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11 jogadores para os 110 anos do Atlanta

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Nunca ouviu falar no Club Atlético Atlanta? É um dos clubes mais tradicionais para o futebol argentino no século XX, apesar da falta de taças e de não figurar na elite há 30 anos. Representante do bairro portenho de Villa Crespo, reduto histórico da numerosa comunidade judaica, o Bohemio é bastante atrelado a ela, mas é um clube para todos. Tanto que, mesmo tendo alguns jogadores judeus de destaque, não elegemos nenhum entre os 11 para os 110 anos que os auriazuis completam hoje.

O apelido Bohemio não tem exatamente o sentido “noturno” da palavra, e sim porque o Atlanta era um tanto nômade nos primórdios, enquanto não tinha estádio próprio. Tendo entre seus fundadores os sobrenomes Larisse, Franco, Piaggio, Escribano, Rapallo e Orradre, o clube não “nasceu” judeu, ligação só surgida após fixar-se em Villa Crespo em 1922, e mesmo assim não de imediato. Uma conferida na lista dos presidentes até o fim dos anos 50 sugere isso: Sanz, Corbellini, Bernasconi, Chisotti, Álvarez Pereyra e Castro até a aparição de um certo León Kolbowski em 1959. Depois dele, além de Altamura, Masci, Chiarelli, Gallo, Moreno e o atual mandatário Gabriel Greco, presidiram os senhores Dalman, Diman, Bacsinsky, Jablkowski, Perelmuter, Bulaievsky, Rubinska e Korz.

O torcedor mais ilustre é o recém-falecido poeta Juan Gelman, que já recebeu o prêmio máximo da literatura espanhola, o Cervantes, mas já declarou que se sentiu mais honrado ao batizar a biblioteca do clube do coração. Mas é outra poesia, a do ucraniano César Tiempo (nome original Israel Zeitlin – Zeit é “tempo” em iídiche, Lin é o verbo “cessar”, daí o pseudônimo), autor de “Sol Semita”, a que melhor traduz a ligação hebraica com o bairro:

“O sol delata às cegas a idade das mulheres,
Embica nas fachadas cinzentas do bairro
Ou roda o subterrâneo da rua Corrientes
E vai verter seu vinho dourado em Villa Crespo
Se banha no arroio que cruza Triunvirato
Gira reverberando sobre o eixo do dia
E ao mediar a tarde regressa a consignar
Suas redondas moedas no Banco Israelita”

O poeta Juan Gelman visitando o clube em 2006

Corrientes é a grande artéria do bairro, cheia de comércio e atividades sócio-culturais. No meio de sua cruzada com a icônica Avenida 9 de Julio está o Obelisco (já no bairro de San Nicolás). Certo trecho da Corrientes era a Rua Triunvirato até os anos 30. Nesta trabalhava o russo Manuel Gleizer, cuja livraria virou polo literário que impulsionou a carreira de muitos escritores não-judeus também, como Jorge Luis Borges e Raúl Scalabrini Ortiz (nome de rua em Villa Crespo). Aliás, nos anos 30 o Atlanta se tornou o primeiro clube estrangeiro a visitar Pernambuco: 10-6 no Náutico, 7-2 no Sport, em 1937.

O estádio leva desde 2000 o nome do tal ex-presidente León Kolbowski, imigrante polonês – um de seus irmãos voltou à terra natal e foi exterminado no Holocausto – que, com fluência no polaco, no iídiche e no espanhol, participou de diversas associações de ajuda entre seus pares na Argentina. Ele teria chegado ao Atlanta via o Partido Comunista Argentino, do qual era filiado e que tinha interesses em ampliar influência no reduto dos judeus (que enchiam as fileiras do PCA, a ponto dos estatutos de algumas agrupações sindicais serem redigidos também em iídiche).

Kolbowski tornou-se dirigente em 1955 e presidiu entre 1959-69, a melhor época bohemia. O estádio atual também foi construído em sua gestão. Entre 1958 e 1964, o clube só não ficou entre os cinco primeiros em 1960 e 1962. Foram anos dourados também por conta de um título, o mais expressivo dos auriazuis, a Copa Suécia. Foi um torneio oficial da AFA previsto para a pausa do Argentinão de 1958 enquanto a Copa do Mundo acontecia no país nórdico, mas a desorganização fez com que a disputa só se encerrasse em 1960. Foi com um 3-1 no poderoso Racing da época. Em abril de 1963, tornou-se o primeiro time argentino a visitar Israel, vencendo a seleção local, e em junho recebeu o Macabi Tel Aviv.

Depois de 1964, ainda houve lampejos em 1969, com o vice para o Boca na Copa Argentina, e o 3º lugar em 1973, o mais longe que já chegou no campeonato – a frustração é que, após liderar grupo com Boca, Independiente (campeão da Libertadores e mundial daquele ano), Huracán (timaço campeão do Metropolitano) e Rosario Central, tenha perdido fôlego e visto o próprio Central vencer o quadrangular final. Desde então, só ladeira abaixo, caindo em 1979. Venceu a segundona em 1983, mas só durou 1984 na elite, logo caindo e não mais voltando à primeira divisão. A situação piorou na década seguinte: em 1991, chegou a decretar falência e o clube passou a se acostumar com a terceira divisão. Tanto que a primeira vez em que esteve na segundona no século XXI foi apenas em 2011. Caiu logo.

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Mas uma grande prova da tradição do clube é que seu clássico, contra o Chacarita Juniors (que, embora leve no nome o bairro vizinho de La Chacarita, também era sediado em Villa Crespo, antes mesmo do Atlanta instalar-se lá. Mudou-se nos anos 40 à cidade de San Martín), é o terceiro mais expressivo da capital federal. El Clásico de Villa Crespo teve nada mais que 3/4 de seus jogos na elite nacional e já dedicamos-lhe especiais a respeito. Só perde em apelo na cidade para os de Huracán x San Lorenzo e, claro, Boca x River; Racing x Independiente é da cidade vizinha de Avellaneda e Ferro Carril Oeste x Vélez até tem times mais vencedores, mas menos eloquência de rivalidade.

Aliás, o Atlanta tem relações curiosas com os citados Ferro e Vélez. Inicialmente, seu clássico seria com os verdolagas. Já os velezanos foram rebaixados pela única vez em 1940, concorrendo com o Bohemio contra a queda. Os auriazuis só foram cair pela primeira vez anos depois do hoje poderoso Fortín, em 1947. Foi ironicamente no ano em que procuraram armar um supertime, com destaque para a vinda de um até então desconhecido Ghiggia (logo dispensado. Se tivesse vingado, será que o Maracanazo ocorreria?), do zagueiro de seleção e judeu León Strembel e do craque Pedernera, segundo Di Stéfano (que era seu reserva no River) o maior jogador que já viu. Até hoje, o enfrentamento com o Huracán naquele ano teve a maior plateia em jogo de Argentinão sem os cinco grandes.

Se recentemente os nanicos da Grande Buenos Aires com mais apelo no futebol argentino vêm sendo Lanús, Banfield, Tigre e Arsenal, o Atlanta teve o seu momento de Rei Davi entre o fim dos anos 50 e o início dos 70. Nesse intervalo de pouco mais de uma década, alcançou seus melhores resultados na elite e é desse período, com algumas exceções, que pincelamos o time ideal.

GOLEIRO: o Atlanta revelou Hugo Loco Gatti, quem mais jogou no futebol argentino, único goleiro que serviu a seleção vindo tanto de River como do Boca (onde mais se notabilizou: venceu nos anos 70 as primeiras Libertadores xeneizes). Gatti irrompeu em 1963 e já no ano seguinte foi ao River, onde aprendeu com outro louco, o mito Amadeo Carrizo. Mas já declarou que, quando juvenil no Atlanta, também se baseou em outro irreverente na posição, o então titular dos profissionais, Néstor Errea.

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Errea, Cortés, Cruz e Bedia

Ficamos com Errea então, inclusive por ser ele o único goleiro que, como bohemio, jogou pela Argentina (entre 1959-61). Errea apareceu em 1959 e ganhou em 1960 a Copa Suécia. A boa campanha de 1961 fez dele um dos cinco jogadores que o clube teve ali na seleção. Gatti só foi subido ao time principal após o ídolo ir ao Boca em 1962. Foi Errea o goleiro boquense vice do Santos na Libertadores 1963 – venceria o torneio em 1970, titular no Estudiantes. Cabe menção ainda a Daniel Carnevali, titular da Copa do Mundo de 1974 e vice da Copa Argentina em 1969 (o problema é que ele iria justo ao Chacarita em 1970, ligando-se mais ao rival) e Ángel Rocha, titular na maior parte da Copa Suécia.

LATERAL-DIREITO: o Atlanta é pródigo em revelar bons nomes na posição, como Oscar Mantegari, do grande River dos anos 50. Outro foi o último bohemio convocado à seleção, Francisco Azzolini, que foi chamado em 1976, com o clube já em baixa e dele só saiu para o também grande River do fim dos anos 70. E o último que efetivamente jogou oficialmente pela Argentina (Azzolini não o fez contra outras seleções), Osvaldo Cortés, também era lateral-direito.

Ficamos com Cortés, que atuou naquela “seleção fantasma” contra a Bolívia em 1973 – saiba mais aqui. Suas cobranças de laterais eram descritas como verdadeiros cruzamentos, décadas antes do fenômeno irlandês Rory Delap. Cabe menção também a Carlos Sosa, considerado o maior lateral-direito do futebol argentino e titularíssimo do Boca por dez anos. Foi revelado no Atlanta, mas seu passo em Villa Crespo foi fugaz demais e sem campanha próxima da de 1973, onde esteve Cortés.

ZAGUEIROSJaime Cruz e José Bedia formaram por muitos anos a dupla titular, nos anos 40. Só não foram à seleção porque a Argentina vivia uma geração dourada só ocultada pela Segunda Guerra e asneiras dos próprios dirigentes. A dura concorrência os relegou ao consumo interno do clube. Vale o registro a Mario Bonczuk, que chegou a ser testado na seleção nos anos 60.

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Célico, Battagliero, Puntorero e Griguol

LATERAL-ESQUERDOLuis Célico era italiano de nascimento e um dos estrangeiros que defenderam a Argentina. É o segundo bohemio mais vezes usado pela seleção, sete vezes, sendo peça importante nos primeiros anos do clube: defendeu-o entre 1917 e 1925, ainda nos anos amadores, sendo descrito como um batalhador duro de passar. Nesse meio-tempo, viveu a “boemia” do clube, pois o time mandava jogos no bairro de Parque Chacabuco até 1918, e até se assentar em Villa Crespo em 1922 teve que se improvisar nos campos do Ferro Carril Oeste (no bairro de Caballito) e do Banco Nación (bairro de Vélez Sarsfield). Curiosamente, Célico foi colega de outro italiano do Atlanta com passagem pela Albiceleste, o meia Mario Busso. Menção honrosa a Marcelo Echegaray, dos bons anos 60.

MEIAS: José Battagliero, Juan Carlos Puntorero e Carlos Griguol. Battagliero era o melhor jogador do clube que quase caiu em 1940, e sua venda em 1941 ao vice Independiente, para alguns, reforçou as suspeitas de que o próprio Independiente deixara o Atlanta vencê-lo por 6-4 e escapar da queda na última rodada – seria uma vingança roja contra o Vélez, que, ao vencer antes os de Avellaneda, complicara-lhes as chances de título. Era realmente bom e já havia chegado à seleção pelo Bohemio. Sua passagem pela Albiceleste, aliás, ocasionou um infame episódio contra o Brasil em 1945, quando ele fraturou a perna.

Em 1946, Brasil e Argentina decidiram a Copa América em Buenos Aires com esse incidente ainda fresco, e após o capitão hermano José Salomón também fraturar-se, os já exaltados ânimos explodiram, gerando batalha campal que fez AFA e CBD romperem relações por dez anos – uma das razões para os argentinos não virem à Copa de 1950. Já Puntorero talvez seja aquele que realmente se tornou ídolo de Atlanta e Chacarita. Defendeu os auriazuis por cinco anos, entre 1962 e 1967, quando foi ao Newell’s. O Newell’s o revendeu ao Chaca em 1969 e Puntorero neste mesmo ano esteve na campanha campeã argentina dos tricolores (leia aqui), até hoje o único título de elite dos funebreros.

Timo Griguol, bohemio mais vezes usado na seleção, foi daquela espécie de meia aparentemente lento mas cerebral, raçudo e com bom cabeceio, brilhando oito anos em Villa Crespo, naquela bela virada dos anos 50 aos 60. Como técnico, ironicamente esteve do lado oposto, vencendo pelo Rosario Central aquele nacional de 1973; esteve também nos melhores momentos de Ferro Carril Oeste (veja aqui), nos anos 80, e Gimnasia LP, nos anos 90. Seu primo, o ponta Mario Griguol, foi seu colega naquele elenco e também chegou à seleção. Menção honrosa a colegas volantes de Griguol: Alberto González (depois ídolo no Boca), Rodolfo Bettinotti e Osvaldo Guenzatti. Também a Miguel Raimondo, melhor em campo na primeira vez que o Independiente foi campeão do mundo, e a Juan Gómez Voglino, maior artilheiro bohemio e outro vira-casaca exitoso – fora campeão no Chaca em 1969, embora reserva.

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Mastrángelo, Artime, Candau e Zubeldía

PONTA-DIREITAErnesto Mastrángelo, de curiosa trajetória na dupla de gigantes: no Boca é que foi ídolo, ganhando as primeiras Libertadores e Intercontinental  do clube (marcando gol nos 3-0 dentro da Alemanha no Borussia Mönchengladbach), mas foi pelo River que esteve na seleção. Héber, como era conhecido, esteve antes no Atlanta, de 1968 a 1971, integrando os vices da Copa Argentina em 1969. Destaca-se o papel especial do veterano Norberto Raffo, artilheiro do Racing campeão da Libertadores em 1967, nessa própria Copa Argentina (foi autor de gols nos adversários mais complicados antes da final, San Lorenzo e  Rosario Central). Mastrángelo era seu reserva mas leva a melhor pelo maior tempo de clube e por ter chegado à seleção ainda como bohemio.

CENTROAVANTE: Rubén Cano foi o centroavante de 1973 e até defendeu a Argentina em 1974, mas em amistoso não-oficial contra a seleção rosarina que goleou por 3-0 (leia). Se destacaria no Atlético de Madrid e acabou indo à Copa de 1978 pela Espanha, que só se classificou graças a gol dele sobre a Iugolásvia dentro de Belgrado. Se não o escalamos é porque Luis Artime foi ainda mais implacável, um dos maiores atacantes do século XX, incluindo boa passagem no Palmeiras. Tudo o que poderíamos dizer sobre ele está neste outro Especial. Aqui, deixamos os números justificarem: 80 gols em 90 jogos pelo River, 45 em 72 pelo Independiente, 49 em 57 no Verdão, 24 em 25 pela Argentina. Mas tudo começou no Atlanta, onde ficou de 1958 a 1961 deixando 50 gols em 67 jogos.

PONTA-ESQUERDA: Héctor Candau, presente de 1971 a 1977 e depois em 1980, de forma que foi o último remanescente do canto do cisne bohemio em 1973 a deixar o clube. Infelizmente, El Palito faleceu nesta semana, na última terça-feira. Fica aqui nossa homenagem. Ele, curiosamente, venceu a segundona de 1984 pelo Deportivo Español, acesso que completa exatos 30 anos hoje, que é igualmente aniversário deste clube também. Seu irmão Roque Candau curiosamente jogou justo no rival Sportivo Italiano.

TÉCNICO: Victorio Spinetto conduziu o bom time dos fins dos anos 50. Néstor Rossi comandou a melhor campanha nacional, em 1973. José María Silvero foi o vice da Copa Argentina de 1969. Mas a maior parte dos anos dourados, incluindo-se o dia do título da Copa Suécia, foi sob Osvaldo Zubeldía, que participara da própria Copa Suécia também como jogador e depois treinou de 1960 a 1964, promovendo alguns dos escalados aqui. Coincidência ou não, o Atlanta enfraqueceu-se após a saída dele, que foi ao Estudiantes em 1965 fazer ainda mais história: os alvirrubros, até então com prestígio médio dentro do próprio país, venceram três Libertadores seguidas entre 1968 e 1970.

Abaixo, outros especiais relativos ao Atlanta:

Homenagem à AMIA: conheça os judeus do futebol argentino

Atlanta x Chacarita: um verdadeiro clássico na B Nacional

Quando um supertime caiu

Há 30 anos, os rivais Atlanta e Chacarita subiam à elite

Falece Gelman, poeta mais interessado no Atlanta do que no Prêmio Cervantes

B Nacional: um pouco do Atlanta, rival do River Plate na rodada

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Mario Griguol, Biaggio, Artime, Alberto González e Roque; Nuín, Clariá, Carlos Griguol, Betinotti, Errea e Vignale. O time de 1960

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Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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