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Todos os argentinos do America-RJ, clube que abriu as portas a eles no Brasil

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O ídolo Alarcón e o recém-chegado Sosa

Há exatos 55 anos, em 18 de dezembro de 1960, o America bateu de virada o Fluminense e venceu o primeiro campeonato do Estado da Guanabara, até hoje o último título estadual rubro. Não tinha argentinos, mas coube a ele, o primeiro time carioca a excursionar pela Argentina (chegando até mesmo a enfrentar a Albiceleste), praticamente abrir as portas aos vizinhos no futebol brasileiro – faceta pouco conhecida do Mecão, que por sinal anunciou ontem mesmo mais um argentino, Matías Sosa. E foi um hermano quem fez do Diabo o mascote do clube!

O America excursionou pela Argentina no início de 1929, no fim da fase áurea rubra. O time havia sido campeão estadual no ano anterior e era o terceiro maior vencedor do Rio de Janeiro, à frente de Botafogo e Vasco. Em 24 de fevereiro, foi massacrado pela Argentina, que fez 6-1 no estádio do Sportivo Barracas. A Albiceleste anotou nessa ordem: com Cesáreo Onzari, autor do primeiro gol olímpico da história (em 1924); dois de Roberto Cherro, segundo maior artilheiro da história do Boca e seu maior no século XX; com Carlos Peucelle, que faria um dos gols da final da Copa de 1930 e é considerado o pai de La Máquina, célebre elenco do River dos anos 40; e dois de Bernabé Ferreyra, que no River fez incríveis 187 gols em 185 jogos. Feitiço descontou quando a partida já estava 4-0.

Mas os cariocas se recuperaram. Arrancaram um 1-1 com o Estudiantes (bivice-campeão nacional nos dois anos seguintes) em Mar del Plata e massacram por 5-1 o Ferro Carril Oeste no estádio do Vélez (gols de Feitiço, Espanhol, Celso e dois de Osvaldo). Depois, enfrentaram no estádio do San Lorenzo uma seleção B da Argentina que conservava nomes da goleada, como Ferreyra, além de jogadores da Copa de 1930 como os irmãos Juan e Mario Evaristo; e Atilio Demaría, campeão da de 1934 pela Itália. O Mecão conseguiu um 1-1 (gols de Ferreyra e Nilo). Convidado pelo Colo-Colo para ir o Chile, o America só se esticou a Montevidéu, saindo de lá com outro 1-1, contra o Peñarol.

O profissionalismo foi escancarado no início da nova década nos países visitados e o America foi um dos primeiros brasileiros a assumir a ousadia, em 1933. Por razões óbvias, o amadorismo limitava o uso de estrangeiros apenas àqueles que já residissem no Brasil. A nova era possibilitava intercâmbio muito maior. Em 1934, então, o Fluminense contratou o ponta Juan Arrillaga, ex-seleção. O campeão Vasco importou Salvador D’Alessandro, Roque Calocero, Valentín Navamuel, Hugo Lamanna e Esteban Kuko, mas só D’Alessandro (sem parentesco com o colorado) foi titular. Diferentemente da aposta alta do clube da Tijuca, que trouxe de uma vez oito argentinos. Incluindo gente renomada.

Juan Rivarola era um meia do Colón (da cidade de Santa Fe) e havia sido titular da Argentina campeã da Copa América de 1929 – uma façanha em tempos onde eram bem restritas as convocações a jogadores de fora do futebol da Grande Buneos Aires. Alberto Fassora, atacante do Racing, também estava nesse elenco. Outro do Racing era o zagueiro Juan Della Torre, por sua vez titular na Copa do Mundo de 1930. Ismael Arrese era jogador de seleção como atleta do nanico Platense e posteriormente viraria ídolo no San Lorenzo. O defensor Manuel de Saá (nascido na Espanha, mas que defenderia a Argentina) e o atacante Oscar De Dovitis eram ídolos no Vélez. José Carlos Ponzinibio já havia jogado no Milan. Quem destoava era Juan Mariani, reserva no Boca.
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O alarde foi grande. Quem mais gerou comoção, nos dois países, foram De Saá e De Dovitis: eles teriam acertado a transferência escondidos dos dirigentes velezanos, e, temendo a fúria da torcida, comunicaram que iriam de navio ao Rio de Janeiro mas foram de avião. De Dovitis quase acertou com o São Paulo (que levou Ponzinibio, que não chegou a atuar no Estadual pelos rubros) e foi impedido por uma multidão rubra na estação ferroviária Pedro II. O America acabaria 3º colocado. Resultado que hoje seria exaltado, mas um fracasso na época. A estreia dos gringos foi em derrota de 2-1 para o Vasco, mas em seguida bateram pelo mesmo resultado Flamengo (com gol de Fassora) e Fluminense e impuseram um 4-1 no Bonsucesso (com três de Fassora).

Mas tudo desandou a partir de derrota por 2-1 contra o Bangu, campeão do ano anterior. Se hoje a partida é “o” clássico para o America, na época não era menos fervente. Os argentinos reclamaram da violência, o Bangu retrucou que foi iniciada por eles mesmos. Fato é que o árbitro foi criticadíssimo por ambos por não a coibir. Rivarola foi expulso e chegou a pegar quatro jogos de suspensão. De Dovitis, caçado, teve reiteradas lesões.

O America só venceu um dos sete jogos seguintes (dando o troco no Bangu com um 5-0) e chegou a perder de 4-1 do Bonsucesso. A partida seguinte àquela derrota tumultuada com o Bangu foi um 1-1 com o São Cristóvão. E o Jornal dos Sports já vislumbrava que os argentinos não vingariam: “todos que no jogo de domingo culparam a defesa do São Cristóvão de ter impedido pela violência a produção dos atacantes do America, mudariam de opinião assistindo o treino de ontem em Campos Sales”.

A nota prosseguia: “o quinteto de avante dos rubros continua a jogar bonito, porém a sua produção é mínima. Rivarola contagiou Fassora da sua febre de trabalhar sozinho. E como o centroavante é menos ágil e possui menos ‘controle’ de bola do que o seu ‘meia’, já não envia mais a goal aqueles seus kicks violentos dos primeiros treinos porque quase sempre, depois do segundo dribling, a bola não está mais em seu poder… a repetição desses lances é que tornou o treino de ontem desagradável para os aficionados que esperavam assistir uma demonstração de força do onze rubro”.

Opinião parecida teve Floriano Peixoto Corrêa, técnico do Atlético Mineiro quando o America visitou Belo Horizonte: “como conjunto, o America deixou-me uma impressão bem medíocre. Falta-lhe entendimento sólido, ajustamento entre as linhas. Os halves dão shoots para a frente, sem fixar um ponto, sem premeditar um passe. Se os halves fazem isso, é fácil calcular o procedimento dos backs. O ataque deixou-me a sensação de que seu verdadeiro condutor é De Dovitis – um bom jogador. Não há muita visão de goal nos artilheiros. Tanto que raramente os arremates são seguros. Eu esperava ver outra coisa”.

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Rivarola, Arrese e Fassora. Ao meio, o bichado De Dovitis. À direita, Della Torre

Os contratos com os argentinos não foram renovados. Ironia: com um time prata-da-casa, o America seria campeão em 1935 (um dos integrantes, o volante Og Moreira, passaria posteriormente pelo Racing), na época igualando-se aos seis títulos do Flamengo. Mas só conseguiria mais um outro título estadual, aquele de 1960 que hoje faz 55 anos. Nesse meio-tempo, o futebol brasileiro encheu-se de argentinos, especialmente nos anos 40. Eram os anos do Platinismo, como mencionamos ontem no especial do Botafogo. Em 1937, vieram Della Torre, de volta para ficar até 1940, e o lateral-esquerdo Hortensio Pellizari, ex-Ferro Carril Oeste e Vélez e já no futebol brasileiro (pelo Estudantes-SP).

Novamente antecipando-se à maioria, o Mecão contratou do Racing em 1938 o atacante Roberto Bugueyro; e em 1939 formou nova colônia, com o goleiro Cilenio Cuello, o defensor Juan Manuel Baigorria (ambos do Independiente) e o zagueiro Héctor Gritta (outro ex-Vélez), o único que vingou: passaria nove anos na Tijuca. Antes, o America quase havia fechado com o atacante Agustín Valido, sondando-o antes do Flamengo, para onde acabou indo virar mito (explicamos no especial dedicado a Valido). Curiosamente, do Flamengo viria Atmio Luis Villa em 1940 como reposição a uma suspensão interna de Gritta. Este ficaria conhecido como grande marcador da grande estrela da época, Heleno de Freitas, tendo como ponto mais alto novos terceiros lugares, em 1945 e 1947, como seus “antecessores” em 1934. Tanto Villa como Gritta chegaram a fazer dupla com Della Torre.

O argentino que mais chegou perto do título com a camisa rubra foi o atacante Martín Alarcón. Ex-River, vinha do Libertad paraguaio (era da província fronteiriça de Formosa, formando-se no Sportivo Patria de lá, que só jogava o torneio local) e foi bivice em 1954 e em 1955. No de 1955, para o azar rubro, as finais contra o Flamengo não previam saldo de gols como critério de desempate; foi necessária uma terceira final mesmo com o America perdendo a primeira por 1-0 mas massacrando na segunda por 5-1, com Alarcón marcando. Na terceira, deu Flamengo: 4-1, com o argentino precisando se retirar aos 15 minutos de jogo por causa de lesão. Ficaria até 1957. Até ganhou um torneio, em taça amistosa no Peru.

O argentino seguinte teria sido literalmente amaldiçoado. Foi Carlos Buttice, grande ídolo no San Lorenzo. Suas acrobacias lhe renderam na Argentina o curioso apelido de El Batman. Apareceu em 1970 e a Placar o mencionou como um dos numerosos goleiros americanos que não superaram a maldição supostamente proferida por um antigo titular dispensado. Buttice conseguiria êxito no Bahia e por bem pouco não virou mito no Corinthians, que por detalhes não encerrou em 1974 seu jejum.

Primeiro jogador importado da história corintiana (os estrangeiros anteriores no clube haviam crescido no Brasil), Buttice até hoje se gaba de ter enfrentado Pelé 14 vezes e jamais ter sido vazado por ele. Foi o grande nome, aliás, da Copa Pelé de 1987, espécie de mundial de veteranos que fez sucesso na época. Depois dele e antes de Matías Sosa (ex-jogador dos juvenis do Estudiantes e que já jogou pela seleção argentina no mundial sub-17), o America teve o obscuro Leonel Liberman, que rodou por diversos países sul-americanos. No Brasil, também esteve no Guarani.

A contribuição argentina mais famosa aos americanos, porém, é a do mascote. Lorenzo Molas foi o cartunista que, nos anos 40, popularizou mascotes de diversos clubes cariocas: para o Flamengo, desenhou o Marinheiro Popeye. Para o Botafogo, o Pato Donald. O Fluminense foi representado pelo cartola, o Vasco pelo almirante e o America ficou com o Diabo, mascote imitado nos clubes homônimos de Natal e Cali.

Atualização em 05-05-2016: clique aqui para conferir nossa entrevista com Matías Sosa, em grande fase no America.

Sobre argentinos nos outros grandes cariocas, clique para conferir os de Bangu, Botafogo, FlamengoFluminense e Vasco.

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Gritta, o argentino mais longevo do America. Ao lado, o clube com o goleiro Buttice

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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