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Há 55 anos, o Bahia, treinado por um argentino, era o 1º campeão brasileiro

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Os campeões de 1959 vinte anos depois, em 1979, em reportagem da Placar. Venceram os veteranos do Vitória por 3-0!

É verdade que o tal treinador só entrou na campanha campeã da primeira Taça Brasil exatamente naquela finalíssima. Também é verdade que Pelé, operado nas amídalas, não atuou – mas, com ele em campo, o Bahia havia vencido na Vila Belmiro e o Santos, repleto de outros craques, era bom o bastante para ser campeão mundial sobre o Milan em 1963, outra ocasião onde esteve desfalcado de seu grande astro. Assim como Carlos Volante teve estrela em ser o técnico do primeiro campeão brasileiro, o Bahia.

Volante era um ex-jogador de Lanús e Platense com breve passagem pela seleção argentina antes de desenvolver carreira na Europa. E foi por lá que sua carreira brasileira começou: ele acabou improvisado como massagista da seleção tupiniquim durante o mundial de 1938. De certa forma, é o único argentino a participar de uma Copa pelo Brasil. O intercâmbio com os brasileiros o levou ao Flamengo naquele mesmo 1938. Ficaria até 1943, ganhando três títulos estaduais. Eram os anos de Platinismo no futebol brasileiro. O America-RJ, por exemplo, teve em 1934 José Della Torre (da Copa de 1930), Alberto Fassora, Juan Rivarola (campeões da Copa América 1929), Ismael Arrese e Juan Mariani.

A Argentina tinha seleção sul-americana mais forte da época e que não raramente goleava a brasileira, fazendo com que clubes vizinhos corressem atrás de hermanos. Mesmo os de segunda linha ou em fim de carreira brilhavam: Antonio Sastre e José Poy seriam eleitos em 1982 para o time dos sonhos do São Paulo, onde Armando Renganeschi também foi bem. José Villalba, do “Rolo Compressor” do Internacional, é o segundo maior artilheiro dos Grenais. Juan Echevarrieta é o homem com melhor média de gols no Palmeiras e seu máximo artilheiro estrangeiro. Luis Rongo saiu da reserva do River e do Peñarol para conseguir mais de um gol por jogo no Fluminense – falamos dele semana passada (clique). Agustín Valido fez o gol do título do primeiro tri estadual flamenguista, em 1944 (veja).

Valido foi um dos compatriotas de quem Volante foi colega no Flamengo. Alfredo González, que defenderia ainda Vasco e Botafogo, foi outro. Arturo Naón, maior artilheiro do Gimnasia LP, também, assim como Ricardo Alarcón, Julio Castillo e o consagrado Raimundo Orsi, campeão mundial pela Itália na Copa de 1934 (com gol na final). Volante foi o mais longevo: quando parou, era o forasteiro com mais jogos pelo Flamengo, 164. E originou o termo “volante” para o meia defensivo, sua posição em campo, assim como Bernardo Gandulla, do Vasco, “nomeou” a palavra “gandula” por repor as bolas que saíam de campo (era sua forma de contribuir, pois entraves na sua regularização o impediam de jogar).

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Volante no Flamengo e os campeões de 1939, cheios de argentinos: ele, Valido, Orsi e Naón são os quatro primeiros em pé da esquerda para a direita. González é o nono

Nos anos 50, Volante começou, já como técnico, sua trajetória no futebol baiano. Foi campeão estadual na Vitória em 1953, o primeiro título leonino desde a revalorização do futebol no clube, campeão pela última vez em 1909. O argentino treinou outros rivais tricolores, Galícia e o Botafogo baiano, além do Fluminense de Feira de Santana. Assim, seu nome foi logo sondado em fevereiro daquele 1960 para substituir Geninho, técnico da grande campanha do Bahia na primeira Taça Brasil. Passou pelo CSA vencendo os dois jogos e por Ceará em Bahia na melhor-de-três.

Os tricolores chegaram a bater o Vasco no Maracanã, já pela semifinal, o que não tirava o favoritismo do Santos. Que, mesmo com Pelé em campo e marcando um dos gols, levou de 3-2 em plena Vila Belmiro na primeira final. A segunda, realizada em 30 de dezembro de 1959, prometia coroar o réveillon baiano, mas os paulistas aplicaram um 2-0 na Fonte Nova. Na época, saldo de gols ou gols fora não contavam, ou o Bahia teria saído mais cedo: antes de levar a melhor no jogo-desempate, ficou no 0-0 fora e no 2-2 em casa contra o Ceará; da mesma forma, levou de 6-0 do Sport após batê-lo por 3-2; assim como perdera em casa por 2-1 do Vasco após conseguir vencê-lo no Rio de Janeiro.

Não foi o anticlímax da derrota em casa que custou o cargo de Geninho. Ele só deixou o Bahia já no fim de fevereiro. Teria alegado saudades do Rio de Janeiro, onde vivia. Volante foi cogitado desde cedo e o próprio Geninho teria se reunido com ele para convencê-lo em nome da diretoria tricolor. E embora também tenha-se divulgado que a prioridade para uma nova contratação seria a de Gentil Cardoso e também que Volante negaria a empreitada, no início de março o retorno do argentino à Boa Terra se efetivou. E recomeçou auspicioso, com um 5-0 no Ypiranga já em 13 de março. Volante chegou a viajar dois dias depois ao sudeste para propor que o tira-teima fosse na Fonte Nova (o que ocorrera contra o Vasco), repassando 1 milhão de cruzeiros em troca ao Santos.

Mas o Rio de Janeiro foi confirmado como palco. Os jornais da cidade, em meio às reclamações pela perda do posto de capital federal para Brasília em poucas semanas, não escondiam o favoritismo santista, mas com ressalvas: “Mas será mesmo o Santos o vencedor da ‘Taça Brasil’?… O quadro do E.C. Bahia já demonstrou seu valor técnico indiscutível, com muitas façanhas (…). O conjunto armado por Geninho tem qualidade e eficiência, não há dúvida possível, e Carlos Volante, que substituiu recentemente o antigo grande meia do Botafogo na direção técnica do Bahia, sabe o que faz”, escreveu o francês Albert Laurence no seu jornal A Última Hora, na edição que saiu naquele 29 de março de 1960. Ele é pai de Michel Laurence, falecido ano passado e um dos fundadores da revista Placar.

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Recortes de jornais da época sobre a saída do técnico Geninho e chegada de Volante para o seu lugar

Volante não se fazia de rogado: “eu sei que teremos pela frente uma das maiores equipes de futebol do mundo. A melhor da América do Sul, pelo menos. Mas os rapazes, porém, não se preocupam com isso. Sabem que devem batalhar e vão dar o máximo dos seus esforços. (…) Ele [Pelé] jogando ou não, para nós é a mesma coisa. (…) O problema do Bahia, na verdade, é o próprio Santos”. O argentino também declarou que “o Bahia está preparado para correr 2 horas atrás da vitória. Se depender do nosso fôlego, levaremos a taça para Salvador”.

O jogo poderia levar mais de duas horas, na verdade: pelo regulamento da época, em caso de empate ao fim dos 90 minutos e dos 30 de prorrogação, haveria mais 15 minutos extras enquanto um time não marcasse gol. Se ainda assim a partida terminasse empatada, o Santos seria campeão pelo critério do goal average. Mas se até nisso a igualdade pudesse remanescer previa-se decisão por pênaltis (com três cobranças para cada lado e não cinco), curiosamente décadas antes deste critério ser difundido.

O Santos de início parecia confirmar o favoritismo, com Coutinho abrindo o placar após tabela com Pagão. Mas as declarações de Volante não foram fanfarronas: “muito diferente do comportamento que tivera nos dois primeiros jogos contra o Santos, a equipe do Bahia começou a partida de modo ousado, com a defesa menos fechada e muito mais preocupada em acionar com rapidez o seu ataque do que bloquear os avantes do Santos”, registrou o Jornal do Brasil, enquanto Laurence escreveu que “todo o quadro dirigido por Carlos Volante demonstrou um cuidado louvável de fazer correr a bola no chão em série de passes ‘de primeira’ em meio às deslocações em plena velocidade”.

Seria unânime entre os veículos que a virada nordestina foi merecida: a manchete esportiva do Última Hora foi “milagre do Bahia foi jogar melhor” e o Diário de Notícias resumiu que “Santos não foi digno oponente e caiu por 3 a 1”. Já para o Jornal do Brasil,”foi por todos os modos justa e a alegação de que o juiz Frederico Lopes prejudicou o Santos – o que é verdade – não explica o resultado. (…) E onde está a explicação para a vitória do Bahia? É fácil: ganhou porque foi o melhor quadro, porque esteve mais bem armado do que o Santos na maior parte do jogo e porque soube recuperar-se da afobação que lhe veio após a abertura do marcador pelo adversário”.

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Clique para ver ampliado: Volante em entrevista e em treino antes da final e à direita, os capitães de Bahia e Santos.

A virada se construiu ainda no primeiro tempo a partir da maior preocupação assumida de Volante: seu zagueiro Vicente, passível de uma suspensão no STJD, mas absolvido na véspera da decisão. Vicente empatou com um petardo de falta a furar a barreira aos 38 minutos. Cada time, com Dorval e Marito, ainda acertou a trave um do outro na primeira etapa. E logo no reinício veio a virada, com Léo marcando no primeiro minuto após sequências de cabeceadas em um escanteio. Não conseguindo empatar, os santistas se enervaram. Getúlio foi expulso aos 24 do segundo tempo e aos 26 foi a vez de Formiga.

O Bahia também não se furtou da violência mas sabia ser mais objetivo quando tinha a bola. Aos 31 minutos, Alencar, girando ao receber de um Léo desmarcado pela esquerda, anotou os 3-1. Dorval também foi expulso e os oito santistas passaram a reter a bola para evitar vexame maior. “No segundo tempo, o jogo valeu até aos 26 minutos. Mas sempre com o Bahia perdendo mais gols que o Santos, que perdeu só um, aos cinco minutos, com Coutinho”, observou o Última Hora, que ressaltou também que “é sempre muito fácil arranjar um culpado para resultados inesperados”.

“E muito mais fácil, ainda, quando se acusa o juiz. Mas apontar, também, o árbitro como único responsável (…) seria cometer injustiça com os próprios campeões do Brasil e afastar um pouco, igualmente, a responsabilidade dos dirigentes santistas”, completou o jornal, em alusão à excursão sul-americana que, combinada ao Rio-São Paulo, teria esgotado os alvinegros. O tricolor Léo, também se referindo a isso, declarou em euforia que “o time estava preparado para vencer. Vínhamos pensando na Taça Brasil há muito tempo. Se isso não sucedeu com o Santos, a culpa não é nossa. O Bahia jogou bem e esteve magnificamente dirigido. ‘Seu’ Volante sabe onde tem a cabeça”.

“O que vale é que nossa vitória foi clara e já ganhávamos de 2 a 1 quando eles começaram a ficar nervosos”, completou Léo. E Volante? Em êxtase, frisou que “o Bahia entrou em campo para vencer, estava vencendo, tudo indicava que venceria, e nisso tudo, só sinto que os jogadores do Santos tenham agido daquela forma, empanando a vitória que reputo a mais brilhante do futebol baiano em todos os tempos”. Dali a um mês, os comandados do argentino tornavam-se os primeiros brasileiros na Libertadores, enfrentando o San Lorenzo, que os eliminou de cara com José Sanfilippo (que, ao contrário de Leandro Romagnoli, jogaria depois no Bahia) marcando nos dois confrontos.

Mas esta outra estória fica para outra ocasião. Felicitaciones, Bahia!

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Clique para ver ampliado. As fotos são do Jornal do Brasil e a manchete, do Última Hora

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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