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Nos 60 anos da revolução, conheça a importância húngara no futebol argentino

A revolução de outubro mais famosa foi a russa, em 1917. Os húngaros, a partir de 24 de outubro de 1956, também tiveram a sua, justamente por insatisfação com a ditadura comunista implantada pelos soviéticos. O movimento respingou no futebol, com alguns dos principais astros da geração dourada desertando, notoriamente Puskás, Czibor e Kocsis. O futebol local manteve seus lampejos, mas não repetiria o nível de influência que possuía na primeira metade do século XX, abrangendo inclusive o futebol argentino, seja por cidadãos magiares ou descendentes – ou como adversários iniciais de Maradona e Messi pela seleção adulta. Hora de destacar todos esses pontos.

Imigrantes húngaros no futebol argentino

O húngaro de maior influência, sem dúvida, foi Imre “Emérico” Hirschl. Chegou em 1932 à Argentina, para treinar o Gimnasia LP. Embora desde o ano anterior o futebol do país já fosse oficialmente profissional, isso se resumia ao pagamento. Foi Hirschl quem ampliou esse conceito, ao fazer seus jogadores dedicarem-se exaustivamente à “profissão” durante toda a semana. Mentalidade que quase fez o Gimnasia ganhar o título de 1933, com uma equipe apelidada de El Expreso.

O título da equipe de José María Minella (nome do estádio de sua Mar del Plata natal na Copa de 1978) e José Echevarrieta (maior artilheiro estrangeiro do Palmeiras) não veio, com uma derrapada na reta final atribuída a arbitragens suspeitas, mas Hirschl foi alçado ao River. Cabe dizer que o campeão de 1933, o San Lorenzo, era treinado inicialmente por Eugenio Marinetti, codinome de Jenő Medgyessy, que assumira os azulgranas no início do ano após passagens pelo futebol carioca, paulista e mineiro.

O técnico Hirschl e o ponta Sas (à sua frente, o ex-vascaíno Gandulla) por River e Boca: judeus, escaparam do holocausto por estarem na Argentina

A diferença é que as inovações táticas e de sistema de treinos de Medgyessy foram demais para jogadores e direção sanlorencisas aguentarem: no meio da campanha campeã, o húngaro foi substituído pelo pragmático Atilio Giuliano. Já Hirschl prolongaria seu êxito de 1934 a 1938, sua primeira passagem pelo River. Inclusive, foi a primeira vez em que um clube argentino pagou a outro pela transferência de um treinador, com o Gimnasia recebendo 5 mil pesos na negociação. Ir ao River vinha sendo cada vez mais sinal de prestígio: ele ganhara o apelido de Millonario por a cada ano realizar grandes contratações, chegando a ter por décadas o recorde mundial de uma transferência ao adquirir Bernabé Ferreyra em 1932.

Hirschl, ironicamente, mudou isso. Sob ele, o River valorizou as categorias de base. Foi com o húngaro que estrearam profissionalmente os craques José Manuel Moreno, ainda com 18 anos, e Adolfo Pedernera, com 16, ambos no ano de 1936. Eles, nos anos 40, seriam astros da celebrada La Máquina. Hirschl foi o primeiro técnico a ser bicampeão no Millo, em 1935-36. Com ele, o time também ganhou pela primeira vez do Boca na casa rival na era profissional, em 1936. Em 1939, foi o técnico da estreia do Rosario Central no campeonato argentino. Passaria ainda por Banfield, San Lorenzo e pela “Esquadrilha da Morte” do Peñarol de 1949 que foi base da seleção uruguaia do Maracanazo.

Em 1940, a dupla Boca e River teve cada um o seu húngaro. O campeão Boca contava com o ponta Ferenc Sas, vice da Copa do Mundo de 1938. Virou xeneize ainda naquele ano. Como Hirschl, era judeu; alterou seu sobrenome original, Sohn, tal como fizeram os protagonistas do filme Sunshine – O despertar de um Século, de Ralph Fiennes. Sas (“águia”, em húngaro) foi reserva na campanha, mas, com o holocausto em andamento, radicou-se na Argentina, onde faleceu (também como Hirschl), sorte esta que seu técnico na Copa, o também judeu Alfréd Schaffer, não teria. Trabalhara também no Argentinos Jrs e no Macabi, clube judaico que teve futebol profissional até os anos 60. Já o húngaro millonario em 1940 era o técnico Ferenc Plattkó.

Vladislao Cap por Racing, Independiente, River e Boca: raro homem que trabalhou no quarteto argentino principal

Plattkó tivera passagens prévias por Porto e Barcelona e vinha de um título chileno invicto com o Colo-Colo, mas seu passo em Núñez foi fugaz para ter alguma influência reconhecida na nascente La Máquina, algo que coube a seu sucessor Renato Cesarini. Plattkó também treinaria o Boca, em 1949, justamente em um dos piores anos da história do clube, quase rebaixado. Lá, foi o inverso, tendo substituído Cesarini. É o único estrangeiro a ter treinado a dupla principal do futebol argentino.

Outro húngaro que passou pela Argentina nos anos 40 foi outro técnico, György “Jorge” Orth, notabilizado por seu trabalho no futebol sul-americano – treinara o Chile na Copa de 1930, o Peru em algumas Copas América e a Colômbia. Descrito como culto, cavalheiro e com um ar paternalista com seus jogadores, ainda que silencioso, Orth esteve no San Lorenzo em 1944. O time esteve entre os primeiros, ainda que sem lutar seriamente pelo título, cabendo-lhe a honra de tirar uma invencibilidade que o Boca (o campeão) tinha havia mais de um ano.

Ilustres jogadores argentinos de origem húngara

Vladislao Cap era apelidado de El Polaco e de fato seu pai era um polaco-ucraniano. Mas também tinha origens húngaras, por parte de mãe, que tinha o sobrenome magiar Zahorecz. Esse antigo volante dos anos 50 e 60 tem estatísticas incríveis: trabalhou em quatro dos cinco grandes argentinos (até hoje, ninguém esteve nos cinco), precisamente nas duas duplas principais, pois só lhe faltou o San Lorenzo – embora até jogasse no rival deste, o Huracán. Não só: Cap é um raro campeão pelo duo Racing, ainda como jogador (em 1958), e Independiente, onde treinou o elenco vencedor do Metropolitano 1971. E teve peito de virar a casaca no Superclásico em um mesmo ano!

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Calics na seleção. Banki, de terno, ao lado do Sportivo Italiano antes do jogo contra a própria seleção da Itália

Cap já havia defendido o River como jogador, nos início dos anos 60, quando assumiu a direção técnica em 1982 vindo exatamente do Boca – isto também é o caso único de uma virada de casaca direta entre treinadores na principal rivalidade argentina. Ele já padecia de câncer terminal e acabou falecendo naquele mesmo ano, ainda como técnico riverplatense. Também foi o segundo homem (juntamente com José Varacka) a ir como jogador e como treinador a Copas do Mundo pela Argentina, respectivamente em 1962 e 1974 (Varacka havia ido às de 1958 e 1966 e faria um trio de técnicos com Cap e Víctor Rodríguez em 1974).

Já a presença de Oscar Calics na nota é assumidamente especulativa; embora fosse apelidado de El Ruso (“O Russo”), o dígrafo “cs” é típico da língua magiar, na qual existe de fato o sobrenome Kalics. Carloto, como também era chamado, debutou em 1958 no Banfield, subindo à elite em 1962. Defensor de bom físico que não abria mão de fricção, mesmo sem maior técnica acabou convocado à Copa do Mundo de 1966, quando acabara de ser contratado pelo San Lorenzo. No time do bairro de Boedo, integrou o elenco histórico de 1968, o primeiro a ser campeão invicto no profissionalismo argentino e que por isso foi apelidado de Los Matadores. Como técnico, salvou o San Lorenzo de um possível rebaixamento em 1977.

Cem por cento húngaro, “Jorge” Elmer Banki, que teria completado cem anos neste 2016 (em 24 de agosto), lutou na Segunda Guerra Mundial e radicou-se na Argentina a partir de 1959, após ter emigrado primeiramente a Israel. “Gosto de rir, é uma terapia que permite esquecer as angústias e os sofrimentos. Por isso, estou preparando meu último livro, ‘A vida é uma brincadeira’, com mil piadas internacionais como alívio aos problemas cotidianos, pelo menos essa será minha intenção”, contou ao Clarín em 1997 após 70 anos dedicados ao futebol.

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O vira-casaca Pogany por Independiente & Racing, Huracán & San Lorenzo, e Boca (ao lado de Batistuta, que nele marcara seu primeiro gol na carreira). Só faltou o River!

Elmer Banki ficou marcado como técnico de numerosos clubes das divisões inferiores. Nunca as venceu, mas foi reconhecido especialmente no All Boys de 1964 e no San Telmo de 1969, clubes que naqueles anos estiveram muito perto de ascender pela primeira vez à elite profissional. Passou ainda por Newell’s em 1963 (estava na segundona), Nueva Chicago (1963), Deportivo Morón (1965 e 1976), Excursionistas (1965), Talleres de Remedios de Escalada (1967), Estudiantes de Buenos Aires (1967-68, 1973 e 1976), Almagro (1972 e 1974) e Sportivo Italiano (1977-78), pelo qual chegou a perder honrosamente de 1-0 para a própria seleção italiana em amistoso festivo em La Bombonera em 1978, preparatório à Copa do Mundo para a Squadra Azzurra: falamos aqui.

Por fim, outro especulativo: o goleiro Esteban Pogany também tem sobrenome apontado como húngaro (onde seria grafado como Pogány). Atual treinador de goleiros das seleções juvenis, formou-se no Independiente multicampeão da Libertadores nos anos 70, sendo reserva – estreou em 25 de novembro de 1973 contra o Gimnasia de Jujuy enquanto os titulares voavam à Itália jogar o Mundial. Conservador, não sendo de atuar longe das traves, rodou pelos principais clubes do país nos anos 80, virando a casaca diversas vezes: defenderia o arquirrival Racing e passaria ainda por Huracán e San Lorenzo, outra dupla rival. Sua passagem mais marcante, ainda que rápida, foi pelos azulgranas.

“Que lhe venham ver, que lhe venham ver, não é El Loco nem El Pato, é o famoso João XXIII”, cantavam-lhe os torcedores em referências aos goleiros Hugo Gatti, Ubaldo Fillol e ao papa do qual Pogany era sósia. No San Lorenzo, substituiu o ídolo recém-saído José Luis Chilavert na campanha marcante na Libertadores de 1988, a mais perto do título que o clube de outro papa esteve até 2014. A equipe, sem estádio próprio, só caiu nas semifinais, quando Pogany teve a “honra” de sofrer o primeiro gol da carreira de Gabriel Batistuta, então um jovem do Newell’s.

O curioso amistoso não-oficial de 14 de fevereiro de 1981 entre a seleção húngara e o Argentinos Jrs. Seis dias depois, Maradona enfim estreava pelo Boca

El Gringo virou a casaca mais uma vez em seguida, indo ao Boca, onde ficou mais famoso como um longevo reserva: foram 207 jogos nessa condição, um recorde nos auriazuis, onde o titularíssimo era Carlos Navarro Montoya. Dos cinco grandes clubes argentinos, o goleiro só não defendeu o River. Sua estadia no Boca teve a importância de pretexto na deterioração do elenco campeão de 1992, com as panelinhas halcones (“falcões”) e palomas (“pombas”) desentendendo-se se os reservas mereciam a mesma premiação financeira dos titulares. Nome recente na seleção, Lucas Orban, apontado como descendente de húngaros, já atribuiu seu sobrenome a antepassados franco-bascos.

Duelos contra a seleção húngara

No mais, a importância da Hungria também relaciona-se a momentos históricos da seleção argentina. Afinal, foi contra os magiares que Maradona e Messi estreram pela seleção principal, ambos em amistosos: Dieguito, em 1977 (5-1, na qual ele recebeu nota 10 da El Gráfico), e La Pulga, em 2005 (2-1); curiosamente, saíram ambos do banco. As estatísticas maradonianas não pararam por ali: foi contra a Hungria, em torneio de verão em Mar del Plata, que em 14 de fevereiro de 1981 (em um 1-1) Dieguito fez sua última partida pelo Argentinos Jrs antes de assinar com o Boca. Ele só vestiria a camisa do Argentinos uma vez mais, já como jogador boquense, em amistoso simbólico em que atuou o primeiro tempo pelo clube de formação e o segundo pelo gigante azul y oro.

Também foi contra a Hungria que Maradona marcou pela primeira vez em uma Copa do Mundo, em sua única boa partida no mundial de 1982: 4-1, com dois gols dele. Curiosamente, os húngaros poderiam ter sido também os primeiros adversários dele em Copas: foram os primeiros oponentes dos hermanos no vitorioso mundial de 1978 (3-1), para a qual El Diez havia sido cortado. Além desses jogos, Hungria e Argentina enfrentaram-se também na Copa de 1962, um 0-0 fatal à Albiceleste (o time húngaro tinha o goleiro Gyula Grosics, que permanecera após a revolução, sendo o último remanescente do timaço de 1954); e em amistosos em 1976 (derrota de 2-0) e 1991 (2-0). E foi contra a Argentina que outro húngaro exilado do comunismo, László Kubala, estreou pela seleção espanhola, em vitória hermana por 1-0 no Monumental em 1953.

Esportividade em 1962, truculência em 1978: filho de húngara, Cap cumprimenta o “primo” Ferenc Sipos na tarde da eliminação argentina. Na outra imagem, lance que rendeu expulsão de András Törőcsik após a virada da equipe de Américo Gallego

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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