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50 anos de Chilavert, ícone e melhor goleiro dos anos 90

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Compensava as mãos pequenas com grande senso de posicionamento e constantes berros para ordenar a defesa. Além dos gols, claro

“Quando passam meus gols, ela me pergunta se o goleiro não tem que estar no arco”, admitiu em entrevista em 2007 o hoje cinquentão José Luis Félix Chilavert González o referir-se à filha de oito anos. A inocente visão maniqueísta da jovem era levada muito a sério até os anos 90, embora goleiro artilheiro não fosse novidade: René Higuita fez 40 gols, mas só 4 de falta. “No mundo vai ser impossível que me substituam. Antes, os goleiros só estavam para agarrar, hoje é diferente. Eu revolucionei a posição, não vai haver um goleiro que supere o que eu fiz”, sentenciou logo de cara naquela mesma entrevista o único eleito três vezes naquela década pela IFFHS o melhor goleiro do mundo.

Rogério Ceni o ultrapassou e fez, também em números relativos, bem mais gols de falta – cerca de metade (61) dos 129 gols do brasileiro foram superando também barreiras além dos goleiros, enquanto o paraguaio catalogou assim 15 dos seus 62 gols. Ceni ainda enfrentou muita resistência, mas é inegável que ela seria ainda maior não fosse o sucesso que a canhota de Chila amealhou especialmente a partir de 1996 (o primeiro gol do são-paulino foi em 1997) nessas cobranças. Realmente começou no ataque no Sportivo Luqueño, mas foi ordenado pelo irmão a ir para o gol. “Eu queria mesmo era ser centroavante, mas não tinha futebol para isso”, declarou em rara modéstia à Placar em 1997 aquele a quem os médicos, por um problema hepático, não deram dois meses de vida quando tinha 7 anos.

Modéstia que não sobrou naquela entrevista dez anos depois, fornecida à revista El Gráfico. Soltou pérolas como “meu defeito? A perna direita”, e mencionou-se na terceira pessoa sobre a rivalidade criada com Ceni (uma de suas vítimas, aliás, também nos campos: Chilavert marcou sobre Rogério em um 3-3 pela Supercopa em 1997): “não sei como computam no Brasil, mas não se pode comparar: eu meti 8 gols para minha seleção, converti em quatro eliminatórias diferentes, ele não fez nenhum para seu país. Não me ofende, ao contrário: me encanta que os brasileiros cheguem segundos atrás de Chilavert. Primeiro está o paraguaio”.

O lado provocador apareceu de imediato na Argentina, em 1985. Rubén Cousillas não se mostrava um goleiro confiável no San Lorenzo, que foi buscar a promessa do Guaraní, que já havia impedido seu astro de ir ao Atlético de Madrid. Chilavert estreou em um amistoso de verão contra o Independiente, que teve um pênalti assinalado. O paraguaio se aproximou do cobrador (Claudio Marangoni) e lhe fez uma carícia no rosto. Repetiria a cena com Norberto Alonso, do River.

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Nos anos complicados de San Lorenzo, foi querido. Por duas vezes esteve perto de ir ao River, em 1988 e em 1996 – esta capa não circulou. Em 1997, chegou a conversar com o Boca

Eram tempos duríssimos para os azulgranas, sem estádio próprio e de recente passagem pela segunda divisão, após o primeiro rebaixamento de um dos cinco grandes argentinos (em 1981). A postura estóica dos jogadores, especialmente em 1988, renderia o apelido de “Cambojanos” àquele elenco. “Sempre estarei agradecido ao San Lorenzo por me dar a primeira oportunidade”, assegurou naquela entrevista. Foi no clube do Papa que ele teve a primeira autorização para cobrar uma falta, em 1988. E foi lá que conheceu a esposa, Marcela, que praticava tênis (“nos faziam correr ao redor das quadras de tênis”).

A relação com a torcida cuerva foi de amor e ódio. No início, inspirou-a a arrecadar dinheiro para arranjar os 120 mil dólares pedidos pelo Guaraní para vendê-lo em definitivo. Também destacou-se em um time estropiado que conseguiu ser vice argentino em 1988. Na época, foi negociado com o River e até apareceu todo sorridente na capa da revista El Gráfico junto de outros reforços do técnico César Menotti. Pela operação, o time de Núñez cederia em troca Sergio Goycochea, mas uma doença deste impediu que a transferência se efetivasse. Nada satisfeito, Chila foi para o Real Zaragoza. Dos goleiros titulares da elite espanhola, era o mais jovem: tinha 23 anos enquanto a média de idade era de 29.

Ficou três anos na Espanha, onde marcou, de pênalti, seu primeiro gol oficial. O problema é que no reinício da partida a Real Sociedad marcou enquanto o goleiro não voltava à meta. “Eu agarrei o camisa 10 do meu time, Villanova, e lhe disse: ‘fica no gol e não te mexas’. Meti o gol, e quando estou cruzando a metade do campo, vejo o 10 abraçado com um companheiro em pleno festejo. Eu quis arrancar, mas eu não sou Ben Johnson, e quando cheguei na área já era tarde. Agarrei Villanova e lhe disse de tudo (…). E ele me contestou: ‘é que nunca vimos que um goleiro acertasse um gol de pênalti”. A melhor fruto da estadia por lá foi, por linhas tortas, começar a ser ligado ao Vélez.

“Minha chegada ao Vélez se deu um pouco por acaso. Eu havia cruzado com o preparador Weber quando jogava no Zaragoza e combinamos que nos íamos ver quando eu passasse por Buenos Aires. Fiz isso, e como não existiam celulares e não tinha seu telefone, me ocorreu de ligar para o Vélez, porque o preparador estava trabalhando aí. Me atendeu justo Raúl Gámez, que era dirigente do clube (…). Foi o destino, porque aí mesmo Gámez me convidou para que me somasse ao clube. Eu lhe respondi que no outro dia ia ao Paraguai e que tinha várias ofertas. ‘Onde estás? Bom, em uma hora vamos para aí e tomamos um café’ (…) Me convenceram para jogar por seis meses e (…) ao fim fiquei por nove anos”.

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Na noite em que meteu dois gols em um 5-1 no Boca do rival Navarro Montoya (por sinal seu antecessor como goleiro ídolo no Vélez). No de falta, a bola ainda bateu na trave antes de entrar

Gámez, do seu lado, definiu Chilavert como “o mais brilhante da história do clube. Por Chilavert nos convidavam aos torneios de verão, nos sentávamos com a TV para brigar um cachê importante e se tornaram torcedores – e logo sócios – um montão de pessoas. Tinha um contrato altíssimo que se pagava sozinho”. Até então, o Vélez tinha “uma história de bairro, com rivais de bairro e pensamentos de bairro. (…) Chila era a própria representação do Vélez: pequeno, fanfarrão, mas muito vencedor e com muita vontade de seguir sendo vencedor”, nas palavras desta bela nota do saudoso Impedimento.

Ousamos discordar só em dois pontos: o paraguaio, alto e parrudo, estava longe de ser pequeno. E, se era desbocado, ao menos no auge fanfarrão não era: prometia e cumpria – o Vélez, que tinha apenas um único título, em 1968, voltou em 1993 a ser campeão argentino. O goleiro, para o riso geral, havia prometido ao chegar em 1992 que a taça voltaria logo. Naquele ano, ela foi perdida por só dois pontos para o Newell’s de Marcelo Bielsa. E o título em 1993, aliás, foi garantido com gol de Chilavert, em pênalti contra o Estudiantes em La Plata. O lance foi retratado pela Placar mais como uma curiosidade do que como o recurso mortífero que o paraguaio popularizaria.

Isso teve de esperar um pouco, porém: o cobrador oficial de bolas paradas era Roberto Trotta (que, lesionado, se ausentara contra o Estudiantes) e foi só com a venda do colega à Roma em 1996 que Chila tornou-se o batedor. Seu primeiro gol de falta, ainda em 1994, gerou até ciumeira violenta de Trotta no vestiário: falamos aqui. Foi, por sinal, semanas após aquele time de bairro destronar o bicampeão São Paulo de Telê no Morumbi na final da Libertadores, graças à defesa do goleirão no pênalti de Palhinha – ele já havia salvo seu Vélez no drama dos penais nas oitavas e nas semifinais, sempre acertando também a sua cobrança (confira). Em 1995, veio novo título argentino e sua primeira eleição como melhor goleiro do mundo. No fim do ano, esteve novamente para fechar com o River e nova capa da El Gráfico foi produzida sobre isso, mas desta vez sem ir às bancas.

Pior para a Banda Roja, a primeira vítima dos sucessivos gols de falta na campanha do único bi nacional seguido velezano. É talvez o gol mais lembrado do paraguaio, aparecendo de surpresa para a 60 metros do gol encobrir Germán Burgos. “Sair campeão com o Boca ou River é mais fácil. Se o gol de 60 metros no Burgos eu fizesse com a azul y oro, a torcida do Boca ainda estaria dando voltas no Obeslico”. O Independiente talvez tenha sido quem mais sofreu, a ponto de passar a ter mais derrotas que vitórias contra o Vélez de tão freguês que foi na década (não venceu uma sequer em Avellaneda), mas encontros com a poderosa dupla é que ganharam aura de clássico. Chilavert criou uma rivalidade com o boquense Carlos Navarro Montoya, eleito o melhor goleiro do futebol argentino em 1994 apesar de nada ter ganho enquanto o paraguaio levantava Libertadores e Mundial (veja aqui).

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Vencendo a barreira de Bassedas, Chamot, Batistuta, Almeyda e Barros Schelotto em 1996: a Argentina foi a seleção que mais sofreu gols dele

Um primeiro troco viera ainda em 1995, pois o campeonato ganho pelo Vélez era liderado por um Boca que, com Maradona e Caniggia, era líder invicto até a antepenúltima rodada. Maradona que em certo jogo se rendeu, cumprimentando-o após Chila ir no canto impedir um gol de falta que parecia certo. Mas Navarro Montoya apimentou a rixa ao declarar-se como uma Mercedes enquanto o paraguaio seria um Fiat 600. Levou a pior: naquele vitorioso Clausura 1996, o Vélez sapecou de virada um 5-1 no Boca com Montoya sofrendo um de falta e um de pênalti do paraguaio, que respondeu que “o Fiat 600 sai campeão e a Mercedes está na oficina”. Burgos também seria vitimado outra vez, mas pela seleção.

Meses depois, pelas eliminatórias, o Paraguai arrancou um empate no Monumental. “Quando o Batistuta fez 1-0, todo o estádio me xingou. Eles não estavam jogando contra o Paraguai, mas contra Chilavert. (…) Veio a falta. Corri para bater. Nesse momento tive a maior sensação da minha vida. Cheguei na bola e o estádio inteiro ficou mudo. Era o silêncio dos inocentes”, gabou-se à Placar. Acabaria eleito o melhor jogador sul-americano daquele ano, encerrado com outro título, o da Supercopa, com ele vazando Olimpia, Santos e Cruzeiro (na final, na primeira vitória argentina no Mineirão – se Dida não pegasse outro pênalti dele, em Buenos Aires, o paraguaio terminaria artilheiro do torneio).

Essas sucessivas manchetes preparam o terreno para Rogério Ceni arriscar contra o União São João em fevereiro de 1997. O Vélez, para variar, foi campeão neste ano também, na Recopa, com Chila marcando no tempo normal e agarrando duas cobranças na decisão por pênaltis. Em dado momento de 1997 sua seleção liderou as eliminatórias para a Copa e ele voltou a vazar a Argentina. A IFFHS voltou a elegê-lo o melhor goleiro do mundo, o que não impediu Marcelo Bielsa fazê-lo treinar separado por discordâncias quando El Loco chegou. Depois, se acertaram (Chilavert disse que Bielsa e Bianchi são os melhores técnicos que teve) e o Vélez foi campeão em 1998, com El Loco agradecendo o astro por não ter feito o grupo se voltar contra o técnico. Já o mundial da França terminou cedo, mas nos números absolutos e nos relativos só o campeão Barthez levou menos gols que o Paraguai, que superou um grupo complicadíssimo contra a Nigéria campeã olímpica, a Bulgária de Stoichkov e a Espanha.

“A dose de sorte estava do lado dos franceses: Gamarra havia machucado o ombro, tinha que ir ao choque com Trezeguet e não o fez, ainda me segue roçando a bola pelo cotovelo direito. Faltavam só sete minutos, eu estava seguro de que nos pênaltis ganhávamos nós. E não tive nenhum tiro livre, os franceses se cuidaram de não cometer faltas perto da área. (…) Tivemos a ponto de nocautear o campeão do mundo”. Ele, que ergueu os colegas desabados com o gol de ouro, explicou que “lhes dizia que havíamos caído como dignos paraguaios, lutando, com garra. Depois, chorei no vestiário, foi uma das poucas vezes que chorei pelo futebol. O lindo é que graças a esse jogo os franceses conheceram onde está situado meu país, até nossa chegada nem o conheciam. Hoje há uma rua em Clapierre, o povoado onde estivemos, que se chama Paraguay 98”.

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Bianchi e Chilavert (com a taça do mundial sobre o Milan), a dupla que tornou o Vélez gigante. E o goleiro saudado por Maradona após fazer milagre em falta dele e tietado por Casillas, apesar da decadência, na Copa 2002

Segundo goleiro que mais fez defesas naquela Copa (22), foi eleito novamente o melhor goleiro do mundo em 1998. Mas acabou execrado em seu país em 1999: o Paraguai sediaria a Copa América. Descontente com os gastos no torneio, Chila recusou-se a jogá-lo. Foi notícia em 1999 também pelos três gols marcados em um 6-1 no tradicional rival do Vélez, o Ferro Carril Oeste. Mas o lado polêmico passava a se sobrepor ao talento. Levava um taco de beisebol no carro, dizia que o Boca não tinha dinheiro para compra-lo, brigava com oponentes (sobre o então técnico do River, Américo Gallego, lembrou que “ele me fez um gesto de que eu era um cagão. Mas o certo é que quando saltei a placa de publicidade para busca-lo, se atirou de cabeça no túnel como se fosse uma piscina”).

Repórteres também não escapavam: “Chilavert já nos havia destruído três microfones. Se nota que não gostava nossas brincadeiras sobre seu sobrepeso. Por isso nos propomos não tentar mais reportagens com ele: não entendia a onda do programa e os microfones nos saíam caros”, declarou o apresentador Martín Ciccioli. O ódio era mútuo. Chilavert cansou-se de ser alvo de objetos das arquibancadas: “fui jogar contra o Boca (…). Jogaram uns 500 o ovos cozidos em cima de mim. Agarrei um montão de ovos e coloquei na frente dos bagos. Vencemos por 2-1” e “no Newell’s me deram um pedaço de costela na cara, fiquei meio tonto. No primeiro tempo me haviam atirado dois cutelos Tramontina. Quando caiu a costela, Castrilli me disse que fôssemos. ‘Aonde vamos agora que estão trazendo a parrilla para fazer o churrasco?'” foram algumas declarações a respeito.

O pior foi uma bomba vinda do Lanús, em 2000. Naquele mesmo ano, acertou com o futebol francês. Apesar da ida à Europa, não foi pago. Relatou que o empresário que levou-o ao Racing de Estrasburgo é “a pior pessoa que conheci na minha carreira. (…) Um conselho aos jogadores: se têm Da Fonseca à frente, mudem de calçada. E antes revisem os bolsos”. Em 2001 ele ainda foi eleito o sexto melhor goleiro do mundo, mas apesar de novo gol sobre a seleção argentina ele já iniciava a decadência – o ano foi mais lembrado pela cusparada em Roberto Carlos após o lateral tê-lo ofendido como indígena (“cuspiria mil vezes em Roberto Carlos”): falamos aqui. Fez uma péssima Copa em 2002.

Após duas temporadas no Peñarol, voltou ao Vélez em 2004. Despediu-se na reserva de Gastón Sessa, que, lúcido, declarou em 2010 que “meter-se com Chilavert no Vélez é como vir dos Estados Unidos meter-se com Bin Laden”. Mais abaixo, aquela defesa que rendeu saudação do desafeto Maradona (“é comunista só da boca para fora”, disparou o direitista Chila em 2007): teria sido o último gol da carreira de Dieguito. Mas antes, fique com o vídeo que talvez melhor exemplifique a devoção que inspira até hoje no clube de Liniers: aquele gol sobre o River em 1996, com as caras e bocas atônitas de Enzo Francescoli, Germán Burgos e do técnico Ramón Díaz para os rivais e as maravilhadas dos seus colegas, que lhe empilham para comemorar a poética trajetória em câmera lenta da queda da bola…

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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