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20 anos sem a lenda Juan Manuel Fangio, o pentacampeão da Fórmula 1

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Se hoje o argentino se diz “do país de Messi” e ainda se declara do de Maradona também, antes o jeito mais fácil de ter a nacionalidade reconhecida no planeta era ressaltar ser compatriota de Juan Manuel Fangio. Afinal, as glórias do futebol se resumiam ao continente, com os rivais uruguaios ofuscando os hermanos vices olímpicos em 1928 e mundiais em 1930. Nas Olimpíadas, o país sempre conseguiu medalhas de ouro entre os Jogos de 1924 e 1952 (e pensar que só conseguiria novamente em 2004!), notadamente no boxe, mas sempre com vencedores variados. Fangio foi o primeiro esportista argentino supercampeão para o mundo. Caso visite o popular balneário de Mar del Plata, não deixe de ir ao museu do piloto na cidade vizinha de Balcarce, onde ele nasceu em 1911.

Se Fangio ainda é levado em conta, mesmo que sem unanimidade, como maior lenda da Fórmula 1, não poderia ter vindo ao mundo em ano mais simbólico. Mônaco organizou seu primeiro rali em 1911, ano da fundação da Chevrolet (marca usada pelo piloto em seus títulos na Turismo Carretera) e da primeira edição das 500 milhas de Indianápolis, que viu outra novidade: só uma das 40 máquinas não tinha piloto acompanhante, a que saiu em 28º lugar e era ocupada solitariamente por Ray Harroun. Ele ganhou a prova improvisando um espelho no painel para saber o que se passava atrás. Nascia o espelho retrovisor!

Fangio ainda tem na Fórmula 1 um recorde não superado de média de vitórias, liderado 47,5% das provas que disputou (24 triunfos em 51 grandes prêmios). Mas preservava reconhecida humildade, demonstrada nas imagens abaixo. À esquerda, ainda na tal Turismo Carretera, o popularíssimo campeonato argentino de automobilismo, tremula a bandeira quadriculada para um concorrente. Na outra, felicita José Froilán González, na ocasião em que este outro piloto, e não Fangio, tornou-se o primeiro argentino a vencer na Fórmula 1. Foi em 1951, em Silverstone – e foi também a primeira vitória da Ferrari na modalidade.

Outra glória argentina dos anos 50 foi Alfredo Di Stéfano, cuja primeira das suas cinco conquistas na Liga dos Campeões veio no ano em que Fangio já se sagrava tetracampeão de Fórmula 1. Mas é possível traçar semelhanças além da calvície, dos pentacampeonatos e de viverem já veteranos o esplendor – Di Stéfano venceu sua primeira Liga dos Campeões aos 30 anos e Fangio ganhou seu primeiro mundial aos 40. Afinal, foram santos que, cumprindo o ditado, fizeram seus milagres longe de casa. Os parcos seis jogos de Di Stéfano pela seleção argentina foram no Equador (na Copa América de 1947, onde sequer foi titular absoluto) e ele só se tornou um jogador completo já no futebol colombiano.

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As imagens referidas no terceiro parágrafo

Fangio foi duas vezes campeão da Turismo Carretera, em 1940 e 1941 (e Di Stéfano foi duas vezes campeão argentino, em 1945, onde só jogou uma vez, e 1947, já protagonista). Ela foi suspensa com a Segunda Guerra e só foi retomada em 1947, sendo então dominada pelos irmãos Oscar e Juan Gálvez, que se alternaram nos títulos das doze edições seguintes. Mas sem rivalidade: “quando falo ‘Juan’, me refiro a Fangio e quando digo ‘Juancito’ é sobre meu irmão”, declarou Oscar à Auto 2000 em 1987.

Fangio era considerado velho e ainda viveu uma tragédia em um rali entre Buenos Aires e Caracas, quando capotou barranco abaixo no Peru, matando o co-piloto. Quase parou de correr, mas brilhou em excursão de pilotos argentinos mandados por Perón à Europa às vésperas da criação da Fórmula 1, em 1950. Procurado a rodo pelas fábricas, ele conseguiu ser campeão por quatro escuderias diferentes – e alternando três delas em quatro títulos seguidos, outros dois recordes ainda exclusivos do argentino na Fórmula 1 (Alfa Romeo em 1951, Maserati em 1954, Mercedes em 1955, Ferrari em 1956 e novamente Maserati em 1957). “Ganhou suas corridas em uma era em que o piloto realizava uma contribuição muito maior à vitória. Era tão bom que, quando mudava de equipe, fazia a diferença”, resumiu o concorrente Tony Brooks.

O penta veio com 46 anos, outra marca que dificilmente será batida, e no “inferno verde” de Nürburgring (com o banco do carro terminando entortado e a suspensão dianteira travada por tanta areia, grama e pedras arrancadas de tão fechado que dobrava para superar a enormidade de 1min16 perdido em pit stop), circuito onde dois compatriotas morreram nos anos anteriores (Onofre Marimón em 1954, Ricardo Galvagni em 1955) e que desfigurou Niki Lauda. Em outra prova tradicional, as 24 Horas de Le Mans, em 1955, liderava até as duas últimas horas quando anunciou sua retirada em luto pela tragédia que vitimou o piloto Pierre Laveigh e 84 espetacdores – a corrida prosseguiu até o fim.

Um de seus parceiros de equipe naquela trágica prova foi Sir Stirling Moss, vice dele em 1955 e que relatou que “foi um homem muito humilde, que jamais culpou ninguém de nada. Foi verdadeiramente honesto. Jamais o vi realizar uma manobra desleal. Nunca mais houve no automobilismo um embaixador do seu tamanho. (…) Tinha uma presença… eu o observei na Inglaterra, ele não falava inglês mas o rodeava muitíssima gente que o olhava e o escutava com tanto respeito, gente para quem ele era um herói. Eu não falo espanhol, então nos comunicávamos com um pouquinho de italiano e com o movimento de nossas mãos. Aprendi muito dele seguindo-o de muito perto na pista”.

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Cercado por admiradores, beijado por uma dama, virando um champagne e carregando a bandeira do seu país: criando a imagem que viraria sinônimo do clichê de campeão no automobilismo

De fato, segui-lo era o melhor a se fazer, segundo Hans Herrmann, piloto da Mercedes que conseguiu vencer as 24 Horas: “quando se aproximava alguém, acelerava um pouco mais, mas não tanto (…). ‘Muitos corredores poderiam me ganhar’, nos dizia, ‘se me houvessem seguido; mas perderam porque me passaram”. Herrmann, como Moss, também concordou com a ótima pessoa do adversário:

“Me ficou impagavelmente gravada uma situação de 1955 na Argentina, no treino final (…). Restam só 10 minutos e os pneumáticos da minha Mercedes estão acabados. Fangio se inteira disso no boxe, vai até nosso diretor da corrida e lhe diz ‘Senhor Neubauer, dê-lhe meu último jogo conjunto ao Pequeno’. (…) Ele tinha em consideração até a mulher que limpava os banheiros. Era, simplesmente, um amigo humanitário. E cada pessoa sentia, de imediato e sem dizer palavras, sua sincera simpatia. Com os jornalistas era conversador, e para os fãs também sempre tinha seu tempo”.

Outro colega de Fangio na Mercedes foi Desmond Titterington, que assim lembrou dele: “às vezes era piloto, às vezes o passageiro. Assim que me tocou acompanhar Fangio durante três voltas, de total aprendizagem. Me mostrou cinco lugares do circuito onde um erro podia significar a morte, e como não falava inglês, preferiu ser bastante gráfico: sua mão cruzando à frente da sua garganta dizia tudo! Que experiência memorável! (…) Foi um dos grandes momentos da minha carreira”.

As histórias de uma lenda como Fangio estão largamente disseminadas na internet, como a que foi entupido de pedidos de autógrafos enquanto foi sequestrado pela revolução cubana (“quando o entregamos ao embaixador argentino, Juan Manuel foi o primeiro a falar. Nos apresentou como seus novos amigos cubanos, e creio que era sincero”, disse o vice-chanceler Arnold Rodríguez Camps). Preferimos realçar sua grandeza a partir de mais alguns depoimentos de outros mitos do esporte compilados pela excelente edição da revista El Gráfico que em 2011 celebrou o centenário do ícone:

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Com dois fãs confessos: Emerson Fittipaldi e Niki Lauda, nos anos 70

“Era um cara que, ainda que tendo corrido 40 anos antes, podia falar contigo e te dar uma visão do que podia ocorrer na corrida. (…) Eu consegui um título a menos que ele e sempre me perguntam se não queria alcançar seu recorde. Esse nunca foi meu objetivo, teria sido fantástico mas não estava em meus planos” – Alain Prost em 1996.

“Juan Manuel Fangio foi o homem mais agradável que eu conheci no mundo das corridas, dono de uma enorme veia humana. Cada ocasião que o via na Argentina, quando ia correr o grande prêmio, era tão divertido! Me causava grande interesse sua personalidade: era um cavalheiro em toda sua dimensão. Senti muito sua partida” – Niki Lauda em 1996.

“Vi Juan Manuel Fangio correr em Interlagos quando eu tinha 11 anos. Posso dizer que essa foi a maior motivação à minha carreira” – Emerson Fittipaldi no Grande Prêmio de Interlagos em 1991.

“Não se podem comparar as épocas, ninguém pode comparar o recorde dele com o meu. São simplesmente diferentes. (…) Nas ocasiões que tenho a oportunidade de manobrar esses carros em que Fangio correu, tomo um susto! Tenho que dizer que esses caras como Fangio tinham que ser muito corajosos para fazer o que fizeram” – Michael Schumacher na Motor Sport de fevereiro de 2011.

“Todos os anos alguém se consagra campeão do mundo. Mas é circunstancial. O verdadeiro campeão do mundo é um só. É Juan Manuel Fangio” – Ayrton Senna no Grande Prêmio de Interlagos em 1993.

Sua bela relação com Ayrton Senna, cujo personagem Senninha homenageou-o com um gibi-tributo póstumo em 1995, já foi objeto de outro Especial: clique aqui. Infelizmente, a adoração mútua entre eles não se refletiu nos gramados naquele 17 de julho em que Fangio nos deixou – foi uma segunda-feira particularmente triste em doses extras para os argentinos, que na mesma data tiveram de relembrar o primeiro ano do tetracampeonato brasileiro (no dia seguinte seria a vez dos atentados à Associação Mutual Israelita-Argentina completarem um ano) e aguentar a seleção de futebol ser eliminada na Copa América por conta da mão de Túlio Maravilha…

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Gerando sorriso em Senna e atenção total de Mansell. Ao lado, rodeado por campeões e exaltado por Senna como o maior deles: em pé estão Hunt, Stewart e Hulme, sentados ao lado estão Piquet e Brabham

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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