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55 anos de Ángel Comizzo, folclórico 3º goleiro da Copa de 1990

Apesar do presente, a Argentina é historicamente um celeiro de grandes goleiros. Imagine que em 1988 um mesmo clube contou com três goleiros usados pela seleção nacional na Copa do Mundo dali a dois anos? Foi o caso do River. Os millonarios, que no passado tiveram justamente os dois principais arqueiros argentinos (Amadeo Carrizo e Ubaldo Fillol), agora viam Nery Pumpido e Sergio Goycochea convocados simultaneamente à seleção. E passaram a ter Ángel David Comizzo Leiva, folclórico arqueiro com jogos em três décadas diferentes pelo clube de Núñez. 3º goleiro da Copa de 1990 (na qual Pumpido e Goycochea também foram convocados), hoje El Flaco faz 55 anos.

“Minha vida sempre foi uma bola de futebol. Eu fui goleiro desde a pança da minha mãe, sempre senti uma atração especial pelas traves”, declarou ele em longa entrevista à revista El Gráfico em 2002. Nela, declarou que o goleiro “tem de ser inteligente. Esta é uma posição para inteligentes, pelo menos segundo a maneira que eu tenho de sentir o futebol. Não se trata só de voar de trave a trave, e sim de ler o jogo, buscar que a jogada seja mais fácil antes que se transforme em perigo. (…). O goleiro é uma posição difícil, sofrida, mas de muito reconhecimento também”. Para El Flaco, deve ter ainda “muita capacidade de absorção em circunstâncias difíceis, diria eu. O técnico vê se tens culhões suficientes para te recompor em seguida a um erro”.

Chegou a reprovar todas as matérias em um ano escolar por só jogar bola nas horas livres. Nascido na cidade santafesina de Reconquista, jogou pelo Racing local em torneios regionais. Recusado em peneira no Rosario Central, no mês seguinte foi levado e aprovado em uma do Talleres. Os goleiros do time adulto eram César Mendoza e, principalmente, Héctor Baley, participante das Copas do Mundo de 1978 e 1982. Um não tolerava ficar no banco do outro. Comizzo topava e começou a aprender. Naquela entrevista, declarou ter aprendido muitos segredos com Baley, que “deixava” que o reserva jogasse nos campos mais difíceis:

No Talleres da temporada 1987-88, seu trampolim para rumar ao River. O último em pé é o veterano zagueiro Luis Galván, titular da Argentina campeã da Copa de 1978

“As do Temperley e Chacarita. Tive que ir nos dois pelo Talleres, quando ambos os times disputavam o rebaixamento. Todos esses joguinhos Baley me dava. Um amigo, El Negro. Me dizia: ‘para que vejas o que é a pressão, estes deixo a você”. Outra inspiração era Hugo Gatti, outro goleiro extravagante nas ações e no visual e longevo (é quem mais realizou jogos no campeonato argentino, entre 1962 e 1988). Comizzo teve dificuldades no Talleres, não chegando a ser bem um ídolo. Chegou a passar um ano inteiro sem jogar, treinando em separado, após ir às vias de fato com o presidente tallarin Amadeo Nuccetelli, que o acusara de líder de uma greve.

Comizzo quase havia fechado com o Racing em 1987, mas, alertado pelo honesto técnico racinguista Alfio Basile de que seria reserva do veterano Fillol, preferiu ficar em Córdoba. Nuccetelli deixou a presidência naquele ano e El Flaco voltou a jogar… e La T foi a última colocada da temporada 1987-88. Longe de ser o culpado, acabou vendido ao River. A equipe de Núñez havia contratado ninguém menos que César Menotti para técnico e abriu os cofres: Comizzo foi acompanhado do ex-colega tallarin Mario Bevilaqua e também por vários astros, a começar por Daniel Passarella, que adiara a aposentadoria.

O pacotão incomum incluía desde ex-referentes de anos recentes do rival Boca, como o próprio Menotti e também o zagueiro Jorge Higuaín (pai de Gonzalo) e os atacantes Milton Melgar e Jorge Rinaldi; a três integrantes do Newell’s campeão da temporada anterior, casos dos defensores Julio Zamora, Fabián Basualdo e do atacante Abel Balbo; dois campeões da Copa de 1986 e ambos membros do Argentinos Jrs campeão de quase tudo entre 1984-85, o volante Sergio Batista e o atacante Claudio Borghi; e dois importantes coadjuvantes do Independiente, o lateral Carlos Enrique e o atacante Gerardo Reinoso. José Luis Chilavert quase veio junto e até posou com a camisa, mas sua troca com o San Lorenzo por Sergio Goycochea foi travada por uma misteriosa doença de Goyco (era artrite, mas o mistério gerou rumores até de que seria AIDS!).

Comizzo, mais à esquerda (camisa preta e calça comprida), comemora a vitória sobre o Brasil

Goycochea acabou indo ao Millonarios do forte narcofútbol colombiano e Nery Pumpido também saiu, ao Real Betis. Ou seja: o caminho ficou livre para o novato. Cujo jeitão espalhafatoso não o fez querido de imediato. Os resultados também não ajudavam: derrota de 2-1 na estreia para o Platense e de 2-0 na segunda rodada para o arquirrival Boca em pleno Monumental lotado por torcedores ansiosos com tantos reforços promissores… também foi muito criticado por um frango contra o Estudiantes. “Em pouco dias, cruzei com Amadeo Carrizo no clube e me deixou bem claro: ‘não se preocupe garoto, ainda vais levar mais 300 gols bobos, o importante é que não sejam todos no mesmo jogo”.

Era o campeonato em que vitórias valiam três pontos em época em que no restante do mundo ainda valia dois: os empates valiam um, mas seriam decididos por pênaltis, com o vencedor conseguindo um ponto a mais (essa fórmula também foi adotada no Brasil em 1988). E foi na revanche do Superclásico que Comizzo teve seu primeiro grande momento, defendendo três pênaltis do Boca após o empate na Bombonera. Não que o River empolgasse. Terminou dezessete pontos atrás do campeão Independiente e Menotti saiu antes do fim. O consolo ficou na liguilla (repescagem que dava a outra vaga na Libertadores), com triunfos finais sobre Boca e San Lorenzo.

A temporada 1989-90 teve duas metades. Na primeira, um River treinado em dupla por Norberto Alonso e Reinaldo Merlo se punha entre os primeiros se destacando mais pelo brilho defensivo. Na pausa de fim de ano, a dupla, alinhada ao candidato da situação, derrotado, foi substituída pelo recém-aposentado Passarella. Sob El Kaiser, o River jogou de forma bem mais imponente e garantiu a taça na antepenúltima rodada. Em paralelo, chegou às semifinais da Libertadores. E Comizzo, com melhor média de gols sofridos, acabou premiado com uma convocação de última hora à Copa do Mundo.

De preto, atrás de Maradona no desconsolo da medalha de prata em 1990. Os outros na imagem são o barbudo Sergio Batista, o goleiro reserva imediato Cancelarich, Caniggia, Troglio, Dezotti, Bauza, Serrizuela e o goleiro titular Goycochea

Foi uma situação esdrúxula. Carlos Bilardo tinha em mente Pumpido de titular, Luis Islas de reserva imediato e Goycochea como terceira opção. Mas Islas, revoltado por considerar-se em melhor momento, pediu para sair. Goycochea foi “promovido” a segundo reserva e a terceira vaga ficou com Fabián Cancelarich, do Ferro Carril Oeste. Mas Pumpido fraturou-se na segunda partida. A FIFA autorizou que a seleção detentora do título convocasse de forma extemporânea um outro goleiro. Goycochea e Cancelarich “andaram uma casa”. A terceira opção poderia ser Julio César Falcioni (do América de Cali trivice na Libertadores entre 1985-87), testado em amistosos pré-Copa não-oficiais em 1990, mas ficou com o riverplatense.

A FIFA deu essa permissão na época, mas por outro lado não permitia que todos os reservas ficassem disponíveis ao treinador, que tinha de escolher apenas quatro para serem relacionados. Por isso, nas fotos da Copa El Flaco Comizzo só aparece com o macacão da delegação, e não exatamente uniformizado. Está no grupo dos jogadores que, embora convocados a algum torneio, jamais entraram em campo pela Argentina – como Cancelarich e outro goleiro de Copa, Norberto Scoponi, de 1994. Comizzo minimizou: “joguei alguns jogos na seleção juvenil. De todos os modos, eu não tenho contas pendentes com o futebol. Deus me deu o que mereço”.

Após o mundial, iniciou sua longa trajetória no futebol mexicano, primeiro emprestado por uma temporada ao Tigres. Comizzo voltou ao River para a temporada 1991-92 integrando no Apertura um recorde de oito vitórias seguidas nas oito primeiras rodadas, algo então inédito no profissionalismo argentino. Pouco depois, veio a grande decepção na Supercopa Libertadores: o Millo fez 2-0 no Cruzeiro na final em Buenos Aires, mas os argentinos foram pálidos no Mineirão e conseguiram levar de 3-0. Comizzo foi tido justamente como o destaque millonario ao impedir uma surra ainda maior. Naquela entrevista, considera este seu melhor e mais amargo jogo.

Uma derrota de 3-0 é considerada por Comizzo o melhor jogo de sua carreira: impediu surra maior do Cruzeiro na final da Supercopa 1991. À direita, volta olímpica com Passarella semanas depois

“Nunca quis ver o vídeo dessa partida. E o tenho em casa, guardado”. Também declarou que aquele Cruzeiro foi o melhor time que enfrentou: “na noite do 3-0 eram imbatíveis, nos apareciam por todos os lados. Nunca vi nada igual, uma coisa inexplicável o que aconteceu”. A volta olímpica doméstica, porém, terminou confirmada com sobras, novamente na antepenúltima rodada – dessa vez, já na era dos torneios curtos. Já os torneios seguintes foram vencidos por Newell’s, Boca e Vélez. O Boca não vencia havia onze anos e a vitória rival no Superclásico foi determinante, em dérbi famoso por causa de Comizzo: o River teve um pênalti a seu favor e o goleiro pegou um radinho atirado para “escutar” a cobrança, provocando a torcida auriazul.

A cobrança foi perdida. “Se nesse dia ganhássemos ou ao menos empatássemos, teríamos sido campeões”. El Flaco não tardou a perder espaço, em discussões nunca esclarecidas com Passarella (o boato corrido é que o desentendimento teria sido com o assistente Américo Gallego). Em 1993, após uma breve passagem pelo América de Cali, Comizzo prosseguiu carreira no Banfield. O Taladro, revelando o jovem Javier Zanetti, emendou três campanhas entre os dez primeiros (9º no Apertura 1993, 8º no Clausura 1994 e no Apertura 1995), sendo que nas duas primeiras ficou respectivamente a seis e a quatro pontos do campeão. O goleiro ficou mais uma temporada, e já sem ele (que retornou ao México em 1996) os alviverdes encararam outra realidade: rebaixamento na temporada 1996-97.

No futebol asteca, chegou a duas finais por times modestos, em 1997 (León, onde foi crucificado por cometer um pênalti fora da jogada), ano em que quase cometeu a heresia de fechar com o Boca; e 2000 (no primeiro título do Monarcas Morelia), ganhando esta com direito a defender três pênaltis mesmo com um dedo fraturado. O suposto desafeto Américo Gallego treinava o River e saiu em 2001, substituído por Ramón Díaz.

O outro clube argentino onde se destacou: no Banfield de Javier Zanetti (que é o primeiro agachado)

Coincidência ou não, Comizzo logo voltou a Núñez, suprindo a venda de Roberto Bonano ao Barcelona. E ainda foi destaque. O time, que celebrava seu centenário oficial, perdeu o Apertura para um Racing em jejum havia 35 anos, mas o Clausura 2002 não escapou. Para variar para Comizzo, seu terceiro título veio na antepenúltima rodada. Foi o goleiro menos vazado mesmo completando 40 anos durante a campanha que rendeu até um 3-0 sobre o Boca. Na Bombonera (“um orgasmo”, definiu sobre). Chegou a sonhar com a convocação à Copa do Mundo (“por uma fácil razão: defendo o arco mais importante do país”).

Ele ainda conseguiria outro título, jogando a estreia do Clausura 2003 – o 2-2 com o Newell’s. Mas o novo técnico, o chileno Manuel Pellegrini, preferiu dividir a vaga entre Franco Constanzo e José María Buljubasich. Magoado, o veterano rumou ao Atlético de Rafaela para pendurar as luvas na temporada 2003-04. Penúltimo no Apertura, a equipe santafesina conseguiu um 10º no Clausura, mas perdeu os play-offs do rebaixamento para o Huracán de Tres Arroyos (do jovem Rodrigo Palacio).

Como técnico, Comizzo também iniciou-se no Talleres, em 2008. Por enquanto, as glórias se resumem ao título peruano com o Universitario em 2013 e à Supercopa do México com o Morelia no ano seguinte. Uma curiosidade: os pais e três irmãos são torcedores do Boca, fato que ele “mascara” sob o eufemismo de que “têm um odor raro”…

No River de 2002, com D’Alessandro, Cambiasso, Ortega…

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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