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Renato Cesarini, pai de “La Máquina” do River e descobridor nato de talentos, faria 110 anos

“O mais parecido com a vida? Um campo de futebol. Ali estão todos os personagens”.

“Deem-me um atleta e lhes darei um futebolista”.

“Quantos homens há no mundo capazes de ver um jogador, encontrar-lhe defeitos e corrigi-los? Só eu”.

Há 110 anos, em 11 de abril de 1906, nascia por acaso às margens do Adriático o meia ofensivo Renato Cesarini. Por acaso pois este italiano cresceu argentino, vivendo desde os nove meses em Buenos Aires, inclusive tendo defendido a Albiceleste ainda que depois também jogasse pela Azzurra. Ídolo inconteste de Chacarita e Juventus e possuidor de medalha de campeão de Copa do Mundo, a grande contribuição de El Tano (apelido comum na argentina para italianos, derivado de “napolitano”) ao futebol deu-se no River, onde brilhou como jogador e muito mais como técnico dos times juvenis e principal. Importância reconhecida até em forma de clube de futebol que revelou Javier Mascherano e Jorge Sampaoli, dentre outros.

Como todo imigrante do Novecento argentino, Cesarini deixou a terra natal com uma mão na frente e outra atrás. Precisou trabalhar desde cedo. Chegou a ser contorcionista e ilusionista em circo, habilidades que levou ao futebol. Despontou aos 18 anos no Chacarita, fundado apenas algumas semanas depois do nascimento do craque, em 1906, mas ainda desconhecedor da elite argentina. Os tricolores vinham batendo na trave e uma vez reforçados por Cesarini, enfim venceram a segundona, em 1924 – de forma invicta. O italiano era jogador do Alvear, passando ao Chaca de uma forma curiosa: foi por ter perdido aposta em bilhar com o goleiro funebrero Eduardo Alterio (tio do ator Héctor Alterio, antagonista de A História Oficial, Oscar de melhor filme estrangeiro de 1985).

Dos clubes que futuramente fundariam a liga profissional, em 1931, o Chacarita foi o último a aparecer na elite, e não fez feio, sendo 4º colocado em 1925. Em 1926, Cesarini estreou pela seleção argentina. Jogou por ela duas vezes, em um espaço de cinco dias, em duas vitórias por 2-1 sobre o Paraguai, marcando um gol na segunda partida. No fim da década, recebeu o interesse da Juventus, então um clube pouco vencedor na Itália. “Me levaram ao porto quando me arrastando. Cada vez que me lembro que poderia não ter ido, tenho ganas de socar-me. Tudo o que teria perdido!”, declararia à revista El Gráfico já em 1935, época em que sua mansão em Turim era quase um consulado argentino; hospedava e alimentava compatriotas ainda sem lugar, uma extensão de seu comportamento em campo: temperamental, costumava tomar as dores dos colegas.

Com ele e outros importados da Argentina (saiba mais), a Juventus emendaria entre 1931 e 1935 cinco títulos seguidos na Serie A, algo então nunca visto no duro campeonato italiano e desde ali só igualado pelo Grande Torino dos anos 40 e pela recente Internazionale de José Mourinho. Na época, o Torino, campeão de 1929, era o grande rival alvinegro e Cesarini, cujo navio desembarcou no início de 1930, estreou no clássico de Turim marcando os dois da vitória por 2-0 em abril daquele ano. Em janeiro de 1931, já fazia sua primeira partida pela Itália, marcando em um 5-0 na França. Em 1931, além do primeiro scudetto com a Juve, consagrou-se na seleção ao marcar aos 45 minutos do segundo tempo o gol de complicada vitória por 3-2 sobre a Hungria, que havia empatado após estar perdendo por 2-0 (gols, aliás, dos argentinos Raimundo Orsi, da Juventus, e Julio Libonatti, do Torino).

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Imagens da revista “Cara e Caretas” de 1931, contando a história do Chacarita. À esquerda, o time campeão de 1924, e à direita, Cesarini

Não era a primeira vez em que Cesarini marcava no fim das partidas e aquele lance, o mais marcante, terminaria por ensejar o termo Zona Cesarini para gols no período final das partidas, uma espécie de avó do Fergie Time consagrado décadas depois pelo Manchester United de Alex Ferguson. Cesarini jogaria a Copa do Mundo de 1934 pela Itália. Em fevereiro daquele ano, porém, fraturou alguns ossos do pé em amistoso com a Áustria, que mesmo sem seu craque Matthias Sindelar venceu por 4-2 em Turim e faria os italianos se prepararem como nunca para o mundial. A despeito da dor, o craque continuou jogando os 25 minutos finais. E apesar da lesão, foi convocado, sendo listado entre os 22 selecionados pela Itália em nota de maio do Mundo Deportivo.

Ao fim, os lugares dele e do goleiro Carlo Ceresoli foram ocupados pelos goleiros Guido Masetti e Giuseppe Cavanna. Ainda assim, segundo aquela El Gráfico de 1935, Cesarini recebeu medalha e pergaminho de campeão mundial. Naquele ano de 1935, a Itália invadiu a Abissínia e muitos jogadores ítalo-estrangeiros, assustados com convocações do exército, decidiram voltar à América. El Tano fez o mesmo e de início voltou ao Chacarita, agora um clube profissional e que para manter o astro internacional promoveu bailes para arrecadar o dinheiro. Não conseguiu o bastante. O River, já notabilizado como millonario, apareceu e ainda em 1936 Cesarini passou à Banda Roja.

Naquele ano, houveram dois campeonatos. Enquanto o San Lorenzo vencera no primeiro semestre, o segundo foi levantado pelo River do reforço Cesarini. As duas equipes depois travaram um tira-teima, a Copa Ouro, por muito tempo vista como se valesse o título da temporada. O italiano fez um dos gols da “final”. Ele participaria também do título de 1937, totalizando 7 gols em 23 jogos pelo River. Uma média boa para um veterano que nem centroavante era. Mas foi como técnico que ele se consagraria em Núñez. Ele assumiu o time principal em 1939. José Manuel Moreno, já descrito como mais habilidoso que Maradona, já era astro do clube mas experimentava má fase que fez a diretoria suspendê-lo. Os titulares se solidarizaram e fizeram greve. Deveria durar uma ou outra partida. Acabou durando nove porque os juvenis que Cesarini usou foram muito bem.

Os novatos perderam só uma e chegaram a ganhar o Superclásico contra o time principal do Boca. Foi assim que dois dos futuros ícones de La Máquina apareceram: o ponta Juan Carlos Muñoz e o meia Ángel Labruna, cujo primeiro gol pelo River foi naquele clássico. Mais um consultor dos jogadores que um gênio tático, o forte de Cesarini era lapidar talentos, apontando onde renderiam melhor. Virou alma mater das categorias de base do River, que começariam com El Tano a destacar-se. Adolfo Pedernera, considerado por Alfredo Di Stéfano o maior jogador que vira, também já era frequente no time principal do River desde meados dos anos 30 – mas como ponta. Cesarini o usou em 1941 como centroavante e nos dois primeiros jogos nessa função, Pedernera somou quatro gols.

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Na convocação à Copa de 1934, na Juventus e no River. À direita, jogo entre Vélez e o Club Renato Cesarini pelo Torneio Nacional de 1983

Faltava uma peça, promovida em 1942: Félix Loustau, então zagueiro que ouvira de Cesarini que “você tem que ser ponta-esquerda, faça-me caso que será um fenômeno”. Estava concluída a linha ofensiva mais famosa de La Máquina: Muñoz, Moreno, Pedernera, Labruna e Loustau, que jogaria pelo River até o fim dos anos 50 e seria o único titular absoluto da Argentina tri seguida na Copa América embora as edições tenham se realizado em anos seguidos (1945, 1946 e 1947). Cesarini ganhou os títulos de 1941 e 1942, que rendeu a primeira volta olímpica do Millo em La Bombonera, com o título garantido no Superclásico. Ficou até 1944.

Labruna, o maior símbolo do River, considerava Cesarini o melhor técnico que teve, uma opinião corrente entre ex-jogadores do Tano: “Renato Cesarini foi o melhor de todos, sem nenhuma dúvida. (…) Sabia tudo em todos os sentidos; convencia, que é uma das grandes condições que tem que ter um técnico. Renato era um fenômeno porque o que pedia, fazia, demonstrava. Cesarini foi o formador de La Máquina. Convenceu Moreno de que tinha mais campo para percorrer e o pôs de meia-direita; convenceu Pedernera de que contra a linha estava asfixiado e o pôs de centroavante; ascendeu a mim. Com o tempo converteu o Loco Loustau de marcador de ponta em ponta-esquerda e Muñoz, que jogava de meia-direita, foi posto de ponta-direita”.

Cesarini, curiosamente, também treinou o Boca, em 1949. Foi uma das piores campanhas do clube, pela primeira vez ameaçado de rebaixamento e que chegou a estar em último enquanto o River liderava. Voltou a Núñez nos anos 50 e lapidou mais jovens. Dentre eles, dois jovens que brilhariam no primeiro tricampeonato seguido do River (de 1955 a 1957). Um foi Norberto Menéndez, o único homem tri tanto por River como por Boca: “Fomos cinco fazer testes, mas eu ia de contrapeso. Aos 15 minutos, El Tano Cesarini, que dirigia a prática, me fez sair, e pensei que aí se terminava tudo. Fui me vestir xingando baixinho, sentindo que não havia podido demonstrar nada. Já estava para sair quando apareceu um senhor e me disse: ‘vamos, garoto, tens que assinar agora mesmo’. (…) Desde esse dia respeitei à morte Don Renato. E isso que eu era bravo. Mas ele te ensinava com palavras e paciência. (…) Lhe obedecia; e mais que isso: me esmerava em aprender.

A outra joia era Omar Sívori, outro que brilharia por River e Juventus. Cesarini foi seu treinador também na Juve, onde ambos conseguiram o décimo scudetto do clube, permitindo-lhe ser o primeiro na Itália a ostentar uma estrela sobre o distintivo. “Cesarini foi a única enciclopédia que conheci”, declarou o endiabrado Sívori. Também estiveram em lados opostos, em 1961: a Juventus de Sívori prestes a ser campeã e o Napoli de Cesarini quase rebaixado se pegariam na última rodada. Sívori implorara para não jogar a partida, “porque não posso mandar ao descenso a equipe do homem a quem devo tudo”. Cesarini soube e rechaçou: “nada de compromissos, Omar. Eu venho enchendo a boca dizendo que você é um fenômeno e não me pode deixar mal. Por essa mesma amizade que nos une, você deve fazer amanhã o melhor jogo da sua vida, porque será a melhor demonstração de afeto que possa me brindar”. A Juventus golearia com Sívori marcando três vezes.

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O River cheio de juvenis em 1939: Muñoz é o primeiro jogador agachado e Labruna, o quarto. Cesarini é o sujeito de camisa vermelha com mangas brancas. À direita, ele com José Manuel Moreno

Ambos estamparam a capa dos jornais com a legenda “perdão, maestro”. Em 1964, já de volta à Argentina, Cesarini olhou as mãos enormes de um funcionário júnior de um restaurante de San Miguel del Monte e cravou: “você vai ser um grande goleiro”. Era Ubaldo Fillol, ainda com 14 anos. El Tano reassumiu o time principal do River em 1965. Era revolucionário, mas com limites: “‘Renato, quando se apresente um pênalti, se o resultado está cômodo, me deixe chutar, que pego bastante bem?’. Eu ficava chutando pênaltis nos treinos. Era um gosto que queria me dar. ‘É um risco, e também uma falta de respeito ao outro goleiro’, me contestou Cesarini”, lembrou Amadeo Carrizo em 2011. Os tempos eram outros: o time vivia jejum há oito anos e permaneceria na seca por mais dez.

Isso quase se encerrou naquele ano, mas o Boca roubou a dianteira exatamente no Superclásico, com a torcida xeneize não perdoando: “Renato, Renato, lhe roubamos o campeonato”. Mesmo com o vice, o River iria à Libertadores de 1966 e quase foi campeão, perdendo de virada a finalíssima com o Peñarol. Aquela edição teve em Daniel Onega o maior artilheiro de uma única edição de Libertadores, com 17 gols. Ele e o irmão Ermindo (que jogaria no mesmo ano a Copa do Mundo) haviam sido descobertos no povoado deles por Cesarini. “Renato sabia um montão da vida: era um senhor com os senhores e um tratante com os tratantes. Me ensinou muitíssimo. (…) Na vida, Renato era um maestro com todas as letras. Os que não o conheciam bem podiam pensar que era um fanfarrão, mas nada a ver. Falava e fazia as coisas com tanta paixão que se poderia passar horas escutando-o. Nos ensinava de tudo: desde alguns segredos do futebol até como devíamos tratar uma mulher na vida de casal”, explicou Daniel.

O jejum do River só acabaria em 1975, sendo Carlos Morete o artilheiro da campanha. Foi outro lapidado: “um dia, ganhamos um partido juvenil, meti dois gols e apareceu no vestiário Renato Cesarini, que era técnico do time principal. Se sentou a meu lado. ‘Pibe, você faz muitos gols, quer fazer mais?’, me perguntou. Eu tinha um cagaço bárbaro. E seguiu: ‘sabe como saem os atletas que correm corridas? Se agacham e estão com as pontas do pé esperando o tiro. Acostume-se a trotar nas pontas do pé, porque quando lhe metam uma bola, vais roubar um pouquinho do espaço de um defensor e vais fazer um gol mais’. Que grande verdade! Não me esqueci mais do conselho. E o apliquei. Me custou muitíssimo trotar nas pontas do pé porque me cansava mais, mas me rendeu muito”.

Ele também passou pelos rivais Huracán e San Lorenzo, recebendo louvores dos maiores ídolos dos dois clubes: “estávamos de excursão pelo México, e El Tano veio um dia conversar com os mais jovens. Fiquei congelado pelo que sabia de futebol, nos antecipou o que viria na tática e na preparação física. Um sábio”, lembrou Héctor Veira em 2013. “Ainda hoje seria um técnico moderno, e o tive em 1967. Era um adiantado. Me ensinou muitos segredos para o posto”, declarou Miguel Ángel Brindisi em 2006. Os irmãos Onega fundariam em Rosario o Club Renato Cesarini, dedicado à formação de jovens e que chegou até a competir nos Torneios Nacionais dos anos 70 e 80; foi nele que se aposentou o goleiro vascaíno Edgardo Andrada. Na proposta original, revelou Javier Mascherano, Andrés Guglielminpietro (ex-Milan e Internazionale), Santiago Solari (ex-Real Madrid) e, como técnico, Jorge Sampaoli.

O mestre falecera em 24 de março de 1969 – pena, não viu meses depois o Chacarita ser campeão, pela única vez (sobre o River, aliás: saiba mais). No ano passado, escolhemos Cesarini como o técnico do River Plate dos sonhos: clique aqui.

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Na velhice, desconsolado com Sívori (legendado sob os dizeres “perdão maestro”) e em 1965, imagem onde se pede “silêncio! fala Renato Cesarini”

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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