalmou, com o goleiro a trégua não foi duradoura. Em 1997, se encararam como adversários na Recopa. E Trotta se deu mal, sendo um dos que desperdiçaram pênaltis pelo River – embora conseguisse um troco em alto estilo em 2000, ao acreditar em cobrança com cavadinha após ser ordenado pela arbitragem a repetir um pênalti. Em 2005, entrevistado pela El Gráfico, ele espetou diversas Chila vezes: a primeira resposta já incluiu a fase “Chilavert diz muitas idiotices”. Indagado sobre quantos amizades teria preservado no Vélez, soltou um “amigos, dois: Juan Carlos Docabo e Víctor Hugo Sotomayor. Com os demais, salvo Chilavert, ficou uma boa relação”. E, se toparia formar uma dupla técnica com o ex-goleiro, foi enfático: “não. E é um não rotundo”.

Dois anos depois, foi a vez de a El Gráfico entrevistar Chilavert. Ele preferiu novamente amenizar, usando quase as mesmas palavras de 1994: “calenturas do momento. Respeito Roberto, é um grande sujeito e é partícipe da glória do Vélez”. Indagado como teria sido se Bianchi não bancasse a tentativa, o exaltou, como Asad: “eu teria seguido agarrando, e talvez não houvesse metido tantos gols. O ponto é que Bianchi me via sempre como ficava a praticar tiros livres depois dos treinos. Aí está também a grande visão de Bianchi, é uma virtude do treinador”.

Apesar do acerto do paraguaio há vinte anos, no Mundial contra o Milan, houve um pênalti para o Vélez e quem cobrou voltou a ser Trotta. Foi só mesmo a partir de 1996, com o embarque dele junto com Bianchi à Roma, que os gols do goleiro voltaram. O seguinte foi talvez o mais lembrado da carreira do goleiro: cobrou com sucesso desde antes do meio-campo em um 3-2 no River, ao notar Burgos muito adiantado. Ainda em 1996, na vitoriosa campanha do único bicampeonato velezano, marcou sobre o Boca também, em noite mágica com um de falta no ângulo e outro de pênalti sobre o desafeto Carlos Navarro Montoya.

No mesmo ano, o paraguaio voltaria a vazar Burgos, mas desta vez em um Argentina 1-1 Paraguai em pleno Monumental de Núñez (aquela suspensão, suspeitamente, foi anunciada na semana seguinte…). O folclore virava de vez um recurso habitual – e letal.

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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