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65 anos do Martín Palermo do River: Carlos Morete, dos maiores carrascos do Boca

“O goleador que não faz gols fica doente. Todos os que dizem que em primeiro lugar está a equipe são mentirosos. Por mais que a equipe ganhe de 5-0, se o goleador não faz, se sente um c*. Se eu perdia, mas fazia um gol, me sentia feliz, havia cumprido com meu trabalho”.

Um dos apelidos de Martín Palermo é “Otimista do Gol”, por não ser de desistir de oportunidades, o que rendeu alguns dos mais incríveis gols do futebol argentino mesmo não tendo técnica refinada. Mas pode-se dizer que El Titán foi sucessor de atacantes de estilo similar que também conseguiram ser ídolos, como Beto Acosta no San Lorenzo e Luis Artime em diversos. E, assim como Palermo é quem mais gols fez no River somando jogos de campeonato, amistosos e torneios internacionais, Carlos Manuel Morete Markov foi um dos maiores carrascos do Boca, vazado mais de vinte vezes pelo 10º maior artilheiro do River (105 gols em 200 jogos: dos nove à frente dele, só um, Bernabé Ferreyra, não jogou pelo menos dez anos. Morete jogou cinco).

“Contra o Boca, metia pegasse com o que pegasse. Com o River uma vez lhe meti três em um jogo, outros dois no famoso 5-4. Quando fui ao Talleres lhe fiz 5 em dois jogos, com o Independiente também os vazei. Se deu assim. Eles sabiam que em qualquer momento os vazava e tinham um cuidado especial. Por isso, se você sabe que te temem e que tens 90 minutos para executá-los, essa é arma que deve ter o goleador e também o técnico para bancá-lo. Boca teve Palermo como carrasco e essa foi uma das causas da freguesia dos últimos tempos. O River não teve uma referência da que o Boca estivesse pendente, com medo, e isso foi chave”.

Filho de um imigrante português com uma iugoslava, Morete, embora tenha passado pelo Independiente, era na infância torcedor do Racing (“sempre tive claro que era profissional. Para mim, não existe o romantismo da camisa, é simbólico. Hoje, que já terminei, me sinto sim torcedor do Racing, mas sou um torcedor tranquilo”), não se inibindo de acompanha-lo nas arquibancadas da grande fase de 1966-67 enquanto atuava nos juvenis do River. Foi ainda na base que foi apelidado de Puma, por um jornalista que o descrevia sempre à espreita na área.

“No baby, já era goleador. No River, fui testar de centroavante, no sétimo quadro cheguei a meter 47 gols em 25 jogos e, quando quis acordar, já estava no adulto. Eu pegava com os tornozelos. Aqui não importa como pegas, importa é que entre. Na área, não podes pensar. Nunca me esquentei que me dissessem que dava com os tornozelos. Labruna te dava confiança: ‘agarre a bola e dê no arco, tenha fé, busque todas. O que não podes deixar é que dentro da pequena área passe uma bola e não chegues, porque se acontece isso, te tiro. Toda bola na pequena área tem que ser tua’. Meti um montão de gols na pequena área”.

No primeiro e no último ano de River. No Talleres (no 4-0 no Boca, com três dele) e no Independiente (torce para o Racing…). Camisas onde foi bem na Argentina

Havia chegado ao River pelas mãos de um vizinho que trabalhava como carpinteiro de Oscar Más, já um grande ídolo em Núñez apesar do jejum que vigorava desde 1957. Estreou nos adultos em 29 de março de 1970, em derrota de 2-0 para o Rosario Central, na terceira rodada. Havia jogado toda a partida preliminar, entre os times de aspirantes, e acabou relacionado após a indisponibilidade de alguém no time principal. Entrou nos últimos vinte minutos, substituindo o futuro gremista Néstor Scotta, e “definiu” o resultado, pois a partida ainda estava 0-0. Tinha 18 anos. 

“O camisa 9 é de nascença, não compras o olfato em lado nenhum, vem de berço. Não fazes um 9. É uma raça especial, por isso há tão poucos. Não pode desfalecer. Ter paciência e saber que seu jogo dura 90 minutos. Cuidam de você, cuidam, mas pum, apareceste e colocaste. O atacante que não tem agressividade, que não toureia os defensores, não serve. Os defensores têm que se cagar pela tua presença. Tratava de não alongar além de uma resposta verbal, porque o mais importante para o goleador é estar concentrado no jogo”.

A história o faria ídolo, mas também foi um dos jogadores mais xingados no Millo. Não vingou de imediato. O nervosismo consequente só atrapalhava ainda mais quem também era perseguido pela falta de sutilezas, afronta a uma torcida acostumada ao toque refinado. O primeiro gol só veio na 18ª rodada, em julho, sobre o Estudiantes. Mas marcou nas duas seguidas também. E terminou bancado pelo novo técnico millonario, que viera após ótima Copa de 1970 treinando o Peru: o brasileiro Didi, que se não resolveria aquele jejum pós-1957 se notabilizou por bancar diversos juvenis que adiante seriam fundamentais no fim da seca, já em 1975. Como Morete.

“Eu sofri uma seca de 14 rodadas com Didi. No River, se cansavam de me xingar. Eu chegava em casa e não dormia, ficava louco, tinha mil superstições, ia à igreja, já não sabia o que inventar. Por sorte, o técnico me bancou. ‘Tranquilo, Morete, tranquilo’, me dizia Didi. Em uma época me gritavam ‘Morite’ [morra], deformando meu sobrenome. Agora vou direto, me saúdam, me dizem ‘volta, Carlitos’, são os mesmos que me xingaram a vida toda”.

Brilhou também no Las Palmas (terceiro agachado. Outros argentinos são o goleiro, Carnevali, e o quarto em pé, Brindisi), mas ir à Espanha influenciou que ficasse dez anos longe da seleção

Morete quase começou campeão. O River só perdeu nos critérios de desempate o Metropolitano de 1970, isso porque o Independiente virou nos últimos dez minutos o clássico com o Racing. No Nacional, já sob Didi, perdeu a classificação às semifinais por um ponto. El Puma começou a explodir já no Nacional de 1971. Uma greve de jogadores havia eclodido e Didi promovera juvenis mais do que nunca. Incluindo no Superclásico, com a greve recém-finalizada. Os garotos do River ganharam de 3-1 do time principal do Boca e Morete fez o terceiro em um dos duelos mais lembrados contra o arquirrival. Em 1972, foi a vez do tal “famoso 5-4”.

“Perdíamos de 4-2 e aos 5 minutos do segundo tempo vejo o finado Néstor Scotta aquecendo e disse ‘tchau, me limpam’, por que ia entrar outro 9? Metemos o 4-3 e em seguida eu o 4-4, fez-se outra troca e no fim meti o quinto. Coisas da vida”.

Já havia acumulado nove gols no Nacional de 1971, terminando-o na vice-artilharia – mas faltaram dois pontos para a classificação às semifinais. No 5-4, por sua vez, o River abriu o marcador, levou virada de 4-2 mas conseguiu dois gols entre os dez e os vinte do segundo tempo, quando Morete empatou. Aos 45, completou sobre a linha para virar. Mas o River, após arrancar no início, terminou a nove pontos do campeão e Didi saiu: “o River lhe tem que estar agradecido, nunca mais vai se dar um técnico que promova quinze garotos juntos ao time principal do River”. Já sem Didi, o título quase veio ainda em 1972, no Nacional.

Morete foi o artilheiro do torneio, o time eliminou o Boca na semifinal (com Morete marcando) mas perdeu a final para o San Lorenzo. Mais consolidado, ele estreou pela seleção em fevereiro de 1973 para depois viver história semelhante no Torneio Nacional: foi vice-artilheiro, mas com o Millo dois pontos atrás do campeão Rosario Central. El Puma foi artilheiro do Metropolitano de 1974, mas faltou um ponto para a classificação ao quadrangular final… mas a revanche veio em 1975. Morete foi o artilheiro do Metropolitano e o River, campeão após dezoito anos. Dentre os gols, um em vitória por 2-1 em Superclásico na Bombonera em dia que ele terminou desacordado no hospital após cotovelada do adversário Roberto Rogel. Foi seu nono e último gol no rival pelo River, que nunca perdeu quando o Puma marcou.

Após o título, foi negociado com o Las Palmas. Ficou na Espanha até 1980. Nessa época, quem ia à Europa sumia do radar da seleção, ao contrário de hoje. Perdeu lugar na Copa de 1978, ao contrário de Leopoldo Luque, contratado do Unión em 1975 justamente para substituir Morete já no vitorioso campeonato seguinte. Já o Las Palmas fazia suas últimas boas campanhas na elite espanhola: 4º em 1977 (com Morete na vice-artilharia, dois a menos que Mario Kempes), 7º em 1978 e 6º em 1979. Na passagem pelas Canárias, sempre ficou entre os dez artilheiros de La Liga, mesmo no 13º lugar na temporada da estreia. O clube tinha uma colônia argentina, com o goleiro Daniel Carnevali, os meias Enrique Wolff e Miguel Brindisi (os três, da Copa de 1974), os atacantes Teodoro Fernández e Pedro Verde e o técnico Roque Olsen.

Momento “empolgou” pelo Boca, onde não foi bem individualmente, nem no Argentinos Jrs. Mas esteve em títulos históricos de ambos

Depois de uma temporada 1979-80 ruim no Sevilla, Morete recebeu oferta do Racing do coração, mas preferiu ser colega de Brindisi e Maradona no Boca. Foi campeão e chegou atuar os noventa minutos em oito jogos (cinco, seguidos) e ser titular em outros três, mas como ponta para Brindisi e Maradona não saírem. Com passado jamais perdoado pela nova torcida e fora de ritmo quando enfim teve chances, só marcou três gols na campanha. Pensava em parar, mas não conseguiu negar convite de voltar a trabalhar com Labruna, dessa vez no Talleres. Em 1982, teve justamente o melhor ano de gols na carreira. Foram quarenta.

Dividiu os gols de 1982 rigorosamente em vinte pelo Talleres (chegando a marcar três em um 4-0 no Boca), eliminado na semifinal do Nacional pelo futuro campeão Ferro Carril Oeste, ficando na vice-artilharia; e outros vinte pelo Independiente, para onde foi depois. Foi artilheiro do Metropolitano pelo Rojo, incluindo gol em 2-0 no clássico com o Racing do coração (o outro gol, curiosamente, foi de Enzo Trossero, também racinguista na infância). Mas o título foi perdido por dois pontos para o Estudiantes. O time de Avellaneda terminou bivice do de La Plata também no campeonato seguinte, em 1983. Por outro lado, em julho de 1983 El Puma voltou à seleção após dez anos e meio, segundo maior hiato de alguém na Albiceleste.

Reestreou marcando o único gol sobre o Chile, mas a idade pesou e só atuaria outra vez. Foi seu único gol em quatro jogos pela Argentina. Também não se manteve no Independiente, limpado pelo técnico novo, José Omar Pastoriza: “tive discussão com ele porque joguei na greve de 1971. Joguei porque era um garoto, e quando chegou ao Rojo limpou a mim e a Olguín, que também havia jogado na greve”. Só marcou um gol no Metropolitano, quando o clube enfim voltou a ser campeão argentino após meia década. Morete e Olguín rumaram ao timaço que o Argentinos Jrs formava. Diferentemente do líbero, o atacante não triunfou individualmente no time de La Paternal, ainda que em 1984 tenha marcado em um 3-0 no Boca e num 2-2 com o rival Platense.

Por outro lado, no Argentinos Jrs ele foi campeão como nunca, na fase mais brilhante do Bicho: os colorados ganharam seus dois primeiros títulos argentinos (seguidos) em 1984 e 1985, além da Libertadores em 1985 (onde El Puma só atuou no 2-2 com o Vasco e no 3-1 sobre o Ferro Carril Oeste, ainda na primeira fase) e de ficarem muito perto de bater a Juventus no Mundial. Seus últimos gols, porém, foram ainda em 1984. Parou em 1986. Chegara a passar cinco meses suspenso em 1985. Por chamar os cartolas de “gângsteres”.

Sobre essa declaração, a “atualizou” em 2006: “antes, eram maus sem computador. Agora, têm computador”. Essa e todas as outras declarações entre aspas nesta nota foram retiradas desta entrevista fornecida à El Gráfico. Hoje, Morete é agente de jogadores, tema que na entrevista não fugiu da metralhadora verbal: “ninguém quer ralar a bunda. Todo mundo quer fazer negócios em Puerto Madero ou na Recoleta, eu vou ver jogos no inverno em Mar del Plata às 9 da manhã, com minha garrafa térmica. Não me mato a cotoveladas com ninguém”.

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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