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20 anos do único bicampeonato argentino do Vélez

Não houve clube argentino mais feliz com os anos 90 do que o Vélez. O clube do bairro de Liniers foi menos vitorioso que o River, mas, com gente produzida em casa, deu um salto dos mais espantosos já vividos por qualquer time no mundo. Entre 1993 e 1998, viveu meia década com títulos em cada ano. Curiosamente, não conseguiu mais do que dois campeonatos argentinos seguidos. Nada que lhe diminua: nem Boca, Independiente e San Lorenzo, considerados grandes, conseguiram ainda o tri. O único bi velezano completa vinte anos hoje. Serviu para lançar José Luis Chilavert como goleiro-artilheiro e para coroada despedida do mitológico Carlos Bianchi.

Em 1995, o Vélez manteve a espinha dorsal bastante aplicada que em 1994 fizera um time de bairro, de apenas dois títulos nacionais em oitenta anos, ganhar a Libertadores e o Mundial – em finais sobre potências das mais prestigiadas, São Paulo e Milan. As mudanças se resumiam praticamente a dois nomes ausentes na linha de frente: Roberto Pompei foi vendido ao Racing e Omar Asad teve, no clássico contra o Ferro Carril Oeste, a primeira das sérias lesões que lhe brecaram a carreira. As novas referências ofensivas com José Turu Flores passaram a ser Patricio Camps, prata-da-casa que voltava de empréstimo ao Banfield, e Martín Posse.

Ainda antes da vitoriosa temporada 1995-96, La V Azulada beliscou outros troféus pós-94. No primeiro semestre de 1995, ainda que não tenha chegado à última rodada com chances de título, ficou só a dois pontos do campeão San Lorenzo no Clausura. A Recopa Sul-Americana (que na época opunha os vencedores da Libertadores e da Supercopa, por sua vez um torneio que reunia os campeões da Libertadores) foi perdida com polêmica para o Independiente: um gol velezano foi evitado com a mão do zagueiro adversário Pablo Rotchen, mas o pênalti não foi marcado.

“Há que aguentar, não gosto de chorar”, resignou-se Carlos Bianchi. Mas haveria trocos. Ao fim daquela década, o Vélez passou a ter mais vitórias do que derrotas em confrontos contra o Independiente, justamente o observador das duas voltas olímpicas da temporada 1995-96. Houve revanche ainda na Libertadores de 1995, com o Rojo eliminado pelo Fortín nas oitavas. Mas o Vélez caiu ainda nas quartas, depois de dois empates contra o River. “Agora vamos pelo Apertura”, apontou Bianchi. O torneio começou quatro dias depois e todos os olhos voltavam-se ao Boca, que na última cartada com a Parmalat acabara de contratar Maradona e Caniggia.

Camps e Posse substituíram Asad e Pompei na linha ofensiva com Turu Flores
Camps (esquerda) e Posse (carregado ao meio pelo goleiro reserva Pablo Cavallero) substituíram Asad e Pompei na linha ofensiva com Turu Flores (à direita)

Mas no início quem dominou foi o Vélez. Mesmo não arrasando nas vitórias, era contundente: na quinta rodada, era líder isolado com treze pontos de quinze possíveis após 1-0 no Banfield, 1-0 no Rosario Central, 1-1 com o River, 3-2 no Racing e 1-0 no Estudiantes. Veio então uma derrota de 3-2, em casa, para o Deportivo Español, em noite marcada por insólita expulsão do goleirão José Luis Chilavert: o paraguaio levou dois amarelos seguidos, primeiro por insistir em cobra fora da área um tiro livre que o árbitro Horacio Elizondo ordenara dentro. Depois, por gestos.

O Vélez perdeu mais duas seguidas, contra o Gimnasia de Jujuy fora de casa (1-0) e para o Huracán dentro (2-1). O Boca, por sua vez, mantinha-se invicto e começava a embalar. Veio a 13ª rodada, onde ambos se enfrentaram na Bombonera. O adversário Darío Scotto marcou o único gol, que punha os auriazuis seis pontos à frente. Mas o veterano José Basualdo não se assustava: “o Boca teve a sorte de encontrar o gol e nos ganhou. Mas também não acredito que esse resultado seja definitivo para nossas aspirações no campeonato. Ainda falta-se jogar muitos pontos”.

Bianchi também se fez de tranquilo: “não temos que dramatizar essa derrota. Nem tudo está perdido. Já tivemos uma sequência negativa de três jogos e, apesar disso, seguimos sendo protagonistas. Não tenho dúvidas de que agora vamos continuar pelo mesmo caminho”. El Virrey não esteve para brincadeira. Nas seis rodadas restantes, o Vélez venceu todas. A mais elástica, a única por mais de dois gols de diferença, justamente na partida do título. E o Boca? Já repetimos a história anteriormente. Na antepenúltima rodada, o Boca começara ainda líder invicto. Só havia levado seis gols no torneio inteiro e só naquela tarde levou outros seis, em plena Bombonera, em derrota de 6-4 do Racing.

Paralelamente, o Vélez ganhou por 2-0 do San Lorenzo e ultrapassou os xeneizes, que de repente passaram de líderes a sem chances de título já na rodada seguinte: perderam novamente, agora para o Estudiantes, enquanto o Vélez vencia o Belgrano. Mas ainda havia quem pudesse atrapalhar: o próprio Racing também ultrapassou o Boca e chegou à última rodada com chances. Mas eram mais matemáticas do que realistas. A Academia precisava vencer e torcer pela derrota velezana, o que forçaria um jogo-desempate. O problema é que o Vélez enfrentaria justamente o arquirrival racinguista, o Independiente. Que ainda por cima estava na ressaca pelo surpreendente título da Supercopa sobre o centenário Flamengo, no Maracanã, onze dias antes.

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Chilavert não poderia ter escolhido adversários melhores para sofrer seus primeiros gols em série de faltas: River (antes do meio-campo!) e Boca (em um 5-1 onde ainda marcou outro gol), ambos no Clausura

“Escutamos a voz dos torcedores. Mas quero esclarecer que esse plantel vai enfrentar o Vélez com o mesmo respeito que enfrenta os demais. A prova disso já tivemos em La Plata no passado. Além disso, se ganhamos do Vélez, o Racing não é o campeão. O máximo que poderia aspirar em um princípio é a um jogo-desempate, desde que vença o Colón”, procurou frisar o rojo Diego Cagna, referindo-se ao dramático desfecho do campeonato anterior: um time misto do Independiente ganhara em La Plata do então líder Gimnasia, permitindo que o San Lorenzo fosse campeão (drama contado aqui).

Ao fim, o Racing nem de longe fez sua parte, trucidado de virada pelo Colón por 5-1. Já o capitão Roberto Trotta, a revelação Camps e o veterano Basualdo anotaram os 3-0 sobre o Independiente dentro de Avellaneda. Para quem ainda se ligava na decadente rivalidade do oeste portenho, aquela conquista fez o Vélez ultrapassar os dois títulos do Ferro Carril Oeste. “Quando todos pensaram que nós íamos cair animicamente e inclusive depois da péssima partida que jogamos contra o Boca, que foi uma das piores desde que dirijo esta equipe, nos levantamos no ânimo e nos convencemos de que podíamos ser campeões”, sintetizou Bianchi.

1996 já começou com outro título, esquecido: em fevereiro, o Fortín faturou a Copa Interamericana contra os costarriquenhos do Cartaginés, vencedores da Concacaf. Em março, após o pré-olímpico, começou o Clausura. Um torneio com desenrolar já detalhado em outros Especiais. A perda da vez foi Basualdo, vendido ao Boca (“não vou cortar a oportunidade de melhora econômica a nenhum jogador”, resignou-se Bianchi) e reposto por Marcelo Herrera – outro defensor dos juvenis a deslanchar foi Mauricio Pellegrino. O próprio Boca, com quatro vitórias nas cinco rodadas iniciais, voltou a se postular ao título. Estudiantes, Lanús e Gimnasia também demonstravam boa fase. Para complicar, a renovação com Bianchi não se acertava.

O primeiro grande capítulo foi contra o River, pela terceira rodada, uma vitória por 3-2 conquistada no finzinho em jogo de alto nível que acabou ofuscado pelo sensacional gol de falta de Chilavert, de antes do meio-campo (falamos aqui). Era o segundo gol de falta de sua carreira e o primeiro em mais de um ano. O recurso, a partir dali, começaria enfim a ser habitual. Mas em seguida veio um 1-1 com o Racing e derrota em casa para o Estudiantes no último minuto. Nessa ocasião, o próprio Estudiantes isolou-se na liderança, quatro pontos à frente. A reação velezana foi acumular uma invencibilidade nos cinco jogos seguintes, período em que o novo líder passou a ser o Lanús.

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No jogo do título, Chilavert novamente se sobressaiu. Não por gol, mas por defender pênalti de Burruchaga

Os cinco jogos invictos viraram seis, de uma forma bastante contundente: 5-1 no próprio Lanús, que naquele ano faturaria a Copa Conmebol. Viraram sete, com um 1-0 no Newell’s fora de casa. Viraram oito, com outro 5-1: dessa vez, sobre o Boca, que vinha reagindo no campeonato. Foi outro dia histórico para Chilavert, que pela primeira vez marcou duas vezes em um jogo (contamos em detalhes aqui). Àquela altura, o Fortín já era líder. E o Vélez não perdeu mais. Na rodada seguinte, arrancou um 1-1 com o Gimnasia em La Plata a sete minutos do fim, gol da revelação Martín Posse. Na rodada posterior, enfim despediu-se de Bianchi. Foi em 29 de junho, no 2-0 sobre o Colón.

O treinador havia acertado com a Roma para o segundo semestre, mas já antecipava em caso de bicampeonato: “vou fazer o impossível para estar aqui nesse dia. Tem que haver alguma greve na Itália para que não venha”. Seu sucessor nas rodadas finais foi Osvaldo Piazza, dos juvenis. Para a transição não ser brusca, Bianchi combinou que, enquanto ainda continuasse, Piazza passaria a realizar os treinos. O jogo seguinte foi um 0-0 com o Argentinos Jrs que manteve o torneio embolado: Vélez e Lanús dividiam a liderança um ponto à frente de Boca (embalado após o 4-1 no famoso clássico com o River em que Caniggia marcou três e beijou Maradona: relembre) e Gimnasia, com o Estudiantes correndo por fora quatro pontos abaixo dos líderes faltando três rodadas. Elas seriam retomadas em agosto, após pausa de três semanas para as Olimpíadas de Atlanta.

La V Azulada sapecou no reinício um 4-1 no San Lorenzo. Lanús, Estudiantes e Boca não venceram e se complicaram. Já o belo Gimnasia dos gêmeos Barros Schelotto arrancou um 2-1 no River em pleno Monumental e restou como único perseguidor. Na penúltima rodada, Boca e Lanús novamente não venceram e perderam qualquer chance. O Estudiantes até ganhou, do próprio Boca (em curioso 2-1 em que Martín Palermo, outra revelação do torneio, fez os dois gols alvirrubros enquanto o gol boquense foi justamente de Juan Sebastián Verón: saiba mais), mas a vitória do arquirrival também lhe tirou da disputa. Foi nada menos que um 6-0 do Gimnasia para cima do Racing. Mas o Vélez, a três minutos do fim – gol de Camps – virou para cima do Belgrano em Córdoba e mantinha-se um ponto à frente.

Os velezanos, pela segunda vez seguida, terminaram favorecidos pela rivalidade alheia. Dessa vez, o concorrente travaria na rodada final justamente o seu clássico: Gimnasia e Estudiantes fariam um dérbi de La Plata com o tempero extra da expectativa de raríssimo título para o lado alviazul, que além dos 6-0 no Racing havia ganho pelo mesmo placar do Boca, e em plena Bombonera (contamos aqui). Por volta dos quinze minutos do segundo tempo, o Lobo triscou: marcou o empate em 1-1 enquanto quase ao mesmo tempo um pênalti era assinalado contra o Vélez. Mas Chilavert defendeu a cobrança de Jorge Burruchaga. Ficou-se no 0-0 em Liniers e no 1-1 no clássico platense. Os dois empates mantiveram a distância em um mísero ponto naquele 18 de agosto de 1996. E Bianchi, cumprindo a promessa, esteve presente para dar a volta olímpica junto de Piazza: “devo tudo a Carlitos”, agradeceu o sucessor.

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Na Argentina, os grandes são cinco: Boca, River, Racing, Independiente e San Lorenzo. Revista de 1995 mostra o Vélez se intrometendo. À direita, os técnicos Bianchi e Piazza na volta olímpica

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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