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90 anos do primeiro título do profissionalismo argentino: foi do Boca

Originalmente publicado no aniversário de 85 anos, em 2016 – revisto e ampliado

A poesia pode dizer que coube ao Boca realizar a transição entre o amadorismo e o profissionalismo na Argentina. Afinal, os xeneizes ganharam o último campeonato argentino amador, o de 1930, assim como o primeiro do profissionalismo, o de 1931 – título que se garantiu em 3 de janeiro de 1932, ou seja, há exatos 90 anos. A nova era logo se espalharia nos três principais centros do continente, sendo oficializada no Uruguai em 1932 e no Brasil em 1933. Mas a história de como ela foi assumida na Argentina não chegou a ser tão simples, conforme contaremos.

Não é tão simples porque um profissionalismo mascarado já existia na Argentina. Relembramos neste outra nota como se desencadeou o campeonato de 1931; não foi somente o movimento dos principais clubes do país para jogarem apenas entre si e contra pequenos economicamente interessantes. O fato de haver times pequenos mas economicamente interessantes, inclusive, denota pagamentos “no escuro”, algo que não chegava a ser segredo na época, variando de clube para clube. Por exemplo, o ponta-direita Natalio Perinetti, que esteve na Copa de 1930 e até hoje recordista de jogos pelo Racing, recusara ainda em 1927 um já profissionalizado Real Madrid (vencido pelo time de Avalleneda em um 2-0 com show de Perinetti) por estar contente com o que recebia “extra-oficialmente” da Academia.

Quem, por outro lado, não esteve na Copa de 1930 foi o futebol rosarino – justamente por conta de uma inoportuna greve às vésperas do torneio, outro fator a denotar um futebol já remunerado. O que mais deixava os jogadores insatisfeitos, naqueles tempos, eram normas legais que obstruíam o passe livre: quem quisesse trocar de clube era obrigado a ficar por um ano no time B do quadro em que jogava. Tal regra beneficiava as equipes mais modestas, que tinham o mesmo peso na votação que os “peixes grandes”. Em 1931, foi a vez de uma greve dos jogadores das equipes da capital, que chegaram até a marchar rumo à Casa Rosada com a petição. Recebidos pelo presidente Uriburu, este forçou intervenção da própria prefeitura de Buenos Aires para mediar o problema.

Longe de um romantismo pelo amadorismo, os clubes menores mostraram-se propensos a escancarar o profissionalismo, desde que o campeonato seguinte mantivesse todas as equipes de 1930 – um torneio de 36 clubes, tantos que foi travado em turno único. Já em 1927 Luis Monti tecia críticas a respeito à revista Caras & Caretas: “se jogaria melhor com menos teams e mais disciplina”. Mais conhecido como único a jogar finais de Copa do Mundo por países diferentes (vice pela Argentina em 1930, campeão pela Itália em 1934), Monti não escapara daquela lei. Negociado com o já profissional futebol italiano, precisou esperar um ano para desligar-se do San Lorenzo rumo a Juventus, chegando a desapontar a nova torcida ao chegar fora de forma. Falamos aqui.

Quem não teve esse contratempo foi Atilio Demaría, que acompanhara Monti na Argentina de 1930 e acompanharia de novo na Itália de 1934 (mas sem entrar em campo em nenhuma das finais), justamente por se bandear do torneio amador de 1931 (que, seguindo sem os rebeldes, acabaria ganho pelo clube de Demaría, o Estudiantil Porteño) para o profissional, onde apareceu rapidamente pelo Gimnasia antes de acertar com a Inter de Milão sem ter problemas de passe. O Estudiantil Porteño ainda existe como um clube social, mas já com seu time de futebol competitivo desativado. Isso ou a atrofia nas divisões inferiores seria em regra o destino a médio prazo dos nanicos desprezados pelos dezoito clubes que criaram sua própria liga, à parte da associação argentina reconhecida pela FIFA.

Boca comemora. O jogador mais à direita é Cherro

Os dezoito renegados não aceitaram aquela imposição de manter disputas com os demais times de 1930. Eles eram as duplas Boca & River, Racing & Independiente, Huracán & San Lorenzo, Estudiantes & Gimnasia (todos eles campeões ao menos uma vez em todos os campeonatos ocorridos entre 1913 e 1930), Atlanta & Chacarita, Vélez & Ferro Carril Oeste, Platense & Tigre, Lanús & Talleres (donos das outras principais rivalidades da Grande Buenos Aires), além do Argentinos Jrs e do Quilmes. O Talleres em questão não é o de Córdoba, e sim o da cidade de Remedios de Escalada. Sentiu falta da dupla Newell’s & Rosario Central? Eles ainda jogavam só o campeonato rosarino, mas também se profissionalizaram em paralelo em sua própria liga municipal e seriam enfim admitidos na liga argentina a partir de 1939.

A curto prazo, o movimento significou que só jogadores de times amadores iriam jogar a Copa de 1934, ano em que a associação reconhecida pela FIFA se rendeu e deixou-se absorver pela liga “pirata”, que teve seus torneios já realizados convalidados como oficiais. A longo prazo, fez dos rebeldes os times historicamente mais assíduos da elite, exceção ao Talleres de Escalada, ausente desde a edição de 1938 – o lugar na história (inclusive na rivalidade com o Lanús) do clube que revelou Javier Zanetti seria ocupado pelo Banfield, o único dos times inicialmente remanescidos no amadorismo que conseguiria se sobressair na nova era. Pois a grande maioria se adequou às divisões inferiores (como o Sportivo Barracas, que pudera derrotar Milan e Napoli em 1929 e em 2021 comemorou a subida da quarta divisão à terceira…), foi extinta ou, como o Estudiantil Porteño, desativou o futebol competitivo.

Um dos times que terminariam extintos seria o Sportivo Buenos Aires. Dele sairia exatamente o jogador que fez o River, então com ainda um título na elite (de 1920), ganhar naquele 1931 o apelido de Millonarios: o ponta Carlos Peucelle, jogador que havia marcado gol na final da Copa de 1930 ainda como atleta do Sportivo – que, devido a uma liga não reconhecer a outra, nada recebeu pela transferência ao passo que Peucelle abocanhou dez mil pesos, montante considerável para aqueles tempos. No Huracán, o artilheiro daquela Copa, Guillermo Stábile, teve seu lugar substituído pelo maior artilheiro do clube, Herminio Masantonio. Que, simbolicamente, marcou o primeiro gol do time na nova era, logo em sua estreia. Foi o quarto na artilharia de 1931.

Já a grande novidade do Boca foi Francisco Varallo, outro personagem da Copa de 1930 – El Cañoncito se tornaria com o tempo conhecido como último sobrevivente da final, falecendo aos cem anos, em 2010. Varallo havia sido campeão em janeiro de 1930, ainda pelo campeonato de 1929, justo sobre o Boca pelo Gimnasia LP. Terminou em terceiro na artilharia de 1931, com 27 gols, e seria o maior artilheiro profissional do Boca no século XX. Potencial que fez a negociação não ser tranquila, com ele perdendo amizades de anos e tendo a casa em La Plata apedrejada. Respondeu marcando quatro gols em um 5-0 sobre o velho clube, ainda que não comemorasse, mesmo sendo na juventude torcedor do rival Estudiantes – é o que assegurava Alejandro Scopelli.

E quem era Scopelli? Era outro da Copa de 1930 e que deveria ter jogado a final em vez de Varallo, que mesmo lesionado foi mantido por pressão de um cartola do Gimnasia. Scopelli, um dos argentinos mais internacionais antes da globalização do futebol, era um meia artilheiro do melhor ataque do campeonato, o do Estudiantes. Já dedicamos um especial à sensacional linha ofensiva pincharrata, apelidada de Los Profesores, a incluir ainda o capitão argentino de 1930 (Manuel Ferreira), um futuro campeão pela Itália em 1934 (Enrique Guaita) e um jogador das seleções argentina e francesa (Miguel Ángel Lauri, primeiro hermano a vencer a Ligue 1 – e pelo Sochaux).

Varallo, astro do Gimnasia, foi o grande reforço do Boca para 1931. À direita, um dos quatro gols que fez sem comemorar em um 5-0 sobre o ex-clube naquela campanha

Aquele Estudiantes foi o primeiro time a marcar 7 gols em um jogo, sobre o Chacarita, na 3ª rodada; o primeiro a marcar 8, no Lanús, na 14ª (a superioridade foi tamanha que o juiz finalizou o jogo aos 23 do segundo tempo: os grenás fizeram dos pinchas os primeiros a vencerem por W.O. também); o primeiro a marcar nove, sobre o Ferro, na 23ª – todos eles vencidos sem marcar um único gol. Aliás, o goleiro alvirrubro Edaurdo Scandone foi o primeiro a pegar um pênalti, de Vicente Locasso, do River. Os dois artilheiros do campeonato eram Profesores: Scopelli, com 33 gols, e Alberto Zozaya, com 34.

Só que o Estudiantes alternava dias espetaculares com derrotas homéricas (como um 5-1 para o Chacarita), perdendo dez vezes contra as seis derrotas do Boca. Curiosamente, o campeão começou mal: empatou em casa com o Chacarita e perdeu de 3-2 no primeiro confronto com o Gimnasia – que, longe da imagem de azarado à qual se impregnaria com o tempo (inclusive, ficou invicto nos clásicos platenses de 1931, empatando um e vencendo o Estudiantes no outro), voltava da uma exitosa viagem à Europa, na qual se tornara a primeira equipe sul-americana a vencer tanto o Real Madrid como o Barcelona. Na terceira rodada, acordou com um 5-1 no Tigre. Na nona rodada, já era líder após bater fora de casa o Racing por 2-1.

Falando em Racing, cabe parêntese: aquele campeonato de 1931 rendeu o Clásico de Avellaneda com mais gols, um 7-4 que também é a maior goleada racinguista sobre o Independiente. Foi exatamente no primeiro dérbi profissional entre eles. Já o primeiro clássico profissional entre Boca e River – duelo ainda visto como Clásico de La Boca (ou Clásico Boquense), em alusão ao bairro que originou ambos, e não El Superclásico – foi polêmico.

O River, que já havia saído de La Boca para a fina zona norte portenha, visitou-a e abriu o placar com o reforço Peucelle. Mas não se conformou após um pênalti ao rival, convertido pelo reforço Varallo após duas defesas do goleiro millonario. Os visitantes alegavam que Varallo agarrara o goleiro para acertar o rebote, falta que o próprio assumiria ter feito. O juiz fez vista grossa ao lance, expulsou três reclamões e os que sobraram se retiraram em protesto. O tapetão deu os pontos ao Boca.

Aquele Boca tinha grandes artilheiros. Se Varallo foi o maior goleador profissional no século XX, Roberto Cherro (também da Copa de 1930) foi o maior goleador geral, incluindo o amadorismo. Havia ainda Domingo Tarasconi, máximo anotador das Olimpíadas de 1928, e outros membros do bivice da seleção em 1928 e 1930, casos do meia Pedro “Arico” Suárez, dos defensores Ramón Mutis, Ludovico Bidoglio e Mario Evaristo; e ainda o xerifão paraguaio Manuel Fleitas Solich. Mantiveram uma campanha sólida apesar do poderio do Estudiantes. A duas rodadas do fim, os dois clubes travaram um duelo direto.

Personagens de 1931: Scopelli do espetacular Estudiantes, no clássico com o Gimnasia; e o goleador Bernabé Ferreyra, na capa pós-campeonato. Reação do River!

O Boca, mesmo menos espetacular (seu ataque fez 85 gols, o segundo melhor, mas bem atrás dos 103 dos platenses), tinha quatro pontos de vantagem. Mesmo em La Plata, abriu o placar. Foi com Tarasconi, atormentado por lesões (por isso não fora à Copa de 1930), marcando justamente o que seria seu último gol pelo clube. Mas Bidoglio lesionou-se em tempos que não haviam substituições – o lance, por sinal, decretaria o fim de sua carreira. O Estudiantes virou para 4-1, com dois de Scopelli, um de Guaita e outro de Ulises Uslenghi. Mantinha-se no páreo, mas a alegria foi efêmera.

Na rodada seguinte, o Boca impôs um 4-2 no Talleres de Escalada (do goleiro Ángel Bosio, titular da seleção na Copa de 1930), obrigando o Estudiantes a vencer o Atlanta no dia seguinte. O que parecia simples: o adversário foi o lanterna do torneio e só tinha duas vitórias até então. Calhou de outras duas virem justamente nas duas últimas rodadas. Na penúltima, Guido Baztarrica, que nos anos 40 passaria por Fluminense e Atlético Mineiro (foi o primeiro argentino do Galo, conforme contamos aqui), fez os dois gols dos 2-1 descontados por Scopelli. A derrota alvirrubra, em 3 de janeiro, garantiu a taça boquense. E um pouco de anticlímax para além da rodada final. Afinal, nela o Boca teria de visitar o River.

O embate perdeu rispidez, com a plateia, em tempos mais cordiais, aplaudindo a volta olímpica dos rivais antes do apito inicial. Enquanto o Estudiantes perdia de novo, para o San Lorenzo (que assim ultrapassou o Pincha rumo a uma enganosa segunda colocação), o campeão fazia jus à conquista: 3-0, gols de Antonio Alberino, Mutis e Varallo. A El Gráfico reportou que “o triunfo do Boca Juniors no primeiro campeonato da era profissional é também o triunfo da lógica. O ‘time da era’ tem mais direito que qualquer outro de ter ganho este título e assim seu nome gravado na história como o primeiro desta nova época”.

A reação do River? Fazer aquela que por vinte anos foi a contratação mais cara do futebol mundial por Bernabé Ferreyra, matador do Tigre – em 1931, El Mortero de Rufino foi quinto na artilharia, com 19 gols, por uma equipe terminada em antepenúltima, e tendo estreado só na 14ª rodada (marcando os quatro em um 4-1 no Quilmes; depois, marcaria em sete minutos três gols para virar um 2-0 do então líder San Lorenzo), pois estava ocupado em excursão pelas Américas com o Vélez, que pedira seu empréstimo; como jogador do River, ele anotaria incríveis 187 gols em 185 jogos apenas no campeonato argentino.

El Clásico Boquense passaria a virar El Superclásico graças ao sucesso da transferência, a projetar o rival nacionalmente (até então, o Boca disputava com o Racing em termos de número de torcedores) e fazê-lo o campeão já na edição seguinte. História contada neste outro Especial.

Protestos no primeiro Boca x River (cuja camisa principal ainda era a tricolor listrada). À direita, os rivais ainda tratados como “clássico de La Boca” em vez de “Superclássico” em letreiro em revista de 1933, com Bernabé Ferreyra

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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