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Há 35 anos, argentinos consagravam o Tottenham campeão da 100ª FA Cup

A FA Cup, a Copa da Inglaterra, torneio de futebol mais antigo do mundo, teve em 1871 sua primeira edição. Mas a centésima não ocorreu em 1971 e sim dez anos mais tarde: quatro edições não haviam sido realizadas no decorrer da Primeira Guerra Mundial e outras seis, durante a Segunda. O Tottenham Hotspur, que tivera sua melhor década nos anos 60, decepcionara na seguinte, vencendo só duas Copas da Liga, a segunda em 1973. Ao vencer a FA Cup de 1981, deixava esse período para trás de forma bastante especial. E no embalo dos primeiros argentinos a triunfarem no futebol inglês.

Contamos no mês passado os detalhes da negociação de Osvaldo Ardiles e Ricardo Villa com o Tottenham: clique aqui. Resumidamente, Villa só foi contratado por causa de Ardiles. O técnico dos Spurs, Keith Burkinshaw, presumira que a adaptação de Ossie seria mais fácil se fosse acompanhado de um compatriota. O volante então indicou seu colega de concentração na Copa do Mundo de 1978 e ambos foram adquiridos naquele mesmo ano pela pechincha somada de 750 mil libras – se considerava que cada campeão mundial valeria pelo menos 600 mil dólares. “Eu vi Ossie em um hotel num domingo e houve uma conexão imediata entre nós”, declararia Burkinshaw.

Mas se Villa era originalmente acessório, ele foi o protagonista daquela final histórica, marcando dois gols na vitória por 3-2 sobre o Manchester City – um dos gols, após passar por diversos oponentes, foi eleito o mais bonito marcado em Wembley no século XX: “o que meu companheiro Osvaldo Ardiles levou três anos para conseguir, eu consegui num único jogo. Sim, porque não fosem esses dois gols, eu seria mandado de volta à Argentina. É tão difícil impor-se no futebol inglês que, se alguém me pedisse um conselho, eu diria: não tope essa parada”, afirmou Ricky em julho de 1981 à Placar.

A dupla já tinha amizade muito antes da Copa de 1978. Ambos estrearam juntos pela seleção, em uma convocação inédita: César Luis Menotti, que como jogador fora ídolo no futebol rosarino, foi o único treinador da Argentina a apostar largamente em atletas do interior. Naquele amistoso de 27 de junho de 1975 contra a Bolívia em Cochabamba, cinco dos selecionados estariam futuramente vencendo a Copa do Mundo seguinte: Luis Galván e José Valencia eram do Talleres de Córdoba e Miguel Oviedo, do Racing de Córdoba. Ardiles era outro do futebol cordobês, do Instituto.

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Clubes argentinos de Villa: no Quilmes (consolando o goleiro Ubaldo Fillol no rebaixamento de 1968), Atlético Tucumán, Racing e Defensa y Justicia. E seu golaço desenhado em livro do Tottenham

Villa estava no Atlético de Tucumán, após ser revelado em outro clube que, como o Tottenham, se veste de camisa branca e calção azul-marinho: o Quilmes, que tem essas cores por ter sido fundado por britânicos (dez anos antes de vencerem a Copa de 1978, Villa e o goleiro Ubaldo Fillol foram rebaixados nos Cerveceros!). Ardiles fez um dos gols da vitória por 2-1 na altitude boliviana. Falamos aqui. Em sua estreia pelo Tottenham, Villa (que havia “roubado” uma das possíveis vagas de Maradona na Copa de 1978) marcou no 1-1 contra o recém-campeão inglês Nottingham Forest, mas demorou mais para se adaptar do que o colega, logo eleito o melhor estrangeiro da liga inglesa embora também sofresse críticas no início.

Eram tempos de menos contato internacional; Ardiles confessaria em longa entrevista em 2010 à revista El Gráfico que os únicos times ingleses que conhecia antes da negociação eram o Manchester United, que jogara contra o Estudiantes o mundial interclubes de 1968, e o Liverpool, grande campeão europeu daquele período. O Tottenham, por sua vez, acabava de sair da segunda divisão em 1978. O sindicato de jogadores era veementemente contra a vinda de dois não-britânicos. Quando os Spurs jogavam mal, as críticas caíam em cima dos forasteiros: após aquela estreia promissora, os londrinos perderam de 4-1 do Aston Villa e até de 7-0 para o Liverpool. Por outro lado, os argentinos contavam com total apoio interno no White Hart Lane.

Longe de ficar enciumado, o craque local Glenn Hoddle diria que “eu amei jogar com Ossie e Ricky. Foi especial. Ossie foi certamente o mais astuto jogador com quem joguei. Ele lia o jogo melhor do que ninguém. Ricardo foi provavelmente o mais tecnicamente dotado. Eu lembro que nós jogávamos um amistoso de pré-temporada contra o Royal Antuérpia. No jogo, eu e Ricky fizemos uma série de tabelas de primeira pela meio do campo e pensei ‘isso é maravilhoso. Este é alguém na mesma onda que a minha’. Nos petrificamos”. Paul Miller, zagueiro que jogou por dez anos nos Spurs, resumiria: “eles mudaram o clube. Para sempre”. Ambas as declarações estão no The Biography of Tottenham Hotspur, em um capítulo chamado ….And Still Ricky Villa!, boa evidência do impacto causado pelos hermanos.

O nome do capítulo é uma referência à célebre narração daquele golaço de Villa. Ardiles, por sua vez, foi imortalizado na música “Ossie’s Dream, que chegou a liderar as paradas: “os times de futebol sempre gravavam uma canção. E nessa me colocaram como protagonista porque estava um pouco na crista da onda, e o Tottenham era como um gigante adormecido, que havia muito tempo não jogava essa final. Para não acreditar: ganhamos dos Beatles, dos Rolling Stones, de Elton John, de todos. Foram algumas semanas, mas ganhamos de todos”, disse o volante à El Gráfico. Houve direito até a uma encenação no lendário programa Top of the Pops da BBC, vide vídeo abaixo:

A canção também é chamada pelo verso “Ossie’s Going to Wembley”, mas foi outra estrofe a mais conhecida: em um momento, apenas Ardiles canta – bêbado, pois não estava confiante sobre ter talento para tanto, segundo sua autobiografia (chamada exatamente de Ossie’s Dream); sua voz é a única a entoar o verso “in the cup for Tottenham. Mesmo já com três anos de Londres, o argentino ainda não havia se tocado que o sotaque tipicamente londrino não costuma ler a letra H, o que faz o nome do clube ser coloquialmente pronunciado como “Tótnam” pelos locais (saiba mais) ao invés de “Tótenram”. Essa leitura de Ardiles começou a ser então humoristicamente grafada como Tottingham e ele reconheceu à El Gráfico que por isso “ainda me zombam”.

Também à El Gráfico, não deixou de enfatizar algo a seu favor sobre a curiosa experiência, claro: “essa canção sobreviveu ao tempo, e cada vez que a equipe vai a Wembley, se canta. Em 2009, quando o Manchester United nos ganhou por pênaltis a final da Copa da Liga, o nosso técnico disse: ‘estou cansado de escutar sempre a mesma canção, vamos ver se mudam de uma vez!'”. Ardiles foi o personagem principal pois a música (cujo título faz alusão ao fato de que o craque jamais havia jogado em Wembley, nem mesmo pela Argentina: até houve um duelo entre as duas seleções lá ao longo da carreira inglesa de Ossie, mas ele não atuou e vira os hermanos perderem de 3-1 em 1980) foi gravada antes da final. Afinal, o protagonista da decisão, como dito, foi Villa.

O barbudo já havia sido decisivo nas semifinais contra o Wolverhampton, em dois jogos; na FA Cup, normalmente as semifinais são em jogo único em campo neutro. Após empate em Hillsborough, um jogo-extra se realizou em pleno Highbury, casa do Arsenal, o grande rival dos Spurs. “Cada criança do norte de Londres faltou na escola”, exaltou o livro The Biography of Tottenham Hotspur. E foi de Ricky o terceiro gol, um golaço de 30 jardas. Inicialmente, porém, ele não deixou boa imagem nas finais contra o Manchester City – nas quais também foram necessários dois jogos após um empate com prorrogação ser o resultado do primeiro, em 9 de maio. Essa partida foi a primeira de um clube inglês transmitida ao vivo para a Argentina… o que acabou incluindo um papelão de Villa.

É que Villa, ao ser substituído, não teve pudor de dirigir-se diretamente aos vestiários, sem conter a insatisfação com a escolha do treinador. O capitão Steve Perryman sugerira mesmo que o técnico Burkinshaw não voltasse a escalar Ricky. Burkinshaw declararia que um sexto sentido, ao ver a tristeza do argentino, o fez perdoa-lo, tranquilizando-o com um “Ricky, levante a cabeça. Você vai jogar na terça-feira”. O jogo de 9 de maio quase fora desastroso mesmo; os Citizens abriram o placar em um típico chuveirinho, ameaçando o retrospecto invicto dos Spurs em finais. O empate veio com muita sorte, em falta de Hoddle que desviou em um infeliz adversário (o mesmo que havia feito o gol!), que marcou contra. Seria necessária nova final, em 14 de maio.

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Villa desbravando a defesa citizen: é dele o gol considerado o mais bonito marcado em Wembley no século XX

No segundo jogo, o marcador já foi aberto em jogada hermana: Ardiles carregou pela esquerda e tentou um chute de fora da área. A bola pegou em Villa e no colega Steve Archibald, que pôde aproveitar a sobra para tentar também. O goleiro rebateu. A bola resvalou em outro Citizen e sobrou para Ricky, que pareceu então descarregou toda fúria no pé para balançar a rede. Ardiles inclusive viria a sugerir na própria autobiografia (à venda na loja do White Hart Lane) que “em minha opinião, foi o gol que mudou a vida de Ricky. Eu digo que o gol foi fácil porque a bola estava quicando quase sozinha na frente de um gol vazio. Mas do jeito que as coisas estavam na época, se ele perdesse essa facilidade, se a bola misteriosamente desviasse para fora, Ricky poderia sentir-se tão diferente. Em vez disso, o jeito que a bola entrou encheu-o de confiança”.

Ainda na autobiografia, Ardiles complementou sobre a questão da autoconfiança que via tão em falta e necessária ao amigo: “eu repito bastante essa palavra, porque eu penso que é fundamental. Às vezes um jogador medíocre com muita confiança é melhor que um Maradona perdendo autoestima. Um primeiro gol gera confiança para o resto do time também, mas nessa noite particular eu acredito que aquele gol cedo foi o que impulsionou Ricardo Villa”. O City, porém, virou. Já no segundo tempo, veio o empate londrino, de Garth Crooks em dividida com o goleiro. Villa virou seis minutos depois, quando faltavam menos de quinze para o fim da partida. Recebeu na meia-esquerda e correu. Na grande área, passou por Tommy Caton e Ray Ranson, mas ia perdendo ângulo. Villa então levou a bola para o meio, voltando a se esquivar de Caton… para, enfim, concluir por entre as pernas do goleiro Joe Corrigan.

“Ele era um vencedor de Copa do Mundo, mas ele sempre disse que não se sentia que ele realmente havia jogado para vencer a Copa. Mas esta vitória em Wembley pela FA Cup era verdadeiramente dele”, escreveu Ardiles em seu livro – o colega havia sido reserva na vitoriosa Copa de 1978, jogando alguns minutos contra Polônia e Brasil. O contrato original da dupla venceria ao fim da temporada 1980-81 e foi prontamente renovado. Na mesma época, o filme Fuga para a Vitória estreou nos cinemas, com Ardiles dividindo as telas com Pelé e Sylvester Stallone: à El Gráfico, relembrou que “precisavam de um sul-americano magrelo, porque éramos prisioneiros e não podíamos estar bem alimentados (…). Em uma tomada, esquivei de cinco e meti o melhor gol da minha vida. O diretor me disse: ‘Ossie, excelente gol, não poderias fazê-lo de novo que a câmera não filmou tudo’? Impossível”.

O Tottenham venceria também a FA Cup seguinte, com direito a eliminar no caminho o rival Arsenal, além de chegar às semifinais da Recopa Europeia com um 6-1 agregado no Ajax com ambos os hermanos marcando. Mas muita coisa mudou para a pior naquele espaço de um ano. Eclodiu a Guerra das Malvinas. “Ossie’s Going to Wembley” era maliciosamente parodiada para “Ossie’s Going to War” nos sempre venenosos tabloides britânicos. Já Villa, o herói de 35 anos atrás, pediria para não jogar a final seguinte: “eu sabia o que a história diria, estando eu certo ou não”.

A torcida continuou idolatrando-os, gritando “Argentina! Argentina!” no dia seguinte à invasão – justamente um jogo decisivo contra o Leicester City, pelas semifinais da FA Cup, décadas antes de ambos disputarem a última Premier League. Contamos o drama naquela matéria do mês passado: clique aqui.

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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