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135 anos do Gimnasia y Esgrima de Buenos Aires, sede do 1º Brasil x Argentina e da 1ª Copa América

 

GEBA
São 135 anos de história, embora a imagem – que não criamos – se equivoque ao colocar 1885 em vez de 1880

Falar de Gimnasia y Esgrima no futebol argentino é quase falar do clube de La Plata, que se proclama por sinal o decano dos clubes de futebol ativos no país, já que foi fundado em 1887 – uma meia verdade, pois, como indicado no nome, o Lobo dedicava-se originalmente à ginástica e esgrima, e apenas em 1905 passou a buscar gols. Mas o termo GyE foi criado na capital federal mesmo, por um clube seminal nos primórdios do futebol de seleções sul-americano, ainda que tenha há 98 anos deixado o futebol adulto competitivo. Hoje o Gimnasia y Esgrima de Buenos Aires, sede do primeiro confronto entre Brasil x Argentina (a ser pela centésima vez repetido amanhã), faz 135 anos.

Relembramos abaixo trechos de outro especial dedicado ao GEBA, parte de uma série na Copa do Mundo de Rúgbi de 2011 sobre os clubes de rúgbi que haviam se destacado no futebol argentino: clique aqui.

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Certos ideais e noções estéticas da Antiguidade Ocidental Clássica, reavivados no Renascimento, voltaram a ganhar força ao fim do século XVIII. Inicialmente nas artes, por meio dos neoclássicos e dos árcades, posteriormente tiveram grande difusão também pela crescente prática de atividades físicas nas classes mais ricas. Esta parte deu-se a partir da segunda metade do século XIX, culminando na primeira edição moderna dos Jogos Olímpicos, em 1896. Sob este signo, e de certa forma também devido à paralela preocupação higienista deflagrada com a nascente microbiologia (Louis Pasteur formulou em 1862 a teoria de que micróbios, descobertos por ele, causavam de doenças), o cuidado com o corpo teve sua importância redescoberta.

Assim, práticas desportivas vieram a ganhar popularidade para além do lazer, constituindo parte integral da formação educacional das pessoas. Pedagogos, cientistas, militares e pensadores em geral concordavam quanto à utilidade e necessidade de exercícios físicos, para moldar adequadamente corpo (prevenindo assim doenças) e espírito (contra “desvios de conduta”) – e, na face sórdida, também a “raça”, pois a eugenia estava igualmente em voga na época.

Em Buenos Aires, isto levou a surgimentos de diversos clubes dedicados a um ou mais esportes (praticados também nas escolas), em muitos casos com incentivos estatais. Dentre eles, a Sociedad Hípica Argentina, o Tiro Federal Argentino, a Unión Velocipédica Argentina e o Tenis Club Argentino, instalados na nobre zona norte da cidade. Próximo a eles, no bairro de Palermo, foi fundado em 1880 o Club de Gimnasia y Esgrima (denominação original). Como indica o nome, ele foi criado para a prática de ginástica e esgrima, então considerados os esportes por excelência da elite criolla – termo que na Argentina faz referência aos descendentes dos colonizadores espanhóis, não sendo um xingamento a negros.

Trata-se de uma instituições desportivas mais antigas da Argentina. Seu sucesso inspiraria propostas semelhantes em todo o país: já em 1885 alguns entusiastas seus na recém-fundada La Plata (inaugurada em 1882 após planejada criação para ser a capital da província bonaerense, dois anos após a cidade de Buenos Aires ser alçada a distrito federal) começaram as discussões acerca da criação de um clube similar local; em 1887, estava fundado o Gimnasia y Esgrima de La Plata, que acabaria sendo, dentre seus homônimos, o mais ilustre no futebol.

Outros GyE foram então se espalhando pelo país. Além do portenho e do platense, hoje eles abrangem desde aqueles que também já disputaram a elite do futebol argentino, como os de Jujuy e Mendoza, passando pelos de Ituzaingó, Rosario (estes, de maior presença recente no rúgbi; o rosarino já jogou futebol também), Comodoro Rivadavia, Lanús, Pedernera Unidos de San Luis (mais dedicados ao basquete; o lanusense também já passou por futebol e rúgbi), Chilvilcoy, Concepción del Uruguay, Santa Fe, Tandil e até outros existentes na capital federal, nos bairros de Flores, Vélez Sarsfield, Villa del Parque (outro mais dedicado à bola ao cesto e que contou nesta modalidade com um adolescente Esteban Cambiasso) e Villa Devoto, além de outros semelhantemente obscuros.

Muitos deles vieram a adotar também distintivo e uniforme (de cores branco e azul celeste, tal qual a bandeira da Argentina) similares aos do pioneiro. Na imagem acima, a camisa e escudo originais do Gimnasia de Buenos Aires, obtidos no Amateurismo in Colores, que reproduz as vestimentas de equipes argentinas de futebol extintas ou desativadas. Posteriormente, foi acrescentado ao emblema, além de adereços relativos às atividades em que se dedicava originalmente, o famoso verso do poeta romano Juvenal, mens sana in corpore sano (“mente sã em corpo são”, em latim), que bem exprime as inspirações por trás da criação do clube. A abreviação mens sana se tornaria um apelido de muitos Gimnasias.

O futebol e o rúgbi, por sua vez, ainda eram esportes mais restritos à comunidade britânica, seja em seus clubes (o Buenos Aires Football Club e o Porteño, por sinal, eram seus vizinhos de bairro, também sediados em Palermo), escolas (St. Andrew’s Scots SchoolLomas Academy e Buenos Aires English High School, por exemplo) e empresas (como a Buenos Aires and Rosario Railway), só vindo a encantar os criollos em maior escala já no início do século XX. E o GEBA experimentou um sucesso meteórico em ambos. No futebol, venceu a terceira divisão em 1906 e a segunda em 1909, ano em que venceu também a segundona do rúgbi logo em seu debute ali. Afiliado na União de Rúgbi em 1908, foi a pedido dele que ela passou a publicar suas atas e regramentos também em espanhol, além do inglês.

Imagens do estádio Club de Gimnasia y Esgrima de Buenos Aires. Encontra-se mais ou menos entre o Hipódromo Argentino e o Aeroparque Jorge Newbery, no bairro de Palermo

No futebol de elite em 1910, o Gimnasia obteve uma razoável sexta colocação em sua estreia e, no mesmo ano, chegou às fases decisivas das copas internacionais, a Honor e Competencia (torneios eliminatórios com equipes rosarinas e das associações argentina e uruguaia). Na primeira, caiu nas semifinais, e, na segunda, alcançou a decisão da etapa argentina. A equipe não voltaria a ir tão longe nelas. Aquela final da Competencia de 1910, curiosamente, reuniu um Gimnasia e um Estudiantes. Mas não os hoje mais famosos homônimos de La Plata, e sim os de Buenos Aires, atualmente mais obscuros (e que nunca tiveram rivalidade entre si). O adversário, que na fase decadente revelaria Ezequiel Lavezzi, levou a melhor, por 3 a 1.

O GEBA, após nova sexta colocação argentina em 1911 (ano em que sua equipe de rúgbi obteve seu primeiro título de rúgbi, sendo a primeira criollo campeã nele), liderou a cisão que provocou a realização de dois campeonatos argentinos separados em 1912 (ano em que o rúgbi da instituição foi bicampeão). Entendendo que seus sócios tinham o direito de usufruir livremente de suas instalações, o clube não aceitou cobrar ingressos deles, contrariando a Associação Argentina de Futebol. Ele, o Porteño e o Estudiantes de La Plata fundaram a Federação do Futebol Argentino, trazendo consigo alguns clubes da segunda divisão, dentre os quais o Atlanta e o Independiente.

Os três torneios da FAF (as duas ligas se reunificariam em 1915) foram os campeonatos de elite em que o Gimnasia y Esgrima portenho teve suas melhores colocações, disputando os títulos nos dois primeiros. No de 1912, ficou em quarto, a dois pontos dos líderes Porteño e Independiente. No de 1913, foi o vice-campeão, três pontos atrás do Estudiantes (desta vez, o de La Plata mesmo, surgido por sinal em 1905 por ex-membros do próprio Gimnasia de lá, descontentes com a suspensão da recém-iniciada prática de futebol neste). No seguinte, ficou em quinto, para depois ocupar a 12ª posição no primeiro campeonato reunificado.

Os campeonatos de 1916 e 1917 seriam os últimos em que o GEBA disputou no futebol. Marcaram também os dois únicos encontros oficiais nele com o xará platense, que debutou na elite no primeiro destes. O GELP venceu ambos, respectivamente por 1 a 0 e 2 a 1. Após ganhar apenas quatro partidas, empatar outras quatro e perder as doze restantes no campeonato de 1917, os gimnasistas da capital argentina encerraram o certame em vigésimo, à frente apenas do Banfield, e foram rebaixados. Logo, o futebol foi desativado. Os únicos troféus acabaram sendo aqueles da terceira e segunda divisão.

Seleção Alemã antes de partida contra os amadores da Inglaterra, em 1911. Hiller é o quarto em pé, da esquerda para a direita. Na Argentina, jogou também no All Boys, no River Plate e no Estudiantil Porteño

Apesar da duração fugaz no futebol, o Gimnasia y Esgrima de Buenos Aires teve tempo para entrar na história sul-americana deste esporte. Em 1914, o seu estádio foi o local da realização dos dois primeiros Brasil x Argentina (que marcaram também os primeiros jogos unanimemente tidos como válidos da Seleção Brasileira, até então reunida apenas para amistosos contra clubes e combinados), pela primeira Copa Roca, disputa reativada recentemente sob o nome de Superclássico das Américas.

Três jogadores do GEBA estiveram na primeira partida – Arturo Reparaz, Aquiles Molfino e Santiago Sayanes (presente também no segundo). O Futebol Portenho, em sua série de especiais sobre a Copa Roca, naturalmente dedicou um (aqui) à inaugural, incluindo fotos dos dois selecionados antes do jogo, em que Molfino foi capitão e autor de um gol na vitória por 3 a 0 dos anfitriões.

A cancha deste Gimnasia  foi ainda sede de cinco dos seis jogos da primeira Copa América, em 1916. Também neste ano, o clube teve seu único artilheiro na primeira divisão argentina: Marius Hiller. Além de ter atuado três vezes pela sua Alemanha natal (assim como um tio seu, Arthur, outro a ter jogado pela Nationalmannschaft), Hiller também defendeu a Argentina.

Por ela, jogou apenas duas vezes, ambas naquele 1916, contra o Uruguai (em vitórias por 3 a 1 e 7 a 2), mas marcando quatro – até hoje, sua média de dois gols por partida é a melhor da história da Seleção Argentina. Apenas Guillermo Stábile a igualou, com seus oito tentos em quatro jogos – todos na Copa do Mundo de 1930, onde El Filtrador foi o artilheiro. Hiller foi também, por muito tempo, o estrangeiro que mais vazou as redes adversárias pela Albiceleste, sendo superado somente por Gonzalo Higuaín.

Lucha Aymar e Piti D’Elía, duas Leonas do GEBA, hoje melhor no hóquei sobre grama do que no rúgbi

Além do alemão e daqueles três que estiveram na primeira peleja contra os brasileiros, Antonio Apraiz, Antonio Bruno, Emilio Fernández, Santiago Gallino, Eduardo Rothschild (da célebre família judaica banqueira) e Amadao Vernet também defenderam a seleção vindos do clube de Palermo. Os dois últimos, curiosamente, jogaram ainda no San Isidro, outro que se focaria no rúgbi.

Se o futebol hoje em dia é praticado apenas na forma soçaite no GEBA, o rúgbi continua na ativa ali, embora sem tanto destaque. Além do bicampeonato de 1911 e 1912, o clube obteve outros dois títulos (em 1932 e 1939), sendo o sétimo maior vencedor do mais valorizado torneio argentino deste esporte, em que ele originou nada menos que três dissidentes: Pucará, Deportiva Francesa e Curupaytí (curiosamente, todos rubroazuis). O primeiro fez mais sucesso: campeão em 1946 e 1950 e hoje figura na elite provincial mais respeitada do país.

O Gimnasia, atualmente, também está na primeira divisão, mas veio a entrar em decadência a partir da década de 50. Ainda assim, seu estádio era o mais utilizado pelos Pumas até o final dos anos 60. O último jogo da Seleção Argentina de Rúgbi (que hoje prefere o campo do Vélez Sarsfield) disputado ali foi em 1993. Outro fator que o liga ao selecionado é o fato de que foi do GEBA a ideia de uma camisa com listras alvicelestes horizontais de dez centímetros cada. Até essa sugestão, em 1927, a Argentina jogava rúgbi ou de camisas totalmente brancas ou totalmente azuis.

Atualmente, o Gimnasia de Buenos Aires vem tendo maior sucesso recente no hóquei sobre grama, bastante popular entre as mulheres na Argentina, cuja seleção feminina – Las Leonas – é uma das maiores forças mundiais da modalidade. Revelou, por exemplo, Luciana “Lucha” Aymar, capitã da grande geração recente da seleção. O hóquei é outro das dezenas e dezenas de esportes praticados na instituição, que veio a formar muitos dos atletas olímpicos do país.

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Soçaite recente no GEBA

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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