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55 anos da estreia argentina na Libertadores – em duelo com o Brasil

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Sanfilippo, que deu a vitória ao San Lorenzo, jogaria no próprio Bahia

As notícias mais recentes envolvendo Bahia e San Lorenzo se referem à frustrada transferência do armador Leandro Romagnoli, maior campeão azulgrana, a Salvador, em razão do seu clube do coração estar tão perto da sonhada Libertadores na época – e, depois de vencê-la, poder disputar o mundial. Mas as relações são mais antigas e também envolvem a Libertadores. Ambos os clubes protagonizaram os primeiros duelos Brasil x Argentina no torneio. Os encontros em branco, azul e vermelho foram decididos, curiosamente, por um atacante que brilhou nas duas equipes.

Foi a primeira edição da Libertadores, que na realidade só adotou esse nome em 1965. Até lá, chamava-se Copa dos Campeões Sul-Americanos, mais ou menos como sua congênere europeia. A edição inaugural contou com apenas sete representantes da Conmebol e o último a ser definido foi justamente o brasileiro: o Bahia sagrou-se campeão da primeira Taça Brasil, válida ainda por 1959, menos de um mês antes daquele 20 de abril de 1960. Seu técnico, aliás, era argentino: Carlos Volante.

Clique aqui para ler nosso relato de como o Bahia (denominado na Argentina como Esporte Clube ou Sport Bahia), treinado por um hermano, bateu o favorito Santos para se sagrar o primeiro campeão brasileiro. Dois dias após aquela façanha, Volante já mirava o continente. Era o último dia do prazo para inscrição de jogadores e isso impediu que os nordestinos se reforçassem. “Mesmo sem os reforços que queria, o Bahia não fará feio”, garantiu Volante em nota veiculada no Jornal do Brasil.

Já o San Lorenzo havia quebrado em 1959 um jejum de 13 anos sem títulos nacionais. Era liderado por José Sanfilippo, o maior goleador da história do clube. O centroavante conseguiu a artilharia de todos os campeonatos argentinos entre 1958 e 1961. Por lá apenas Maradona conseguiu igualar o recorde de quatro artilharias seguidas, e superar Sanfilippo no geral ao conseguir uma outra também. Dentre as alegrias daquela campanha, os clássicos com o Huracán.

Conforme demonstramos neste outro Especial, o rival normalmente tem o costuma de colocar água no chope azulgrana por normalmente vencê-lo nas campanhas sanlorencistas campeões. Mas Sanfilippo sagrou-se o maior artilheiro também da rivalidade, com 16 gols. Assim, em 1959 não teve jeito. O Huracán conseguiu marcar três gols fora de casa, mas sofreu seis. Aqueles 6-3 para o San Lorenzo ainda é o dérbi com mais gols entre os dois. Sanfilippo marcou dois naquela ocasião e faria outros dois no returno, quando ele e colegas, como visitantes, ganharam por 4-1.

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O Bahia no Gasómetro e o pouco público atraído: o técnico argentino Volante, Leone, Nadinho, Henricão, Flávio, Vicente e Beto; Marito, Márcio, Alencar, Léo e Biriba

Isso não impediu que o San Lorenzo buscasse justo no arquirrival sua principal aquisição para 1960: Oscar Coco Rossi, que veio para suprir a ausência do lesionado centroavante Omar García – em contrapartida, seria o estádio do Huracán o utilizado para a partida de 55 anos atrás. Rossi foi um dos poucos a fazer sucesso virando a casaca no clássico de bairro, a ponto de ser um dos dois únicos a defenderam a Argentina como jogador huracanense e sanlorencista – iria à Copa de 1962 com Sanfilippo. E foi de Rossi o primeiro gol argentino (e o primeiro sobre o Brasil) na história da Libertadores, atirando “sem chance para Nadinho” aos 14 minutos do primeiro tempo segundo relato do Última Hora.

Se os brasileiros, com certa hipocrisia, costumam atribuir violência e catimba apenas aos vizinhos, na ocasião isso teria partido dos visitantes segundo o mesmo Última Hora: “as ações demasiadamente viris dos homens da retaguarda do quadro brasileiro se fizera sentir mais acentuadamente quando perceberam que estavam com a partida perdida”. E isso atrapalhou em muito os prognósticos do Bahia, que se segurou até os últimos oito minutos. Miguel Ángel Ruiz ampliou aos 37 do segundo tempo. Aos 44, Henricão cometeu pênalti em Sanfilippo, que cobrou para anotar os 3-0.

Sem pachequismos, o Tribuna da Imprensa resumiu a superioridade adversária: “o quadro do San Lorenzo foi sempre melhor, envolvendo seu adversário com alguma facilidade, mas pecando muito nas finalizações, notadamente no 1º tempo. Na etapa derradeira, mesmo não fazendo alarde de grande poderio ofensivo pôde chegar aos 3-0”. Na partida, a provável estreia também de um europeu na Libertadores: o goleiro cuervo Vladimir Tarnawsky nascera na Ucrânia.

O que aconteceu depois? Bem, no dia seguinte Brasília foi inaugurada como nova capital do Brasil. No estritamente futebolístico, o Bahia recebeu o San Lorenzo em 3 de maio. Nos primórdios, foi comum a Libertadores ignorar diferença de gols e forçar jogos-desempates em campo neutro se cada time vencesse um mata-mata. Mas, conforme salientado no Jornal do Brasil de 4 de maio, era necessário aos nordestinos uma vitória por quatro gols de diferença. O Bahia até conseguiu três, o último já aos 43 do segundo tempo. Mas o San Lorenzo fez dois, ambos com Sanfilippo, um deles abrindo o placar.

Em uma edição de Libertadores que só contou com sete equipes, a fase seguinte foi já a semifinal. Os argentinos pareciam não dar a mínima: apenas 10 mil presenciaram o cotejo de 55 anos atrás contra o Bahia. E a semi contra o Peñarol rendeu a lenda de o técnico oponente, ao circular por táxi em Buenos Aires, notou que o nascente torneio parecia desconhecido entre os vizinhos. O fato é que os dirigentes do San Lorenzo simplesmente venderam o mando de campo que teriam direito no jogo-desempate.

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Outra imagem do jogo de 55 anos atrás, com Sanfilippo em destaque

“Queria me matar e mata-los! (…) Fez um dirigente chamando Pecoraro, que não entendia nada de futebol. Era violinista!”, bufou Sanfilippo em entrevista publicada neste abril de 2015 na principal revista esportiva argentina, a El Gráfico. Após um 1-1 no Centenário e um 0-0 em Buenos Aires, a terceira partida seria na Argentina mas ocorreu em Montevidéu.

O Peñarol venceu por 2-1, se tornando adiante o primeiro campeão da Libertadores enquanto os azulgranas pagaram por mais de meio século pelo despinte – enquanto o Peñarol iniciava uma tradição copeira que poderia ter sido deles. Uma pena. Pois Oscar Rossi e Sanfilippo, com as vestes da Argentina, foram capazes de vencer por 2-0 naquele mesmo 1960, em julho, a seleção espanhola de Alfredo Di Stéfano, composta basicamente pelos jogadores do Real Madrid que dali a mais alguns meses massacrariam o Peñarol no primeiro Mundial Interclubes.

Como Sanfilippo, que fez os dois gols sobre a Espanha, chegou ao Bahia? Trata-se de alguém temperamental. Exemplos: em 1993, como comentarista televisivo, não poupou o goleiro Sergio Goycochea após a derrota de 5-0 sofrida para a Colômbia em Buenos Aires – Goyco afirmara que não queria mais rever a partida e sua esposa, grávida, começou a chorar nos bastidores quando Sanfilippo retrucou que o jogo deveria ser revisto tantas vezes até a seleção aprender onde errara (quando Carlos Bilardo interrompeu para convidar Goycochea a sair dali, Sanfilippo vociferou que como jogador Bilardo foi “reserva do reserva”). E o goleiro titular na Copa 1994 seria Luis Islas.

Em 2011, após Martín Palermo igualar-lhe no quinto lugar no ranking dos maiores artilheiros do Argentinão, minimizou-o com base no número muito maior de jogos que Palermo precisou. Peita até Maradona: é dos hermanos que se atreve a achar Pelé melhor que Dieguito. A acidez de Sanfilippo, que faz 80 anos em poucos dias, já se manifestava aos 19, recém-promovido aos profissionais: “presidente, venho para que me assine um contrato. Se não, tenho que ir trabalhar. E se trabalho não posso fazer os gols que você grita nos domingos”. Passou a ganhar mais que o dobro que o pai recebia como ferroviário. E em 1962 teria recebido a promessa de um prêmio dos dirigentes se alcançasse a quinta artilharia seguida. Faltaram dois gols para isso e o atacante culpou os cartolas por terem-no suspendido no meio do certame, insinuando que queriam livrar-se da promessa.

Sanfilippo foi fazer por um ano seus golzinhos no Boca e enfim disputou a final da Libertadores. Foi vice mas fez sua parte, marcando os três gols que os auriazuis fizeram no Santos. Chegou perto do título outra vez em 1964, já como atleta do Nacional, mas fraturou-se antes das finais contra o Independiente, cujo truculento defensor Rubén Hacha Brava Navarro afirmaria que seria quase impossível vencer se tivesse de enfrentar El Nene. Foi já veterano que Sanfilippo veio ao Brasil. Apareceu em 1968 no Bangu, então uma equipe das mais fortes (campeã estadual apenas dois anos antes), conforme contamos aqui.

Ele não deu certo no Rio de Janeiro mas conseguiu dois estaduais no Bahia, em 1970 e 1971. Como no San Lorenzo, a saída foi problemática com os dirigentes: segundo ele, esperava ser o técnico do clube após o título de 1971, o que não ocorreu. Por um ano, não foi colega de outro ex-San Lorenzo no Tricolor: o goleiro Carlos Buttice. Sanfilippo pôde ter uma redenção na velha casa: aos 37 anos, saiu da aposentadoria para contribuir nas campanhas de 1972, quando o San Lorenzo se tornou os primeiro time a vencer os dois torneios argentinos do ano, o Metropolitano e o Nacional. Falamos aqui.

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Os onze do San Lorenzo que entraram em campo há 55 anos: Castillo, Ravecca, Reynoso, Cancino, Iñigo e Tarnawsky; Facundo, Ruiz, Rossi, Sanfilippo e Boggio

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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