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100 anos de Moreno, maior jogador argentino da 1ª metade do século XX

A Argentina, com sua última geração de ouro (veja), venceu pela primeira vez a Copa em 1978, voltando a se erguer após o fim da fantástica geração dos anos 30-40. Dois meses depois, um dos referentes da geração ocultada pela Segunda Guerra faleceu: José Manuel Moreno, nascido em 3 de agosto de 1916. Teria sido “ainda melhor que os dois”, escreveu sobre ele a Placar em 1999, ao pôr Pelé como atleta do século. “Os dois” em questão eram Maradona e Di Stéfano. Félix Loustau, que jogou com Di Stéfano e Moreno, disse que “Maradona é bom, muito bom, mas está longe de Pelé e Moreno”. El Charro, afinal, foi o primeiro campeão nacional em quatro países diferentes, recorde exclusivo até os anos 90. E recorde em tempos pré-competições continentais de clubes.

A avalanche de sucesso mundial entre 1958-70 fez os brasileiros esnobarem outros torneios. Assim, grandes logros hermanos anteriores ficaram esquecidos aqui, embora o Brasil tenha sofrido com Moreno & cia. “Na edição de 1939 da Copa Roca (…), Moreno pegou a bola na lateral do gramado do estádio de São Januário e, com o intuito de se aquecer para a partida que ia começar, fez seu show. Depois de uma série de embaixadas, deu um chutão para o alto e, antes que a bola pingasse, a dominou com o peito do pé sem perder o controle. Foi aplaudido pelos brasileiros. No fim do jogo, 5-1 para os argentinos, com dois gols de Moreno”. Assim escreveu outra revista brasileira, a Trivela, em 2008. Essa foi por mais de três quartos de século a mais elástica derrota brasileira em casa, até os 7-1.

Naquela década, foram sete vitórias argentinas em onze jogos contra a seleção terceira colocada na Copa de 1938. Foram 32 gols a favor e 21 contra. Outra anedota famosa foi de uma jogada dialogada com o ponta Enrique García, para desnortear um marcador tupiniquim. “Sirva-se, senhor García”, ofereceu-lhe a bola. Logo devolvida pelo colega: “tome-a você, senhor Moreno”. “Agora é sua, senhor García”. “Você primeiro, senhor Moreno”. Os brasileiros se viam em tanta inferioridade que contratar argentinos em fim de carreira ou de segunda linha era visto como luxo (e eles brilhavam: Valido e Volante no Flamengo, Sastre, Renganeschi e Poy no São Paulo, Echevarrieta e Dacunto no Palmeiras, Santamaría, Spinelli e Rongo no Fluminense, Rafagnelli no Vasco, Basso no Botafogo, Villalba no Internacional, Beresi no Grêmio…), complexo que Mário Filho chamava de “platinismo”.

Dentre as especialidades de Moreno estavam o gol, cabeceios e outras acrobacias

Moreno defendeu a seleção entre 1936-50. A Argentina deixou de ir à Copa de 1938 por não concordar em perder a sede para a França; a Segunda Guerra inviabilizou as de 1942 e 1946, ano em que uma briga generalizada com o Brasil fez os hermanos cortarem relações com a CBD (falamos mês passado) e não virem a 1950. Além de hábil, fazia seus gols: só pela Argentina, foram 19 em 34 partidas (titular em 32 delas), atuando tanto pelo flanco esquerdo como pelo direito do ataque. Só pelo River, foram quase duas centenas (179) em 321 jogos. Sabia armar jogo, chutar de longe e cabecear. Era considerado de físico superdotado, pois conseguia conciliar boas exibições com uma vida noturna altamente agitada – foi justamente em função de um mal hepático que ele morreria.

Também antecipou o uso de adereços nos cabelos. Já em 1939, corria o boato de que ele usava redes para não ficar despenteado, inspirando zombarias, encerradas após ele se pôr na frente de um grupo de torcedores do Estudiantes que queriam agredir um árbitro, dando-lhe tempo para fugir. “Ao lado de um monstro como Moreno, aprendi a importância do amor próprio. Uma vez, no campo do Tigre, lhe racharam a cabeça com uma pedrada. Quando lhe insinuei que se fizesse atender, me afastou (…) ‘Cale-se’, me gritou. ‘Quando um jogador cai é porque está morto, me entendeu bem?’ E seguiu (…) como se nada.”, disse Di Stéfano sobre o companheiro, que na juventude praticava boxe.

Uma terceira anedota de 1939: dirigentes do River, fartos da boemia de Moreno, lhe deram ultimato antes de jogo contra o campeão Independiente. “Toda essa semana prévia a esse jogo (…), me deitei cedo e tomei leite. (…) Cumpri o combinado com os diretores. O que houve? O pior: aos 15 minutos do primeiro tempo, estava morto. (…) Joguei tão mal que a Comissão Diretiva me puniu por falta de empenho. Meus companheiros se solidarizaram comigo, fizeram greve e se negaram a jogar a partida seguinte”. Nesse jogo, o River perdeu com um gol muito recordado de Vicente de la Mata. Curiosamente, por conta dessa greve é que Ángel Labruna, então novato, estreou no time principal.

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No River em 1947 e dez anos depois, na partida-homenagem que voltou a reunir Muñoz, Loustau (em pé), Pedernera, ele e Labruna (agachados)

Outra curiosidade: um dos maiores símbolos do River, Moreno torcia justamente pelo Boca e tentou a carreira antes lá, mas não foi aprovado. Resolveu ir ao rival e estreou no time principal em 1935. O River só tinha dois títulos argentinos, buscando se afirmar no cenário nacional. A grande estrela era Bernabé Ferreyra, de incríveis 187 gols em 185 jogos pelo time. Lembrado pelas bombas, ele foi o grande entusiasta de Moreno: a estreia fora em excursão pelo Rio de Janeiro e Bernabé pressionou o técnico Emérico Hirschl a colocar o garoto contra o Vasco (ou o Botafogo, segundo outras fontes). O treinador negou. “Então, jogue você no meu lugar”, afirmou Ferreyra ao presidente Liberti.

Moreno atuou, marcou nos 5-1 e o primeiro a abraça-lo foi o amigo. Depois, na primeira rodada do campeonato de 1935, lá estavam juntos contra o Platense, marcando um gol cada nos 2-1. O de Moreno foi de cabeça, grande especialidade. O Boca foi o campeão ali, mas o River foi bi seguido em 1936-37, com a revelação estreando pela seleção e até superando Bernabé em gols: este fez 27 em 1937. Moreno, 32. Aquele River, porém, ainda passou por altos e baixos até se afirmar, já nos anos 40. O craque, por exemplo, esteve ausente da Copa América 1939 e da Copa Roca de 1940. Embora campeão da Copa América no início de 1941, chegou naquele ano a ser novamente afastado no River por fracas atuações. Mas o título veio pelo clube também.

O bi na Copa América de 1942, também no início do ano, não veio, mas Moreno fez história: só contra o Equador, fez cinco gols na goleada de 12-0, que segue sendo a maior já ocorrida nas Copas América. Os cinco gols também são um recorde no torneio. Se o bi pela seleção não veio em 1942, pelo River ele não faltou. O título de 1942, aliás, teve direito a uma primeira volta olímpica millonaria na Bombonera, inaugurada dois anos antes: o jogo que garantiu a taça foi o Superclásico no campo rival. Por sinal, em meio ao bi de 1941-42, o River aplicou suas maiores goleadas no Boca: 5-1 em 1941 e 4-0 em 1942, com Moreno deixando o seu em ambas. Foi naqueles anos que o elenco riverplatense passou a ser apelidado de La Máquina. Mas quando as taças começaram a ser perdidas, com o Boca sendo bi em 1943-44, a vida noturna do astro voltou a lhe arranjar problemas com a diretoria.

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Outras facetas na Argentina: no Boca, no Ferro Carril Oeste, na seleção e na boemia

Ainda em 1944, Moreno foi vendido ao futebol mexicano, onde atuou pelo extinto Real España. Foi campeão e lá recebeu o apelido pelo qual mais ficou conhecido: El Charro, “o caubói”. Sua volta à Argentina, em 1946, foi estrondosa. O estádio do Ferro Carril Oeste não suportou o mar de gente e alguns alambrados desabaram, interrompendo por meia hora o jogo, encerrado em River 5-1 Atlanta com três gols do atacante. Em 1947, ele acompanhou a revelação Di Stéfano em novo título argentino e na Copa América em que a seleção terminou tri seguida, algo não repetido antes ou depois no torneio (veja); por estar no México, Moreno não estivera nas taças de 1945 e 1946 do torneio de seleções. Mas em 1948 veio a greve de jogadores cujas exigências acabariam não atendidas. Àquela altura, Moreno era o mais vitorioso jogador do River, pentacampeão argentino pelo Millo.

Muitos grevistas, como o próprio Di Stéfano, foram à Colômbia, então um Eldorado do futebol. Moreno, que fora o primeiro a sair, preferira a Universidad Católica, que até então não possuía títulos chilenos. Pendência resolvida imediatamente com o argentino, campeão de 1949 no outro lado da Cordilheira. Neste ano, o Boca simplesmente lutou contra o rebaixamento. A reação foi contratar Moreno, crescido no próprio bairro de La Boca. Nos cinco primeiros jogos, amistosos, 4 gols. Mas uma contusão na primeira rodada do campeonato de 1950, contra o Racing, o afastou por dois meses. Quando ele voltou, o clube ficou invicto da 14ª à 25ª jornada e acabaria vice-campeão.

Moreno, então com 34 anos, acabou voltando rapidamente à seleção, tornando-se só o segundo a jogar por ela tanto por Boca como por River – o primeiro, Francisco Taggino, o fizera nos anos 10. E o seguinte, Hugo Gatti, alcançaria o feito só em meados dos anos 70. Moreno voltou à Católica e passou por Defensor Sporting (Uruguai), Ferro Carril Oeste e por fim foi ao futebol colombiano. Já não havia o Eldorado, mas a liga cafetera seguiria atrativa a argentinos por décadas. Jogou no Independiente Medellín, onde iniciou em a carreira de treinador enquanto ainda jogava. Como na Católica, esteve no primeiro título nacional do novo clube, em 1955. No início de 1957, ainda como jogador, capitaneou o clube em um 5-2 no Boca: contamos na semana passada. Depois iria ser apenas técnico.

Comemorando no cabaré Marabú ao violão com Di Stéfano (no contrabaixo) e Labruna (maracas) o título de 1947. Ganhou o 1º título chileno da Universidad Católica. Em Medellín (entre Federico Vairo e Labruna), ganhou de 5-2 do Boca e foi campeão como jogador-treinador no Independiente local; o clube só voltaria no século XXI a ser campeão

Mas no decorrer do torneio de 1957, despendurou provisoriamente as chuteiras. Parou de vez aos 41 anos (mas já grisalho, com tanta vivência) como campeão. O time, que até então tinha mais títulos que o rival Atlético Nacional, justamente o atual maior campeão colombiano, só voltaria a ganhar mais de meio século depois a taça, em 2002. Ainda em 1957, em setembro, Moreno voltou a suar pela camisa do River, em amistoso que celebrava os 25 anos de Labruna no clube, contra o Peñarol. Foi a última vez em que o quinteto ofensivo mais famoso de La Máquina jogou junto: Juan Carlos Muñoz, Moreno, Adolfo Pedernera (presente embora rompido pessoalmente com Labruna), Labruna e Loustau.

A nova carreira de técnico não esteve à altura da de jogador. Ainda assim, Moreno conseguiu feitos inéditos. Em 1958, assumiu um Boca em jejum de quatro anos e por três pontos foi vice-campeão. Saiu do clube do coração para assumir a seleção no fim de 1959, para as disputas da segunda Copa América. Em 1964, voltou ao River, com o qual chegou a vencer por 5-1 um amistoso contra o Barcelona. O time não iria além do 3º lugar, mas Moreno tornou-se o primeiro a treinar a seleção e a dupla principal do país. El Charro segue sendo o único a passar por Boca e River tanto como jogador quanto como técnico. E único a passar nas duas funções em ambos e na seleção também. Também é o quarto maior artilheiro do River, tendo se aposentado como o segundo e a oito gols do amigo Bernabé Ferreyra. Era igualmente o segundo maior artilheiro da seleção, e sem ser centroavante.

Apesar de torcedor do Boca, Moreno foi velado em um salão do River, como pedira. Uma outra última homenagem veio do clube onde vinha trabalhando como técnico: o pequeno Deportivo Merlo, da Grande Buenos Aires (o craque mantinha uma pousada em Merlo), batizou seu campo de Estádio José Manuel Moreno. A equipe também passou a ser apelidada de Los Charros.

Versão revista e atualizada deste outro Especial.

Como técnico do River antes do 5-1 no Barcelona, em 1964 – é o homem mais à direita na foto. Ao lado, imagem sua em 1971

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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