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Dez anos sem Omar Sívori, “o primeiro Maradona”

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Ídolo no River, mas na Juventus é que é ainda mais querido

O Monumental de Núñez já foi uma ferradura. Se o maior estádio argentino tem três enormes anéis de arquibancada, o formato era em U desde a inauguração, em 1938, até vinte anos depois, em 1958. Foi quando o vazio enfim foi preenchido, por causa de um homem. Enrique Omar Sívori, vendido por um recorde mundial na época pelo dono do estádio, foi o craque que valeu uma tribuna (que recebeu seu nome após a morte do craque). Também é lembrado como o Maradona da virada dos anos 50 para os 60. Um câncer no pâncreas o levou há exatamente dez anos, em 17 de fevereiro de 2005, renovando as comparações com Dieguito e rendendo homenagens até do Torino, que tanto sofreu com este ídolo da Juventus – confira em matéria da época.

As semelhanças com Maradona têm alguma razão de ser. Sívori também era baixinho, e a desproporção de seu rosto ao resto do corpo valeu-lhe na Argentina a alcunha de El Cabezón. Era atrevido e evidenciava isso nas meias arriadas e também desprezava a etiqueta que ordenava arrumar as camisas para dentro do calção, uma rebeldia que com o tempo se banalizou. Outro costume da época que não seguia era o aparar muito os cabelos, nem de penteá-los com gel. Fazia diabruras com a perna esquerda e disciplina não era seu forte: é até hoje o jogador mais suspenso na Itália, 33 vezes. Também pecava pelo individualismo, mas era eficiente para armar e definir jogadas: teve média superior a meio gol por jogo na dura Serie A italiana e fez 8 em 9 jogos pela Azzurra.

A estreia profissional de Sívori veio aos 19 anos, em 4 de abril de 1954, um 5-2 sobre o Lanús, entrando no lugar do mito Ángel Labruna. Nessa partida, o uruguaio Walter Gómez marcou quatro gols. Sívori, de início, só conseguia jogar na ausência do uruguaio ou de outros titulares no ataque como o próprio Labruna e Eliseo Prado. Uma primeira confirmação do talento veio em seu oitavo jogo. Tanto Gómez, lesionado, como Labruna, que havia acabado de perder o pai, não jogariam. Era nada menos que um Superclásico na Bombonera. Sívori e o estreante Norberto Menéndez, sua dupla (falamos dele neste outro Especial), não fizeram os torcedores visitantes sentirem falta dos ídolos.

O River ganhou por 1-0 e só voltaria a vencer o Boca na casa rival em 1966. E só em 1980 conseguiria voltar a vencer o Superclásico tanto na Bombonera como no Monumental – naquele 1954, a vitória no Monumental ficaria célebre como o dia em que o goleiro Amadeo Carrizo deu três dribles no boquense José Borello, em tarde em que o Boca seria campeão caso tivesse vencido. Perdeu, mas adiante confirmaria o título. Mas a taça não escaparia do River em 1955. Curiosamente, foi exatamente naquele ano que o River aprovou o projeto de construção da tribuna que faltava para converter a ferradura em anel. O que faltava era recursos e a solução inicial foi usar rifas. Aquele ano também marcou, em dezembro, a despedida do uruguaio Walter Gómez, vendido ao Milan.

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O Monumental de Núñez antes da saída de Sívori do River era esta ferradura da foto à direita

Sívori já vinha se sobressaindo: mesmo não jogando em todas as rodadas daquela campanha, foi o artilheiro dos campeões, com 11 gols em 23 jogos. Já em 22 de janeiro do ano seguinte fazia sua estreia pela seleção, na Copa América de 1956. E também seu primeiro gol por ela, nos 2-1 no Peru. Apesar da estreia auspiciosa, Sívori não voltou a marcar no torneio e os hermanos ficaram no vice para o Uruguai. Uma melhor desenvoltura se deu quase em seguida: de fevereiro a março, realizou-se o Torneio Pan-Americano, uma espécie de Copa de todas as Américas (não confundir com os Jogos Pan-Americanos) que não vingou. El Cabezón foi artilheiro com cinco gols, um na final frente o campeão Brasil.

Relatos como o do livro Seleção Brasileira: 1914-2006 apontou que o gol de Sívori foi impedido. Por outro lado, a revista Placar já publicou em 1981 outro relato folclórico daquele jogo, nas palavras do técnico Ênio Andrade, que atuou na partida: “segurávamos o empate e o Sívori escapou. Quando ele ia marcar, o [massagista] Moura atirou a caixa de medicamentos na bola, o Sívori tropeçou, saltou garrafa de éter e mercúrio-cromo para todo lado. Deu o maior rolo. Mas ganhamos”.

O River conseguiu o bicampeonato em 1956 e assim Sívori foi a outra Copa América em março de 1957. Tinha só 22 anos, mas era o mais velho do quinteto ofensivo apelidado de Carasucias (“Caras Sujas”) – que era exatamente uma gíria para “moleques”: Omar Corbatta na ponta-direita, Humberto Maschio (ambos do Racing) na meia-direita, Antonio Angelillo (Boca) como centroavante, Sívori na meia-esquerda e Osvaldo Cruz (Independiente e campeão brasileiro com o Palmeiras em 1960) na outra ponta. Por pouco o meia-esquerda do River não desiste da empreitada: chegou a ameaçar ir embora ao perder momentaneamente a posição para o artilheiro José Sanfilippo, do San Lorenzo.

Os Carasucias de Lima não venceram nenhum jogo por menos de três gols de diferença: 3-0 no Equador, 4-0 no Uruguai, 6-2 no Chile e 3-0 no Brasil, que um ano depois seria campeão do mundo. O título continental foi garantido ali e, na ressaca, veio a única derrota, um 2-1 para o anfitrião Peru. O terceto central daquele ataque acabaria fechando com o mais rico campeonato do mundo, o italiano. Angelillo foi à Internazionale, Maschio ao Bologna e Sívori à Juventus. O preço de El Cabezón foi 93 mil dólares, quantia hoje irrisória que na época foi a mais cara de uma transferência no futebol. Demoraria-se um quarto de século para que alguém mais jovem fosse objeto de venda internacional mais cara: foi exatamente Maradona, quando rumou do Boca ao Barcelona, em 1982.

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Corbatta, Maschio, Angelillo, Sívori e Cruz, os “Carasucias de Lima”. E Maschio, Angelillo e Sívori nos anos 90

Sívori ainda atuou em uma partida do campeonato argentino de 1957, no qual o River lograria seu primeiro tricampeonato seguido. Mas se a venda fechou o vazio do Monumental, abriu um no elenco millonario. O garoto, que estreou no futebol substituindo Labruna, aparentava que viria a ser o sucessor do veterano ídolo, pela habilidade e pelo posto na meia-esquerda (ambos eram tão fenomenais que sabiam atuar bem também na meia-direita, o que lhes permitia jogar juntos). Labruna em pouco tempo se aposentou, e sem o original e o sucessor, o River enfrentaria seu mais longo jejum. Foram dezoito anos até nova taça vir, já nos idos de 1975.

O desfalque de Sívori e outros campeões pela seleção em 1957 também se fizeram notar na Copa de 1958. Enquanto o Brasil, surrado um ano antes por 3-0, seria campeão, os hermanos caíram ainda na primeira fase com direito a um 6-1 da Tchecoslováquia, até hoje a derrota mais elástica da Albiceleste. Tudo por conta da política de não se usar jogadores que atuavam no exterior, visão muito em voga na época (por exemplo, Julinho Botelho, da Fiorentina, recusou voluntariamente a convocação pelo Brasil à mesma Copa; os brasileiros também não levaram Evaristo de Macedo, do Barcelona e que no ano anterior marcara cinco gols em um só jogo pela canarinho, ainda um recorde).

Sívori “brilhava pela ausência”. Na Itália, foi imediatamente campeão, na temporada 1957-58. Se hoje vencer a Serie A com a Juventus parece lógico, na época ainda não era bem assim. O clube vinha de seis anos sem títulos e suas conquistas ainda eram irregulares – havia sido só o terceiro scudetto desde o pentacampeonato (repleto de argentinos: confira aqui) entre 1930-35, por exemplo. Aquele título de 1957-58 foi especial por ser o décimo dos alvinegros, o que lhes permitiu ser o primeiro clube no país a poder ostentar uma estrela acima do escudo. Na temporada seguinte, foi artilheiro do campeonato com 28 gols, número que até o fim do século XX não foi mais superado. Em Turim foi treinado por outro ídolo de River e Juve, Renato Cesarini, maior técnico que teve segundo o próprio.

O argentino foi um símbolo da confirmação da grandeza da Vecchia Signora, totalizando três títulos em oito anos, um período de elencos históricos dos concorrentes Milan e Internazionale. Foi nos anos de Sívori, aliás, que o confronto entre Juventus e Inter ganhou ares de clássico, virando o Derby d’Italia, pois os nerazzurri eram quem mais estavam perto de igualar o recorde de dez scudetti; conseguiram em 1966, na primeira temporada sem Sívori na Juventus. El Cabezón está na história da rivalidade por ter marcado seis gols (recorde no calcio) em um 9-1 em 1961, goleada que garantiu o título à Juve e, adiante, a Bola de Ouro de melhor jogador do continente pela France Football.

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Com Angelillo antes de um Juve x Inter, clássico que ajudou a construir; com Maschio na delegação italiana na Copa 62. E com o brasileiro Altafini/Mazzola pela Azzurra

Paralelamente, passava a defender a seleção italiana. Na sua melhor forma, até o fim do primeiro semestre de 1961 (quando se notabilizou também ao marcar o primeiro gol da derrota do Real Madrid dentro do Santiago Bernabéu pela Liga dos Campeões), marcou quatro gols nas três primeiras partidas, entre abril e junho: um nos 3-2 na Irlanda do Norte, seleção que havia tirado a vaga da Azzurra na Copa de 1958; um em derrota por 3-2 para a Inglaterra; e dois em um 4-1 na… Argentina, que ainda sofreu gol de outro hermano na ocasião, Francisco Loiácono/Lojacono.

Na Copa, porém, foi apático no modorrento 0-0 com a Alemanha Ocidental e esteve entre as seis alterações para o jogo contra o anfitrião Chile. Não participou, assim, da “batalha de Santiago”, temperada pela fúria chilena contra críticas prévias de imprensa italiana à sede do torneio. Os inúteis 3-0 na Suíça foram os últimos minutos de Sívori pela Itália, eliminada na primeira fase – a FIFA passou a vetar após a Copa uso de jogadores que já haviam defendido outra seleção antes. Pior para as Copas. A manchete do La Repubblica há dez anos foi esta: “Adeus Omar Sívori, fez os estádios sonharem”.

Sívori voltaria às Copas em 1974 como técnico da Argentina, mas, desgostoso coma desorganização da AFA, prometera entregar o cargo após a classificação e assim o fez. Parara de jogar em 1969 após quatro anos no Napoli, dando mais pano na manga às comparações com Maradona: os celestes tiveram com o Cabezón suas melhores campanhas antes de Dieguito, ficando a cinco pontos do campeão em 1966 e em 1967 e sendo vices em 1968. Logicamente, antes era Maradona quem era comparado ao antecessor: “os velhos o comparam a Sívori”, afirmou César Menotti ainda em 1979. O primeiro a consolar Diego pelo corte à Copa de 1978 foi justamente Omar: “escuta-me, pibe… você tem a verdade do futebol dentro de si e toda uma vida para mostrá-la”, foram as palavras, em matéria da revista El Gráfico.

A Federação Internacional de História e Estatísticas do Futebol elegeu Sívori como 16º maior jogador sul-americano, à frente até dos campeões mundiais Kempes e Passarella. Uma última homenagem em vida veio em 2004, no FIFA 100, listagem dos maiores jogadores vivos (Sívori seria o primeiro a falecer) assinada por Pelé. Sívori e Di Stéfano eram os únicos argentinos nela a jamais terem jogado a Copa pela Albiceleste. Se a lista foi contestada pela inclusão de alguns nomes, honesto em relação ao argentino Pelé foi: já o havia colocado em 1982 em uma lista dos 50 maiores jogadores. E em 1971, em depoimento à Placar onde menosprezou táticas, assim declarou: “Puskás, Albert, Sívori (…) e muitos outros grandes CRAQUES, que eu sempre admirei, nunca precisaram se fixar aos esquemas”.

Clique aqui para ler perfil de Sívori no maior portal brasileiro de futebol italiano, o QuattroTratti, que o elegeu o terceiro maior argentino no calcio, atrás só de Maradona e Zanetti. E aqui para conferir a lembrança publicada hoje pela Juventus.

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Com o fã Pelé, com Di Stéfano (Sívori foi autor do gol da primeira derrota do Real Madrid em casa pela Champions) e consolando Maradona após o corte de Dieguito na Copa 1978

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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