Primeira Divisão

40 anos sem Ringo Bonavena, o boxeador mais futebolista da Argentina

Somos del barrio de La Quema, somos del barrio de Ringo Bonavena” é um dos cânticos mais populares da torcida do Huracán. Mas não enaltece algum dos grandes jogadores do bairro de Parque de los Patricios, que já abrigou Guillermo Stábile, Alfredo Di Stéfano, Miguel Brindisi, Osvaldo Ardiles, René Houseman e Javier Pastore. Homenageia um pugilista: Oscar “Ringo” Bonavena, assassinado há quatro décadas e louco pelo clube. O boxe é outra grande paixão argentina, com diversos exemplos de simbiose com o futebol (falamos aqui), nenhuma tão intensa quanto a que envolveu Ringo, que virou até personagem de filme de Hollywood – ao contrário dos ídolos acima ou de Maradona e Messi.

Bonavena não era querido só no Huracán. Mesmo torcedores do rival San Lorenzo o aplaudiam, e de outras torcidas também: “brincávamos com Oscar. Jogávamos o clássico, o levava ao Gasómetro [estádio sanlorencista], ele sentava na plateia branca e lhe dizia: ‘fica aí que em um momento meto o gol e venho gritar para você’. Os torcedores do San Lorenzo lhe diziam coisas e ele saudava, sempre com o charuto na mão. Gostavam de Ringo (…). Noutro dia nos falamos por telefone: ‘você é mais ídolo do que nunca, Oscar, vais ver quando chegares’. Na sua volta, fomos a um Racing-River e quando apareceu na plateia, todo o estádio o ovacionou”.

A declaração acima, de 2013, é de Héctor Veira, especialista na rivalidade: cresceu em Parque de los Patricios assistindo aos dois rivais e jogou por ambos, ainda que se apegasse mais aos azulgranas. Foi um dos maiores amigos de Ringo. Eram outros tempos, com rivalidades sadias, sem maiores violências: “antes era diferente. Eu metia o gol do San Lorenzo no clássico e à noite ia jogar bilhar na sede do Huracán com Bonavena. Na mesma noite da partida! E não acontecia nada”, declarou Veira também.

Naqueles tempos tão diferentes, Ringo relacionou-se primeiro justamente com o rival: “quando ele começou a fazer esportes, o fez no San Lorenzo. (…) Oscar fez muita natação, e no San Lorenzo chegou a ser campeão de saltos”, declarou sua viúva na revista Huracán de Pasiones, publicada pela El Gráfico em comemoração ao centenário huracanense. A edição é voltada ao futebol, mas deixou três páginas de homenagem ao pugilista. “Conta a lenda que (…) fez mais de uma travessura e o expulsaram do San Lorenzo. E assim desembarcou no Huracán”. Na adolescência, chegou a vender coca-cola no estádio do Globo. Não ia bem na escola: “de tanto repetir de ano, quase me caso com a professora”.

Com o cinturão de campeão por sobre o terno junto do Huracán e com o craque Daniel Willington, contratado pelo lutador para o clube

No Huracán, sim, começou a treinar socos, em 1959. “Com tamanho físico, mais de um o aconselhou que se metesse a ser boxeador. No clube estavam os irmãos Juan e Baustista Rago, dois velhos (…). Eles o foram modelando embora o problema estivesse na base: Oscar tinha tremendos pés planos e muitas dificuldades para caminhar. Imagine o que significa isso em um boxeador”, prossegue a revista. “Apesar de tudo, os irmãos Rago o ajudaram muito com a técnica e o converteram em um boxeador de ataque que sabia manejar as mãos. Podia ser torpe com os pés, mas não com os braços”.

Não era mesmo. Bonavena era canhoto mas foi ensinado a usar postura de destro. Com a mão boa adiantada, poderia usa-la perfeitamente para surpreender: “minha mão esquerda é uma escopeta”, gabava-se. O que mais atrapalhava era a mente – nos Pan-Americanos de 1963, em São Paulo, foi desclassificado ao morder o mamilo de Lee Carr. Experiência que, na verdade, reforçou sua carreira: suspenso na Argentina, ele foi profissionalizar-se na meca do esporte, os Estados Unidos. Lá recebeu o apelido de Ringo, ao ser confundido com o beatle.

“Fui aos EUA sem um mango, e dois capangas me agarraram e me fizeram assinar um papel e lutar. Ganhava 10 dólares e mandava tudo para cá porque minha mulher estava para ter a neném. Depois vim para cá e tive que dizer que ia matar todos para que alguém me aportasse e me desse alguma luta”. Bonavena voltou à Argentina em 1965 para vencer o campeonato nacional de pesos pesados, em luta que ainda tem o recorde de público de boxe no Luna Park, o Madison Square Garden portenho (ambos recebem boxe, tênis, basquete, shows…). Foi o primeiro pugilista argentino a saber trabalhar a imagem. “Não sou nenhum bruto (…), acontece que tive que criar uma imagem de mau”.

Foram 25 mil pessoas à luta, algumas atraídas pelos provocações de Ringo ao oponente Gregorio Peralta, tachado de covarde e no dia seguinte convidado a almoçar raviólis preparados pela mãe de Ringo: “perdoe-me tudo o que disse, Goyo, era papo-furado, entende? Para vender mais ingressos”. No dia seguinte, Bonavena não foi perdoado pelo adversário mas foi ver seu Huracán e posar com o cinturão de campeão junto com os jogadores em campo. A relação se intensificou a ponto do pugilista até bancar contratações, como a do meia Daniel Willington, estrela do Vélez campeão argentino pela primeira vez. “Muitos riram de Bonavena, mas ele ria de todos quando ia consultar sua conta bancária”, comentou ninguém menos que Muhammad Ali.

Com Héctor Veira e Ángel Labruna e em algum resort ianque – vê-se na imagem seu pé “plano”

Ali e Bonavena lutaram em dezembro de 1970, com muita provocação portenha a alguém célebre por ser provocador. Ringo fazia questão de chama-lo de Cassius Clay, nome original de Ali. Também declarou que o oponente era covarde, ao recusar-se a ir ao Vietnã (“Why you no go in army? You chicken?“, indagava em inglês macarrônico quando ambos se pesaram 48 horas antes); Ali havia perdido o cinturão por isso e aquela luta definiria quem disputaria-o com Joe Frazier. Foi em referência à luta com Ali que Veira havia dito que Ringo estava mais ídolo do que nunca.

O argentino perdeu, nocauteado no último assalto. Mas fizera Ali cair também – Veira, que acompanhava a luta na redação da revista El Gráfico, foi retratado pulando euforicamente no momento. Por outro lado, sabia que provavelmente não seria declarado vencedor se não nocauteasse. Não estava satisfeito em perder por pontos e assim, no 15º e último round, partiu no tudo ou nada para cima de Ali, célebre por poupar-se para cansar os oponentes. Foi a única derrota de Ringo por nocaute.

O consolo não veio só pela ovação das torcidas de River e Racing, como lembrado por Veira. Três anos depois, o Globo de Parque de los Patricios, enfim, voltava a ser campeão argentino após 45 anos. “Fui, sou e serei toda a vida Huracán. (…). Nascemos para sofrer, mas que clube bárbaro”. Mostramos aqui que quando o título se concretizou, a revista El Gráfico elencou declarações de antigos ídolos quemeros (o bairro de Parque de los Patricios promovia a queima de lixo de Buenos Aires, daí o apelidos Quema e quemero) dos tempos de jejum e das últimas taças. E também de Bonavena, o mais sucinto: “antes de ser eu campeão do mundo, prefiro que seja o Huracán”.

Ringo foi assassinado em 22 de maio de 1976 por capanga do cafetão que vinha patrocinando o lutador – seus últimos dias estão detalhados aqui. A história rendeu o filme O Rancho do Amor (com os oscarizados Helen Mirren e Joe Pesci), que falava daquele primeiro bordel legalizado dos EUA. Nas telas, o argentino inspirou o personagem Armando Bruza. Bonavena teria se envolvido com a esposa do mecenas. “Estava no Brasil, no Corinthians, e saiu a informação por televisão: ‘morreu um boxeador argentino em Reno’. Bláblá, fui comprar cinco jornais, me lembro bem, para ver sei era verdade, rezando que se estivessem equivocado. Mas não. No dia seguinte vim para cá: Ringo morreu no 22 de maio e o velaram no dia 29 no Luna Park, no dia do meu aniversário”, lembrou Veira.

Ringo foi enterrado (coberto com a bandeira do Huracán) no cemitério do bairro de Chacarita. Ainda se faz presente no de Parque de los Patricios, como uma das tribunas do estádio Tomás Adolfo Ducó e em forma de estátua em frente à sede social quemera, no parque que dá nome ao bairro.

Atualização em 30-05-2016: publicamos esta nota sobre a carreira de Héctor Veira.

Derrubou Muhammad Ali para o delírio de Veira (quem salta acima à direita), mas recebeu seu único nocaute
“Antes de ser eu campeão do mundo, prefiro que seja o Huracán”, quando o clube foi campeão após 45 anos, em 1973

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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