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Em decisão Leicester x Tottenham há 35 anos, Ardiles fez ingleses gritarem “Argentina!” logo após a invasão das Malvinas

Versão atualizada desta matéria publicada há um ano, quando Leicester City e Tottenham Hotspur disputavam o título inglês.

A temporada 2015-16 não foi a primeira em que um Tottenham de dupla argentina e o Leicester estiveram nas cabeças por um título nacional. Se ano passado o elenco do meia Erik Lamela e do técnico Mauricio Pochettino correu atrás do pessoal de Jamie Vardy e Riyad Mahrez (e do talismã argentino Leonardo Ulloa) na Premier League, em 3 de abril de 1982 o time de Osvaldo Ardiles e Ricardo Villa se deparou com o de Gary Lineker (depois ídolo do próprio Tottenham) pelas semis da FA Cup. Com um contexto pesadíssimo: simplesmente, na véspera, tropas argentinas invadiram as Malvinas. Ardiles era tão ídolo que mesmo assim foi apoiado por clube e torcida do Spurs, mas sua primeira etapa no clube do norte londrino terminaria ali.

Contudo, não foi exatamente a guerra que fez Ardiles decolar de Londres dois dias depois. Segundo edição da revista Placar naquele mês, foi por contrato mesmo. Ossie já havia programado que se juntaria à seleção depois daquela partida, sendo o início da guerra uma terrível coincidência. A Placar já havia noticiado em 1981 a renovação do contrato dele e de Villa com o Tottenham, com a ressalva de liberação com antecipação para concentrarem-se com a seleção se convocados à Copa de 1982. Ardiles já havia sido liberado para disputar em 1980 o Mundialito, competição oficial da FIFA que reuniu as seleções campeões mundiais para celebrar o meio século da primeira Copa do Mundo. Foi autorizado embora a própria seleção inglesa tenha recusado-se a participar do torneio.

Por outro lado, a guerra impediu que ele voltasse imediatamente ao White Hart Lane depois da Copa. Pode ter impedido também uma transferência de Daniel Passarella à ilha, pretensão revelada pelo capitão em 1981 no embalo do sucesso dos conterrâneos (acabaria acertando com a Fiorentina). Em longa entrevista em 2011 à El Gráfico, Ardiles lembrou: “havia terminado o mundial e a guerra, mas a imprensa fazia tudo muito difícil. Para a argentina, eu era um traidor; para a inglesa, um espião. Tudo o que dizia era olhado com 20 lupas e se interpretava mal, então pedi ao clube que me transferisse. O técnico não queria saber de nada. O presidente me disse que fosse à Argentina e que quando estivesse bem, voltasse. Eu não podia ficar parado”. Acertou em julho de 1982 um empréstimo de um ano com o Paris Saint-Germain (chegou a ser anunciado pelo São Paulo), malfadado desde o início. Em agosto, já queria voltar ao Tottenham. O regresso deu-se nos inícios de 1983.

“Nunca joguei pior na minha vida. Minha cabeça estava muito mal, me dava vergonha jogar assim, e quando se abriu o mercado de inverno, em Paris não fizeram muito para me reter, se era absolutamente um desastre. Quase um ano depois da guerra, mais tranquilo, fui me recuperando”, acrescentou El Pitón na entrevista. O conflito não respingou só na carreira: perdeu na guerra um primo de segundo grau. “José Leónidas Ardiles. (…) Não me inteirei de sua morte nesse momento. (…) Meu tio veio à Inglaterra várias vezes depois da guerra para saber o que aconteceu. Nunca teve resposta, até que um dia recebi uma carta escrita pelo piloto que o havia derrubado. Este homem sabia das averiguações do meu tio, e me escreveu o sucedido: que meu primo não havia tido chance de ejetar e morreu. Foi uma carta muito emocionante. Um gesto que valorizei muito. Logo contei a meu tio”. A Argentina se rendera exatamente um dia depois da estreia da Copa de 1982: saiba mais.

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Ardiles e Villa juntos na seleção em 1977. Ao meio, capa lamentando a transferência (ir ao exterior mais os atrapalhava que ajudava a se manter na seleção). E apresentados em Londres

Agora, corta para 1978. A Inglaterra ausentava-se pela segunda vez seguida de uma Copa e a Argentina vencia pela primeira vez o torneio. Com presença criticadíssima pela própria mídia argentina antes do evento, pois o queridinho para a posição era o riverplatense Juan José López, Ardiles foi uma insistência do técnico César Menotti e jogou demais mesmo precisando de infiltrações, pois estava lesionado. Em julho de 1978, a Placar estimou que cada campeão valeria pelo menos 600 mil dólares (contexto da época: apenas um ano depois se efetivaria a primeira transferência milionária do futebol, de Trevor Francis) e que aquele volante fino interessaria ao Corinthians. O talento também foi reconhecido do outro lado do oceano: Keith Burkinshaw, técnico do Tottenham, veio pessoalmente à Argentina. Os astros do River, base da seleção e em tempos de menor disparidade técnica e financeira com a Europa, eram inegociáveis. Acertou então com El Pitón.

Burkinshaw não foi sábio apenas nisso. Antevendo que seria menos difícil para Ardiles adaptar-se ao fechado futebol britânico se fosse acompanhado de um compatriota, indagou-lhe se sugeriria alguém. Assim soube do meia-armador Ricardo Villa, outro campeão de 1978, colega de quarto do volante na concentração e amigo desde os tempos em que ambos apareceram juntos em uma convocação só de jogadores do interior (Ardiles do Instituto de Córdoba, Villa do Atlético Tucumán), uma inovação de Menotti. Burkinshaw ligou para Londres para saber se haveria 750 mil libras disponíveis no caixa para levar a dupla. Os Spurs estavam recém-saídos da segundona e em 20 minutos retornaram-lhe autorizando a verdadeira pechincha diante do desespero econômico de Huracán e Racing, respectivamente os clubes de Ossie e Ricky. O contrato de Villa foi pactuado em dez minutos.

“Iniciava-se, para o Tottenham, clube londrino de sólidas e respeitáveis tradições, aquilo que o inteligente e dinâmico Burkinshaw definiu como jogo de alto risco. Se os argentinos não acertassem, ele com certeza seria posto na rua”, escreveu a Placar. Houve resistência aberta do sindicato de jogadores; e, apesar de Villa ter marcado em sua estreia sobre o poderoso Nottingham Forest da época, o sucesso não foi imediato – com os maus resultados jogados nas costas da dupla, informava a Placar já em janeiro de 1979. Mas eram apoiados no novo clube: “no primeiro dia, fomos com cautela, não sabíamos o que nos esperava. Muito sérios, nos apresentamos no vestiário, até que ao saudar Ricky alguém lhe apertou bem forte a mão e quando a soltou, lhe deixou um dedo postiço. A cara de susto de Ricky! Para mim deixaram um calção sobre o banquinho e quando o pus chegava a meus tornozelos. Explodiram de risadas. São muito brincalhões os ingleses. Foi uma recepção para quebrar o gelo. Nos aceitaram incrivelmente bem”, lembraria Ardiles em 2011.

Ao fim da primeira temporada, a impressão geral era outra. A Placar já dizia “devagar e sempre, Ardiles conquistou o futebol inglês”. Em maio, em amistoso com a Holanda na celebração dos 75 anos da FIFA, ele se tornou o primeiro a jogar pela Argentina importado de um clube britânico. “Chegamos como campeões do mundo e se respeitava muito isso. Mas a partir daí tens que ganhar as pessoas. Comigo o tema foi claro: joguei muito bem. No primeiro ano, fui eleito o melhor estrangeiro e nos seguintes sempre estive no páreo. Foi minha época dourada (…). Posso dizer que há só três jogadores na história do Tottenham que foram jogadores e técnicos: Bill Nicholson, Glenn Hoddle e eu. Isso te dá um status”. Futuramente, quando treinava o Racing em 2003, recebeu visita de um torcedor dos Spurs que vinha negociar a dívida argentina: Richard Thornton, o homem-forte do FMI. Abaixo, música lançada na época daquela crise deflagrada em 2001, mas com versos se referindo àquela guerra no Atlântico Sul.

Outros argentinos se aventuraram na terra da rainha na virada para os anos 80: outro campeão de 1978, o defensor Alberto Tarantini havia fechado com o Barcelona após a Copa, mas esbarrou no limite já preenchido de estrangeiros, não topou casar-se de fachada com uma espanhola para adquirir cidadania e acertou com o Birmingham City. O volante Claudio Marangoni e o futuro técnico de 2014, o então meia Alejandro Sabella, ambos sequer jogadores da seleção na época, foram respectivamente ao Sunderland e ao Sheffield United; Sabella também jogaria no Leeds United. Mas nenhum vingaria como Ardiles e Villa, este com um tempo mais demorado de adaptação, mas também certeiro: fez dois gols nos 3-1 na final da FA Cup de 1981, sobre o Manchester City (saiba mais). Era a centésima edição do tradicionalíssimo e mais antigo torneio de futebol do mundo. O festejo foi grande também pois o White Hart Lane vivia uma seca; nos anos 70, só se venceu duas pouco expressivas copas da liga.

Não foi o suficiente para Villa voltar à seleção, com a vaga que roubara de Maradona na Copa de 1978 sendo enfim assegurada por Dieguito, mas pôde orgulhar-se de um desses gols ser eleito o mais belo marcado em Wembley no século XX. Já Ossie chegou a ser o capitão de um combinado da liga inglesa que celebrou a despedida de George Best. No auge do sucesso, Ardiles, que inicialmente pretendia voltar à Argentina após os três anos originais de contrato, pendurar as chuteiras em algum clube da terra e retomar a carreira de advogado pausada quando virara jogador de seleção, acertou aquela renovação que o liberaria para a Albiceleste com alguma antecedência para a Copa de 1982. Ainda em 1981, estrelou o filme Fuga para a Vitória, com Pelé, Bobby Moore e Sylvester Stallone.

Então veio a questão Malvinas. “No clube nunca se falou da guerra, tudo seguiu igual como antes”, afirmou Ardiles naquela entrevista de 2011. “Quem somos nós para dizer que estamos certos e que eles estão equivocados?”, solidarizou-se o técnico Burkinshaw. A maioria dos colegas sequer sabiam onde estavam as Malvinas, e mesmo o povo britânico em geral, segundo Ardiles declararia já em 1983 à El Gráfico, mostrava menos interesse em um conflito distante, preocupando-se no dia-a-dia mais com as bombas do IRA (pois as “sofrem na própria carne”, resumiria). Os Spurs estavam no páreo pelo bicampeonato na FA Cup (com direito a eliminar o rival Arsenal) e para vencer a Recopa Europeia (ambos os argentinos marcaram em um 6-1 agregado sobre o Ajax), que seriam decididas nas semanas seguintes. No início de abril, estavam nas semifinais de ambas as competições: naquele dia 3, haveria jogo único contra o Leicester City e quatro dias depois, já com o desfalque certo de Ardiles, ocorreria confronto de ida com o Barcelona.

Um dos combatentes era Omar De Felippe, atual técnico do Vélez e talvez a mais famosa personalidade do futebol que lutou na guerra. “A quantidade de jornalistas era impressionante, terias que multiplicar por 20 os habituais. Havia muita imprensa que não era de futebol, e queria falar conosco. O Tottenham se portou muito bem e nos protegeu totalmente, não deixou que ninguém se aproximasse de nós”, afirmou Ardiles na entrevista à El Gráfico. Mas os torcedores do Leicester não tardaram a gritar “England! England!” a cada vez que Ardiles tocava na bola. A reação da torcida londrina no estádio neutro do Aston Villa foi grandiosa: “Argentina! Argentina”, bradavam os torcedores dos Spurs. E Ossie perseverou, fazendo o cruzamento para um dos gols da vitória, de Garth Crooks.

Ardiles, Marangoni, Villa e Sabella com o Big Ben ao fundo: na época, a religião anglicana pesava para não haver jogos aos domingos. À direita, homenagem ontem do Vélez a De Felippe

“Se nós houvéssemos estado mais preocupados pela política que pela partida, teríamos perdido. Mas nos concentramos no futebol, ganhamos por 2-0 e logo fomos campeões. (…) Claro que as torcidas rivais nos xingavam, mas não muito mais do habitual”, explicou Ardiles à El Gráfico. Foi festejado por colegas e, enquanto Margaret Thatcher ainda não retaliava, o jornal Times se rendia: “não se pode ignorar os argentinos. A Inglaterra se descuidou e perdeu a Ilhas Falklands. O Leicester deixou Ardiles sozinho e este ganhou o jogo para o Tottenham”. Mas o volante não estava feliz. “Há um mês tudo estava bem, e agora os dois países que mais amo estão próximos de uma guerra”, declarou após o jogo.

Sem ele, o Tottenham seria eliminado pelo Barcelona na Recopa Europeia e perderia a Copa da Liga para o Liverpool, mas seria bi na FA Cup, sobre o Queens Park Rangers. Ricardo Villa também não jogou essa final, mesmo sem ter sido convocado à Copa: “Ossie saiu para jogar no Paris Saint-Germain, mas eu fiquei. E eu fui criticado nos jornais argentinos. Eles diziam ‘Ricky está feliz no país inimigo’. (…) Eu era profissional, eu tinha um contrato, e pessoas aqui me tratavam muito bem. Às vezes eu era vaiado, mas isso era tudo. Um jogador inglês em Buenos Aires na mesma época poderia nunca ter ficado. Era fácil para mim ficar aqui. Mas não foi difícil decidir não jogar a final da FA Cup de 1982. Eu sabia o que a história diria estando eu certo ou não”, declarou há dez anos ao Independent.

Ardiles voltaria no início de 1983. Não se deu bem no início, quebrando uma perna logo na terceira partida. Mas faturaria na temporada seguinte a Copa da UEFA, em campanha onde os Spurs bateram o Feyenoord de Gullit e Cruijff e o Bayern Munique. E seu jogo-despedida, em 1986, contou com a participação de Maradona: “a seleção de Bilardo (o novo técnico da Argentina) havia jogado contra a Noruega em Oslo e em 4 dias se apresentaria em Israel para outro amistoso. Mesmo assim, Diego veio à minha partida no meio, chegou um dia, jogou e se foi na manhã seguinte. E não me pediu nem uma libra, embora pudesse tê-lo feito. Ainda há muita gente do clube que me lembra do dia que Maradona pôs a camisa do Tottenham. Por isso digo que tenho uma grande dívida de gratidão com Diego. Ganhamos por 2-1 da Inter de Milão e Diego jogou genial. Bah, normal!”. Semanas depois, era comentarista da BBC justo na partida entre Inglaterra e Argentina na Copa do Mundo.

Ardiles se adaptaria cada vez mais à vida inglesa a ponto de só falar em espanhol com os netos nascidos lá e quando está à sós com a esposa – e de só ser chamado de “Osvaldo” por ela, e quando a mesma está irritada, segundo aquela entrevista à El Gráfico. Mas não abandonou totalmente as raízes: sobre aquelas tensas quartas-de-final no México, lembrou à El Gráfico que “não foi nada fácil. Em primeira instância, não vi (a mão de Maradona no primeiro gol). Ao repeti-lo, me chamou a atenção que Hoddle e Waddle protestassem tanto. Os dois eram companheiros meus no Tottenham e não eram de reclamar. ‘Epa, aconteceu algo aqui’, pensei. Na terceira, notei o gesto de Diego de olhar de relance o bandeirinha. E numa quarta tomada se vê clarinha a mão, assim afirmei que havia sido mão e ponto. (…) Depois veio o outro golaço. No estúdio não gritei, mas por dentro festejava como louco”.

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Outro lance do jogo contra o Leicester e um clássico com o Arsenal na segunda passagem de Ossie pelos Spurs

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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