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Javier Castrilli, sobre os árbitros: “estamos tratando com seres humanos, mas xingo quando se equivocam”

Neste mês de novembro, o jornal El Barrio publicou uma longa entrevista com o polêmico Javier Castrilli. O ex-árbitro encerrou a carreira em 1998. Não, não foi em função daquele Corinthians x Portuguesa, sequer mencionado por ele. O torcedor da Lusa e o anticorintiano podem duvidar, mas El Sheriff largou o apito justamente por denunciar a corrupção em seu meio.

Se naquela semifinal paulista de 1998 o argentino beneficiou o clube de maior porte, na Argentina ele se notabilizou exatamente por não se inibir perante os gigantes: tanto Boca como o River levaram cinco gols em um só jogo em partidas marcadas por diversas expulsões de Castrilli, um torcedor do pequeno Chacarita. Unia “água e azeite”, dando vermelho tanto a Daniel Passarella como a Diego Maradona. A primeira polêmica foi diante dos millonarios, contra o Newell’s em 10 de maio de 1992.

Os rosarinos estavam em grande fase: no mês seguinte, seriam vices da Libertadores apenas nos pênaltis e semanas depois faturariam o Clausura. Era perfeitamente crível que os comandados de Marcelo Bielsa derrotassem o River, mesmo em pleno Monumental de Núñez. Foram inegavelmente beneficiados ao verem de uma vez três oponentes expulsos. Tudo começou com falta provocada por Oscar Acosta, cujos protestos enérgicos foram punidos com o primeiro vermelho. O goleiro Ángel Comizzo se juntou às reclamações e peitou o juiz, levando amarelo. Aplaudiu de forma irônica a decisão, recebendo então o vermelho.

Indignado, o defensor Fabián Basualdo também protestou. E foi se juntar mais cedo ao chuveiro aos dois colegas. No intervalo, foi a vez do técnico Passarella questionar e ser expulso. Ainda assim, os gols só sairiam no segundo tempo, no qual o River também teve expulso o zagueiro Jorge Higuaín, pai de Gonzalo. O Newell’s já ganhava por 1-0, gol de Alfredo Berti, e contra apenas sete e diante do inexperiente goleiro reserva Rodrigo Burella, deixou como placar final um 5-0 no Monumental. Os gols seguintes foram de Fernando Gamboa, duas vezes Ricardo Lunari e Alfredo Mendoza.

Em 1996, Castrilli foi sondado para dirigir um Boca x Vélez. Quem vencesse ficaria na liderança isolada do Clausura. Contamos aqui como foi: a embalada dupla Maradona e Caniggia tramou o primeiro gol, anotado pelo atacante loiro. A confusão começou cinco minutos depois e para ser justo Castrilli foi atrapalhado por seu bandeirinha, que correu ao meio-campo para sinalizar um gol inexistente: Carlos Navarro Montoya impedira que a bola cabeceada por Patricio Camps passasse da linha.

Torcedor do Chacarita, Castrilli era rigoroso contra gigantes: ao meio, peitado por Passarella no River 0-5 Newell’s. À direita, no “olho da tormenta” após sua denúncia geral em 1998: “acredita ser Deus?”

O gol da virada velezana também foi questionado. José Luis Chilavert marcou em falta (algo ainda incomum para ele) que os jogadores do Boca interpretaram como mera bola dividida entre Carlos MacAllister e Fernando Pandolfi. Ao reclamar, Maradona foi amarelado. Seis minutos depois, MacAllister e Pandolfi novamente teriam dividido um lance, agora dentro da área. Castrilli assinalou o pênalti e Chilavert converteu seu segundo gol na noite (marcando dois gols pela primeira vez). O boquense Néstor Fabbri, que já tinha amarelo, foi expulso por reclamar do apito.

A torcida do Boca derrubou um alambrado e começou ser repelida a jatos d’água em pleno inverno portenho. Maradona tentou parar, aproveitou para reclamar com o juiz e foi expulso. Nos últimos dez minutos, o Vélez fez mais dois gols enquanto o Boca teve MacAllister também expulso por reclamação. Os comandados de Carlos Bianchi terminariam campeões.

Mas Castrilli também não mencionou esses jogos. Apenas o de outro gigante prejudicado, do San Lorenzo, pela penúltima rodada do Clausura de 1995. Um relato que demonstra como era implacável e mesmo insensível no trabalho: “Em 1995, minha velha, fanática pelo San Lorenzo, estava doente e eu tinha que dirigir um Vélez x San Lorenzo decisivo. Quando vou lhe cumprimentar antes de ir ao campo, me diz: ‘porte-se bem com os muchachos. Antes de morrer, quero ver o San Lorenzo dar a volta olímpica'”.

“O San Lorenzo perdeu essa partida e se armou um escândalo. Anulei um gol de Silas e nos descontos o Vélez fez um gol. E ganhou por 1-0. Se o San Lorenzo ganhasse, era campeão. Na rodada seguinte, o San Lorenzo terminou sendo campeão em Rosario com gol do Gallego González, mas na quarta-feira antes da partida falece minha velha. Não pôde ver o San Lorenzo campeão”. Os azulgranas não venciam a elite havia 21 anos e contamos isso aqui. Indagado se sentia remorso, Castrilli respondeu que “não, nada. Minha velha não me falava sério”.

Conforme publicado na entrevista, Castrilli renunciou à arbitragem em outubro de 1998. Havia apitado a Copa do Mundo. “Denunciou corrupção no futebol argentino. Seus apontados foram o presidente da Associação do Futebol Argentino, Julio Grondona; o titular do Colégio de Árbitros, Jorge Romo; e o empresário televisivo Carlos Ávila, a quem acusou de exercer pressões sobre os árbitros para favorecer determinadas equipes”, explicou o jornal.

Antes da partida, cumprimentos de Chilavert e Maradona. Ao fim do primeiro tempo, Dieguito é expulso
Antes do polêmico Vélez 5-1 Boca, cumprimentos de Chilavert e Maradona. Ao fim do primeiro tempo, Dieguito é expulso por Castrilli

Prossegue a nota: “o ex-árbitro aportou uma lista de colegas que haviam recebido recomendações dos dirigentes na hora de sancionar jogadores de clubes grandes – alguns desses juízes ainda estão em atividade – e afirmou que Ávila havia expressado a necessidade de que caíssem Ferro, Argentinos Jrs, Platense e Huracán, segundo ele ‘inviáveis para a empresa Torneos y Competencias'”, o canal a cabo do Grupo Clarín que detinha o monopólio das transmissões até o governo kirchnerista pegar o monopólio para si e exibi-lo em rede aberta pelo Fútbol para Todos.

O juiz comentou: “(me aposentei) pelas denúncias que eu fiz. Na arbitragem, como em outras atividades, as pessoas têm que saber quais são seus limites. Nesse momento, não tive dúvidas de qual era o caminho a seguir. É claro que me mortificou essa decisão. Às vezes, o dever-ser te faz tomar decisões que atentam contra teu próprio interesse”. Coincidência ou não, por pior tecnicamente que estivessem, enquanto o monopólio televisivo foi da TyC o Ferro Carril Oeste caiu em 2000, o Platense em 1999 (ambos não voltaram à elite desde então e chegaram a passar pela terceirona), o Huracán também em 1999 (e em 2003) e o Argentinos Jrs em 1996 e 2001.

“A energia que gera o mais absoluto convencimento de qual é o caminho correto é a que te faz relevar qualquer tipo de adversidade, por dolorosa que seja. Te sentes totalmente impermeável às pressões (…). Estamos tratando com seres humanos. Por isso, é necessário contar com árbitros críveis e honestamente demonstráveis para que quando cometam um erro, não se tenha dúvidas de que foi um erro e não uma decisão. Com nome e sobrenome: Silvio Trucco. Dirigindo Vélez-River, Teo Gutiérrez deu uma cotovelada na cara de Cubero no nariz de Trucco. Sancionou a falta e deu amarelo a Teo. Se equivocou? Não! Um corpo arbitral pode ser falível e ter limitações, mas com a inquebrável segurança de que quando erra é produto de um equívoco e não de uma eleição”.

“Dentro de dez ou quinze anos, a imagem do árbitro ficará reduzida a um simples executor de decisões remotas. Morro para ir ver o Barcelona, estou juntando grana. Antes que Messi, Suárez e Neymar vão embora, quero vê-los. Pago o que for para ir, mas para ver os jogadores e não os erros dos árbitros. E mais, os xingo quando se equivocam. É a reação lógica do que se sente mal porque pagou um ingresso para ver outra coisa. Tire-me o erro do árbitro e deixe-me a genialidade de Messi ou a habilidade de Cristiano Ronaldo, porque eu pago o ingresso para ver o artista. Quando menos ingerência tiver o árbitro, melhor”.

A entrevista na íntegra pode ser vista clicando aqui. Por fim, uma curiosidade: após ter feito tanto Boca como River perderam de cinco, Castrilli pareceu ser a escolha neutra para apitar um Superclásico de 1997. Foi a única vez na rivalidade que quem começou perdendo de 3-0 não terminou derrotado: o Boca abriu essa vantagem com 29 minutos de jogo, período em que ainda perdeu um pênalti. O River diminuiu para 3-1 ainda no primeiro tempo. O River teve Eduardo Berizzo expulso pelo segundo amarelo após falta, mas o boquense Sergio Martínez também levou o vermelho ao pôr a mão na bola. No finzinho, o River empatou um dos duelos mais emocionantes da dupla. Veja:

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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