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Há 50 anos, o River perdia a Libertadores mais ganha. Nasciam as “Gallinas”

Depois de abandonar suas origens humildes do bairro de La Boca, atravessar a cidade e se estabelecer na elegante região de Núñez, nada mais natural que o River Plate tenha passado a ser conhecido como “Millonarios“. Mas, há exatamente 50 anos, o clube ganharia uma segunda alcunha, muito menos agradável. Foi ao ser derrotado por 4-2 pelo Peñarol na finalíssima depois de abrir 2-0. Se ontem seus rivais Boca e Nacional travaram um duelo épico, o de meio século atrás foi lendário.

A Libertadores de 1966 era uma verdadeira maratona, a qual o River Plate enfrentou em altíssimo nível. Tanto que foi aquela edição que rendeu um recorde individual de gols na competição: os 17 de Daniel Onega, destaque meteórico daquele River. Ele já havia jogado amistosos em 1965, mas estreara em jogos competitivos justamente naquele ano, na esteira dos desfalques perdidos para a preparação da seleção argentina para a Copa do Mundo. Segundo Onega, o River teria time para bater o Real Madrid no Mundial, como o Peñarol acabaria fazendo – afinal, o Millo já havia feito isso em pleno Santiago Bernabéu em 1961 (com gols dos brasileiros Delém e Roberto Frojuello).

O desempenho de Onega, até então apenas o caçula do experiente Ermindo Onega, faria Daniel também acabar sendo pré-convocado à Copa (apenas Ermindo ficou na lista final). Dedicamos-lhe este outro Especial. O River fez 19 jogos (atualmente, o máximo, incluindo a pré-Libertadores, é de 18). Na primeira fase, encarou uma chave com outras 5 equipes: seu rival eterno Boca Juniors, duas equipes peruanas (Universitario e Alianza) e duas venezuelanas (Deportivo Italia e Deportivo Lara). Com 8 vitórias em 10 jogos, a equipe se qualificou em um confortável primeiro lugar. A segunda fase teria uma chave ainda mais dura, novamente com o Boca Juniors e o Independiente, campeão das duas edições anteriores do torneio, além do Guaraní paraguaio.

Mesmo perdendo os Superclásicos, o River se deu melhor contra os outros oponentes do que o grande rival. Ainda assim, a classificação veio após um jogo-desempate em Assunção contra o Independiente, uma suada vitória por 2 a 1. O River estava na decisão. Ironia: poderia vencer a Libertadores mesmo sem ter sido campeão argentino. Aquela edição foi justamente a primeira para a qual se classificavam também os vices nacionais. Até então, o vice só entrava se o campeão nacional houvesse vencido também a Libertadores anterior. A mudança que não agradou os brasileiros, que não participaram.

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O recordista Onega e a comemoração do segundo gol na final

O próprio vice no campeonato argentino em 1965 havia sido um trauma: o River liderava, mas perdeu a ponta para o Boca ao ser derrotado na reta final no Superclásico. Pelo segundo ano seguido, o Boca foi campeão sobre o rival. E em ambas as ocasiões, em função de dérbis na reta final com gols marcados pelo vira-casaca Norberto Menéndez, antigo ídolo riverplatense nos anos 50 (veja). Desde 1957, quando Menéndez ainda era millonario, o River não era campeão de nada. A sina poderia acabar em alto estilo naquela Libertadores. O técnico do Millo era o sábio Renato Cesarini, o homem que fomentara La Máquina, célebre elenco do time dos anos 40 (saiba mais).

Mas o adversário também era duríssimo e com outra lenda no comando técnico, Roque Máspoli, o goleiro do Maracanazo. Craques tarimbados na Libertadores, Pedro Rocha, Juan Joya, Néstor Gonçalves e o artilheiro-mor da Libertadores, Alberto Spencer, tinham companhia dos recém-lançados Ladislao Mazurkiewicz e Pablo Forlán. E ainda havia o regresso do veterano Julio César Abbadie. O River também reunia experiência de Libertadores, tendo consigo os uruguaios Roberto Matosas e Luis Cubilla, ambos bicampeões com o próprio Peñarol nas primeiras edições do torneio – os dois clubes mantinham tradicional amizade (Juan Joya, ao contrário, era ex-jogador do River, cujos dois estádios na zona norte de Buenos Aires foram inaugurados em amistosos com o Peñarol, que por sua vez inaugurou diante do amigo seu novo estádio em 2016). Que ficou a perigo.

Na primeira partida em Montevidéo, um Centenário abarrotado com mais de 60 mil pessoas viu uma enorme pressão aurinegra sobre o River. A defesa se portava bem, e o veteraníssimo e lendário Amadeo Carrizo fazia grande partida. Mas, nos últimos minutos, a insistência caseira foi premiada, e, com gols de Abbadie e Joya, o Peñarol venceu por 2-0. o River precisava vencer em Núñez para forçar a partida desempate. A partida de volta foi absolutamente atípica. O Monumental estava tão abarrotado que o River achou por bem improvisar cadeiras para torcedores à beira do campo, sem separação para os atletas. Os policiais torciam ostensivamente e comemoravam como torcedores os gols do River. Os jogadores do Peñarol posteriormente descreveriam o sentimento de pânico em atuar naquelas condições.

Isso não impediu uma partida espetacular, ao fim vencida pelo River por 3-2, com dois gols de Ermindo Onega, um deles, o da vitória, marcado nos últimos minutos da partida. O xerife Gonçalves, sucessor de Obdulio Varela, contaria à revista argentina El Gráfico: “ali nos fizeram de tudo e ficamos com sangue no olho. A terceira partida deveria jogar-se em 72 horas, mas o River Plate propôs joga-la em 48 horas porque pensaram que o Peñarol era uma equipe com jogadores veteranos e que devido a isso não íamos nos repor tão rapidamente para a terceira final. Washington Cataldi nos perguntou se estávamos dispostos a jogar em dois dias e nós respondemos que queríamos jogar o antes possível. Nesse mesmo dia se possível”.

Spencer x Carrizo

Tudo seria decidido na neutra Santiago. E há 50 anos o River Plate desceu para o vestiário no intervalo com um 2-0 a favor, gols do recordista Daniel Onega e de Jorge Solari. O título parecia fatura liquidada. Mas o Peñarol estava prestes a conseguir uma daquelas façanhas que só o futebol uruguaio é capaz. Prossegue Gonçalves: “quando fomos ao intervalo, dissemos entre nós que se lhes fizéssemos um gol, ganhávamos a partida. Para o segundo tempo, eles se abasteceram para defender a vantagem e nós apostamos a força que tínhamos na ofensiva. Quando vais perdendo por dois gols, o tento mais difícil é o primeiro”.

Apesar da aparente frieza, os uruguaios estavam nervosos: “nos estavam ganhando com muita comodidade e era muito difícil roubar a bola daquele River. Por isso, pensamos que mais que mudanças táticas o que necessitávamos era mudar o clima da partida para salvar a vergonha. Entramos desesperados e lançamos mão de recursos ilícitos. Isso é certo. Lhes falávamos e até chegamos a dizer-lhes que se ganhavam íamos buscar-lhes no vestiário e no hotel. As coisas se deram de tal maneira que era um clima de guerra do qual tiramos uma grande vantagem, ante a passividade do River”.

Diz a lenda que tudo começou quando Carrizo defendeu um chute de Spencer matando a bola no peito. O menosprezo acendeu a velha garra charrua, que os brasileiros experimentaram em 1950. “Foi algo rápido, me chutou um cara a 4 metros de mim, um balaço que me veio direto no peito. Não foi zombaria, fiz o que me pareceu mais seguro e em seguida a agarrei”, contou o goleiro 45 anos depois, em 2011, também à El Gráfico. Gonçalves reconheceu que “embora fosse um gesto técnico, tomamos como uma provocação. Também foi um estímulo especial para Alberto (Spencer), porque começamos a dizer-lhe que o estavam zombando. Spencer reagiu e começou a levantar muito seu rendimento, apareceu melhor do que nunca no jogo aéreo e foi um elemento fundamental para a virada”.

O Peñarol lutou como nunca, e aos 20 minutos Spencer se vingou de Carrizo, descontando para o Manya. Mais oito minutos e Abbadie empatou a partida. Com a moral elevada pelo empate heroico, o time uruguaio entrou aceso na prorrogação, e aos 12 minutos o equatoriano Spencer colocou o Peñarol na frente pela primeira vez, após 102 minutos de jogo. “Na prorrogação, lembro especialmente do terceiro gol. Foi impressionante como se elevou Spencer nesse tento. Logo após esse gol, os argentinos baixaram a cabeça e nos olhavam como desconcertados”, nas palavras de Gonçalves.

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A galinha banfileña e a provocação abraçada por Roberto Perfumo e Norberto Alonso quando o jejum desde 1957 acabou, em 1975. Mas ainda há torcedor resistente ao apelido

“No campo é comum que os jogadores conversem. Nesse dia lembro como se fosse hoje que El Pocho Cortés, que havia jogado no Rosario Central, ia dizendo aos jogadores rivais que eram uns fenômenos na El Gráfico, mas não em campo. O terceiro gol golpeou muito duro a equipe rival. El Pocho seguia falando e então fui até ele e disse que já bastava, que já tínhamos (a taça). Isso foi por respeito aos jogadores que estavam perdendo. Após o terceiro gol a partida termino. O quarto foi um valor agregado ao que já era uma vitória”. O quarto veio aos 4 minutos do segundo tempo, com Pedro Rocha liquidando a fatura.

Prossegue Gonçalves: “o público rondava as 40 mil pessoas e eram quase todos chilenos, alguns argentinos e uns poucos uruguaios. Os chilenos a princípio estavam a favor do River, mas quando a partida foi transcorrendo e descobriram que o morto ainda respirava e que o Peñarol não querida dar por perdida a partida, se voltaram a favor do Peñarol. A diferença temperamental notei no dia seguinte na cafeteria do aeroporto, quando as duas equipes se cruzaram”.

“Um dos nossos foi a falar por alto-falantes e perguntou ‘quem é o papai do River?’. E outra voz respondeu ‘Peñarol!!!’, que se escutou em todo o aeroporto e a risada foi inevitável de todos os presentes. Queríamos morrer, baixamos a cabeça de vergonha. Se isso ocorresse ao contrário, ainda estávamos na porrada. Nós não íamos aceitar semelhante brincadeira que eles sim aceitaram sem reclamar”.

O Peñarol era campeão da Libertadores pela terceira vez em sete edições disputadas. Já o River conhecia sua maior humilhação até então. Nove dias depois, nascia a provocação gallinas, quando em jogo contra o Banfield pela 13ª rodada do campeonato argentino um torcedor rival levou algumas dessas aves para gozar dos vice-campeões da América. A provocação pegou. O termo, com o tempo, tenha sido adotado com orgulho pelo próprio alvo, como o urubu flamenguista ou o porco palmeirense. Mas, como bem sabia Carlitos Tevez em 2004, o vice de meio século atrás foi tão traumático que essa mudança de posicionamento ainda encontra resistência.

Texto adaptado desta outra nota, publicada há cinco anos pelo saudoso Tiago de Melo Gomes, fanático pelo Peñarol

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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