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“Tchau, Argentinos Jrs! Oi, Boca!” Há 35 anos, Maradona estreava pelo Boca Juniors

Na noite de 20 de fevereiro de 1981, Maradona suou por uma camisa branca com detalhes vermelhos. Há alguns meses antes, esse episódio poderia ser previsto como um jogo pelo River, hipótese que se desenhara em 1980. Mas tratava-se da camisa reserva do Argentinos Jrs, clube que estava defendendo pela última vez. Precisamente às 10h49 daquela mesma data, foi a vez de surgir em La Bombonera trajando novas cores, o azul e dourado de seu novo clube, o Boca. A transferência foi simbolizada naquele amistoso no qual o craque defendeu ambas as equipes. A passagem estampou a capa da revista El Gráfico, cujo conteúdo teve palavras do próprio Dieguito. Transcrevemos abaixo:

¡Chau, Argentinos! ¡Hola, Boca!

Boca é um sonho. Um sonho que vou conta-lo depois, mas quero que saibam como me sinto. Para o acaso que me entendam melhor. Me dói, me dói muito ir embora do Argentinos Jrs. Quando no ano passado chegamos a um acordo, pensei que não sairia do clube até 1982 e que então tinha tempo de tornar real meu grande sonho: sair campeão com o Argentinos. Um sonho que compartilhava com companheiros que se tornaram amigos e dos quais gosto muito. Lhes juro que na quinta-feira passada, quando El Negro (Carlos Antonio Carrizo) e El Tabita (Daniel Norberto García) viram minha camisa e se puseram a chorar, me partia a alma. ‘Está feito, Diego, está feito! Vais ao Boca…’, me dizia El Tabita e se enchiam os olhos de lágrimas.

Então compreendi que, por mais dinheiro que me dessem, nunca seria capaz de enfrenta-los em uma cancha. Jamais poderia jogar contra eles. E essa será uma condição indispensável a qual não penso renunciar quando chegue o momento de assinar o contrato com o Boca. Por eles, pelo povo que sempre gostou de mim, me dói sair do clube e sinto uma espécie de decepção ao comprovar que os dirigentes não souberam cumprir com a promessa de me segurarem até 1982

E agora lhes tenho que dizer tchau.

Sim, agora tenho que dizer tchau ao Argentinos Jrs e sinto como um rasgo interior. Porque não pude sair campeão como queria, embora me fique o consolo de que nunca, por distintas causas, pude jogar as partidas decisivas. E porque não vou poder compartilhar as horas que passamos junto o Negro, o Taba, o Guaso (Adrián Domenech). Vamos seguir nos vendo, mas não será o mesmo. Aqui ficará Miguel (Miguel Ángel López), o preparador (Carlos Kenny), Raúl Gismondi, o fisioterapeuta. Miguel Di Lorenzo, o roupeiro, eu levo ao Boca… a esse sim que não o deixo… e mil lembranças que se juntam e não posso dominar.

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Maradona chegou a ser cogitado no River em 1980. À direita, a capa da El Gráfico retratando a passagem ao Boca

Por isso, por aí dizem que vou jogar um amistoso um tempo para Argentinos Jrs e outro para o Boca. Eu digo que não, que vou jogar mas com a camisa do Argentinos Jrs os 90 inutos. E não vou afrouxar com isso! Me vou do Argentinos. E quando alguém vai, diz tchau. Mas eu sei que um dia voltarei. Voltarei. Os prometo.

E entrar em minha nova casa.

Do Boca quero contar-lhes meus sonhos. Sonhei compartilhar uma habitação com Carlitos Randazzo, conversar com (Vicente) Pernía, conhecer La Candela. Imagino o dia da estreia. Essa torcida sensacional que conheci garoto quando meu velho, que é um torcedor fanático, me levava à tribuna e que compreendi quanta grandeza tinha no dia que, com o Argentinos, eu lhes fiz quatro gols no campo do Vélez. Fiz quatro gols no Boca e sua torcida me ovacionou! Daqueles dias em que ia de mãos dadas com meu pai me ficam a imagem do Pocho Pianetti, de Angelito Rojas, para mim o mais grande que teve o Boca, do Piqui Ferrero que, uma vez, quando eu era um garoto que entregava as bolas que saíam, me disse no campo do Atlanta: ‘me dê a bola, vago’. Me disse isso. Nunca o esqueci.

De Nicolau (Novello), de (Roberto) Rogel, do Conejo Tarantini. De Silvio (Marzolini) não lembro tê-lo visto jogar em campo. Sim em filmagens. Por exemplo, naquela partida no Monumental, que o Boca ganhou o River por 4-0 e Silvio, como capitão, levou o cartão amarelo porque seus companheiros festejavam os gols fora do gramado para estar mais perto da tribuna. Dos muchachos de agora, conheço vários. Com Carlitos (Randazzo) nos encontramos às vezes no mesmo lugar tomando um café. Roberto (Mouzo) me parece um cara bárbaro. Igual a Pancho (Sá), (Miguel) Brindisi. Com (Hugo) Perotti, fizemos juntos uma excursão com a seleção. Pancho é de Goya, uma cidade que está em Corrientes, a 100 quilômetros de Esquina, onde nasceu minha mãe…

Todas essas coisas passam por minha mente como cenas de um filme que ainda não tem argumentos porque o livreto eu terei que escrever. A partir do momento em que pise em La Candela ou em La Bombonera e lhes diga ‘olá!’. A Pancho, a Carlitos, a Pernía… a todos os muchachos, começa para mim uma nova etapa. Creio compreender tudo o que a torcida espera de mim. Quero que saibam que, a partir do momento em que coloque sua camiseta, darei de mim tudo o que tenho para que o que eles esperam eu possa concretizar. Não quero prometer nada. Mais ainda, lhes peço que me compreendam. Aos torcedores do Argentinos e aos do Boca entrego meu coração e lhes digo: ¡Chau, Argentinos! ¡Hola, Boca!

Sob o auspício do seu agente Jorge Cyterszpiler, Maradona veste o Boca pela primeira vez

Alguns trechos da carta são curiosos. Silvio Marzolini, que Diego não teria visto jogar, era o lateral-esquerdo ícone auriazul dos anos 60 (foi eleito o melhor da Copa de 1966 em sua posição) e seria agora seu técnico. Já o tal Carlos Randazzo, com quem Maradona sonhava compartilhar um quarto, não ficaria: para trazer o astro, o Boca vendeu Randazzo (que era recém-contratado, tendo somado só seis jogos no clube, todos amistosos), Carlos Salinas, Osvaldo Santos, Eduardo Rotondi e emprestou Mario Zanabria e Miguel Bordón, todos ao Argentinos. O ponta Salinas, o meia-esquerda Zanabria e o defensor Bordón eram remanescentes do glorioso período 1976-78, quando o Boca ganhou dois títulos argentinos, suas duas primeiras Libertadores e seu primeiro Mundial.

Os quatro gols que ele havia feito no Boca ocorreram meses antes e foram decisivos para os auriazuis, há quase meia década em jejum nacional, buscarem o empréstimo de Dieguito. Explicamos neste outro Especial. Além daquela inesquecível tarde, Maradona já havia levado o Argentinos ao vice-campeonato no Torneio Metropolitano 1980, até então o lugar mais alto que a modesta equipe do bairro de La Paternal ocupara no pódio. Levou o clube aos mata-matas do Torneio Nacional, os quais não jogou por estar ocupado com a seleção (o Argentinos acabou eliminado pelo Racing de Córdoba). Já o Boca fazia uma campanha pobre que coincidiu com o fim do último mandato do presidente Alberto Jacinto Armando, havia 20 anos no cargo e cujo nome atualmente batiza oficialmente a Bombonera.

As primeiras contratações da nova diretoria não miraram jogadores: vieram Marzolini para técnico e Luis Carniglia (ex-técnico do Real Madrid de Di Stéfano) para diretor geral de futebol. Os reforços em campo vinham sendo um antigo carrasco, Carlos Morete, ídolo do River de imagem muito atrelada ao rival e que acabou não se firmando; um velho conhecido, Marcelo Trobbiani, voltava do Elche; Ariel Krasouski vinha do Montevideo Wanderers após acabar de ganhar pelo seu Uruguai o Mundialito; Osvaldo Escudero, colega de Maradona no título mundial sub-20 em 1979, chegava do Chacarita. E o Huracán cedia o veterano craque Miguel Brindisi e o durão Roberto Passucci.

Em 19 de fevereiro de 1981, então, Maradona veio à Bombonera assinar um ano e meio de empréstimo por dois milhões e meio de dólares – apenas dois anos antes a primeira transferência acima do milhão havia ocorrido, a de Trevor Francis para o Nottingham Forest. O Argentinos Jrs, que segurava Maradona graças a recursos públicos desviados pelo mecenas Guillermo Suárez Mason, general linha-dura da ditadura, não tinha como recusar. E acabou havendo mais de uma assinatura do craque, que teve de simular o ato para a transmissão ao vivo do Canal 13 e para fotografias dos jornais.

O Boca, por sua vez, se veria muito mal ao usar a moeda ianque, que se valorizaria em 240% com os desmandos econômicos da ditadura. Os xeneizes quase fecharam as portas em 1984, sem exagero: saiba mais. Teriam uma década perdida nos anos 80, incluindo ídolos preferindo sair para jogar no River (veja). Mas o início era só festa e no dia seguinte à(s) assinatura(s) veio aquele amistoso. Ao contrário do que pregava na carta, Maradona não jogou os 90 minutos pelo Argentinos. Após o intervalo, substituiu justamente Randazzo, que jamais voltaria a jogar pelo Boca. O lateral Mouzo, homem que mais vezes jogou pelos auriazuis, abriu o placar no finzinho do primeiro tempo. Aos 19 do segundo tempo, Magallanes empatou.

Mas aos 21, Maradona, de pênalti, fazia seu primeiro gol xeneize. Só que os ex-colegas demonstraram muito orgulho próprio e viraram, com Olarán (28 minutos) e o ex-boquense Bordón (32 minutos, de pênalti). Apesar do resultado, o campeonato que se iniciaria demonstraria o peso da transferência. Dois dias depois, Maradona estreava em jogos competitivos já marcando outro gol, em um 4-1 no Talleres – curiosamente, o primeiro adversário de sua carreira, contra quem debutara pelo Argentinos Jrs em 1976. Argentinos Jrs que despencara do vice em 1980 para um rebaixamento só evitado na última rodada enquanto o Boca voltava a ser campeão.

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Com o sobrinho Sergio López Maradona em 1995 e contra Diego Placente em 1997: outros reencontros com o Argentinos

O jogo contra o Talleres apenas dois dias depois não foi a única maratona de Maradona, com o perdão do trocadilho: para repor o dinheiro gasto, o Boca promoveu diversos amistosos em pleno andamento do campeonato. Outros dois dias depois, Diego teve de jogar com o Independiente Rivadavia de Mendoza. Chegaria a jogar quatro vezes no espaço de uma semana: River (10 de abril, em seu primeiro Superclásico, um mágico 3-0 com ele driblando Ubaldo Fillol para fazer o último), amistoso com o Gimnasia de Jujuy (12 de abril, 1-1 com gol dele), Vélez (15 de abril, derrota de 1-0) e amistoso com o Alianza Paranaense (17 de abril, 3-1 com dois dele). O reforço chegou a enfrentar o Deportivo Guaymallén apenas um dia depois da partida contra o Instituto de Córdoba.

Ao contrário do prometido, Maradona só voltaria em forma de estádio ao Argentinos Jrs. E o enfrentaria outras vezes. Não naquela primeira passagem pelo Boca, e sim em seu retorno aos auriazuis, nos anos 90. E cada encontro merece destaque: no de 1995, enfrentou um sobrinho, Sergio López Maradona (o Argentinos também tentara apostar em Hugo Maradona, irmão do astro, anos antes. Já Sergio seria contratado pelo Almagro no embalo do breve tempo do tio famoso como gerente deste clube: saiba mais), e converteu em bela cobrança de falta seu primeiro gol desde o fim da suspensão de um ano e meio imposta pela FIFA após o doping na Copa do Mundo de 1994. Foi o único gol da partida e ele não comemorou.

Já os dois outros encontros foram goleadas: 4-1 em 1996, na única vez em que Diego não vazou a velha casa. E 4-2 em 24 de agosto de 1997. O Boca ganhou por 4-2, com Maradona marcando de pênalti. Contudo, ele foi pego no exame antidoping e só voltaria a entrar em campo três semanas depois, com um perdão especial mediante exames obrigatórios após cada partida. Aquele gol (curiosamente, só fez gol de bola parada no Argentinos Jrs) foi o penúltimo de sua carreira. O último, em outra curiosidade, foi sobre o outro time que defendeu na Argentina, o Newell’s Old Boys.

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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