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Há 75 anos, o timaço do River dos anos 40 era reconhecido como “La Máquina”

O obscuro beque Miguel Ángel Garavano, do modesto Ferro Carril Oeste, foi a capa da edição 1196 da revista El Gráfico, que desde 1919 é testemunha ocular do futebol argentino. Esta edição, publicada em 12 de junho de 1942 (no mesmo dia em que Anne Frank iniciava diário em meio à guerra que eclipsaria aquela geração dos hermanos), completa hoje três quartos de século. E virou histórica não pelo personagem da capa, e sim por uma matéria em referência à goleada de 6-2 aplicada pelo River fora de casa sobre o Chacarita. O título da nota era “jogou como uma máquina o líder”. A própria revista já havia chamado o clube de Máquina antes, mas em contexto diverso (como em nota de 1938 abordando uma má fase). Reconhecer o timaço como La Máquina, mesmo, se oficializou há 75 anos.

Na realidade, o nascimento de La Máquina pode ter diversas datas. Elementos daquele River defendem que o surgimento dera-se no ano anterior, quando o prodígio Adolfo Pedernera foi deslocado da ponta para centroavante. Descrito por Alfredo Di Stéfano (que seria seu reserva) como maior jogador que vira, Pedernera se destacava pela versatilidade ofensiva. Em uma época em que o futebol se jogava com cinco atacantes (pontas direita e esquerda, meias direita e esquerda e centroavante), ele provaria tal maestria ao ser utilizado pela seleção em cada uma dessas cinco posições ofensivas.

O River foi campeão em 1941, conquista que quebrou jejum de quatro anos. Pedernera, que então jogava em uma das pontas, era remanescente da conquista anterior, quando ainda era adolescente. Outro remanescente era José Manuel Moreno, com quem costuma competir como maior craque argentino da primeira metade do século XX. Moreno era mais malabarista e jogava na meia-esquerda. Em 1939, pela Argentina, fizera três gols em São Januário na pior derrota em casa da seleção brasileira até os 7-1. Ainda no fim dos anos 30, outros membros da lendária ofensiva millonaria foram promovidos: outro meia-esquerda, Ángel Labruna, e o ponta-direita Juan Carlos Muñoz. Foi em 1939, após o elenco titular fazer greve em solidariedade à suspensão interna de Moreno, punido pela diretoria por má atuação em derrota para o Independiente.

Juvenis foram então promovidos enquanto os astros iam “pescar ou caçar no interior”, nas palavras de Muñoz, que prosseguiu: “o plantel maior encarou bem, com naturalidade, nossa atitude de nos apresentarmos para jogar. Na verdade, eles pensavam que o conflito não ia durar mais de um jogo. Mas não foi assim. Jogamos nove encontros com um saldo bem favorável: ganhamos 6, empatamos 2 e perdemos 1. Lembro do triunfo que conseguimos sobre o Boca. Todos diziam que era um façanha ter ganhado com uma equipe de garotos. Vencemos por 2-1 com gols de Blanco e Labruna. As pessoas, ao nos ver jogar tão bem, haviam se esquecido um pouquinho dos figurões”.

À esquerda, a matéria que há 75 anos reconheceu o River como La Máquina. À direita, cena dos 4-0 sobre o Boca naquele 1942

Ainda segundo Muñoz, “lentamente foram se acostumando a nomes como o de Labruna, o de Caffaratti ou o meu. Em 1940, se resolveu o tema de greve. O River, porém, não andou nada bem. Tudo era instável e irregular. Parecia impossível encontrar com uma mesma escalação dois domingos seguidos. Se efetuavam muitas trocas e isso, sem dúvidas, debilitava muito nosso funcionamento. Cesarini, que então era o técnico, tinha grandes problemas para formar a equipe. Lhe custava horrores decidir quem deveria ficar de fora. Eram tantos os jogadores e tão alto o nível de cada um, que Renato (Cesarini) nadava em um mar de dúvidas. No ano seguinte, começou a se gestar o que posteriormente foi La Máquina“.

Ex-ídolo como jogador de River e Juventus, e ex-jogador das seleções argentina e italiana, o dândi Renato Cesarini deslocou Moreno para a meia-direita para poder usa-lo junto com Labruna. A ponta-direita era alternada entre Muñoz e o veterano Carlos Peucelle, o homem cuja contratação dez anos antes junto ao extinto Sportivo Buenos Aires fizera o River ser apelidado de Millonarios (Peucelle havia marcado gol na final da Copa de 1930). Já a ponta-esquerda ira inicialmente alternada entre Pedernera e o ambidestro Aristóbulo Deambrossi. O centroavante era Roberto D’Alessandro (sem parentesco com o ídolo do Internacional).

No último ano de sua carreira, Peucelle já era um assistente técnico informal de Cesarini. Foi do veterano a ideia de sacar D’Alessandro e deslocar Pedernera como centroavante: “com El Cabezón D’Alessandro no time, todos têm que jogar para ele. Adolfo, ao invés, vai fazer todos jogarem”. Isso se deu em 1º de junho de 1941, uma das possíveis datas de nascimento de La Máquina, pela 10ª rodada. A versão original do ataque foi formada por Muñoz, Moreno, Pedernera, Labruna e Deambrossi. Pedernera, de fato, marcou gol na vitória de 2-1 sobre o Independiente, mas a estatística não escondeu na época que ele não jogara tão bem.

Pedernera voltou a ser ponta-esquerda, até novo jogo contra o Independiente. Até lá, o River não andou muito bem. Encerrou o primeiro turno em quinto e a cinco pontos do San Lorenzo (em época na qual a vitória valia apenas dois e não três pontos). Deambrossi, D’Alessandro e Moreno chegaram a ser afastados após derrota de 2-1 para o Boca na 14ª rodada. Antes do jogo contra o Independiente pelo returno, Peucelle voltou a insistir na sua ideia e Cesarini cedeu. Escalou Barrios, Vaghi e Cadilla, Yácono, Rodolfi e Ramos, Muñoz, Moreno, Pedernera, Labruna e Deambrossi.

Outros nomes regulares do ataque entre 1941 a 1945: Peucelle em 1941, quando se aposentou; D’Alessandro, suplantado por Pedernera; e Gallo, substituto de Moreno em 1945

Assim, a outra possível data de origem de La Máquina foi 21 de setembro. Porque, pela 25ª rodada, a mudança deu certo: mesmo em Avellaneda, o River sapecou um 4-0, com três gols de Pedernera (Muñoz fez o outro, justo sobre o time pelo qual torcia na infância; confessou que naquele dia em que o Independiente derrotara o River no episódio que originaria aquela greve, estava na arquibancada alentando o Rojo). Peucelle se entusiasmou tanto que declararia que La Máquina, na verdade, nasceu muito antes: “Doña Rosa a fez. Doña Rosa Pedernera, a mãe de Adolfo”.

O River ganhou quase tudo a partir dali, com destaque à sua maior goleada sobre o Boca, o 5-1 com gols de Labruna, Moreno, Pedernera (em exibição descrita como espetacular) e dois de Deambrossi. O título veio na rodada seguinte. Muñoz, Moreno, Pedernera, Labruna e Peucelle foi a escalação de um 3-1 no Estudiantes, no jogo em que Peucelle pendurou as chuteiras. Deambrossi assim voltou a ocupar a ponta-esquerda para o campeonato seguinte. O time acumulou 24 jogos invictos. O 24º foi justamente aqueles 6-2 fora de casa no Chacarita.

“O que te pareceu La Máquina? – nos disse o torcedor Regard uma vez finalizado o encontro entre Chacarita Juniors e River Plate. Se referia ao rendimento da equipe líder do campeonato. A qualificação de máquina era a mais acertada. (…) Pedernera se firmou na sua posição. (…) A verdade é que se vê agir o líder com (…) grande entendimento coletivo e até ganhar sem esforço aparente. Dois gols em 14 minutos. (…) O Chacarita não havia jogado mal, dizíamos, esse primeiro período, mas a superioridade do adversário era enorme”, descrevia a matéria da El Gráfico. Mas com ressalvas que dimensionam a habilidade daquele River:

“Um erro cometeram os forwards do River: o driblar em excesso quando o triunfo estava assegurado. Não se admite um futebol que ante a habilidade se busque o recurso do golpe, mas tampouco se justifica uma falta de respeito que consiste em driblar, passar, voltar para trás e fazer brincadeiras. Tal conduta atiça os burlados a buscar no golpe uma vingança. Se deve ganhar por seis ou por vinte, mas honestamente”. Labruna e Pedernera marcaram dois cada e Moreno, outro. O outro gol millonario foi contra, do funebrero Ítalo Emanuelli. Carlos Viyella e Juan Riephoff descontaram para o Chaca. A capa com Garavano se justificaria, porém, três dias depois. Em um anticlímax, o Ferro derrotou o River no Monumental por 2-1.

River de 1942, com outra opção de ataque, Deambrossi, ainda atuando regularmente. O último em pé, ao lado de Grisetti, é o técnico Cesarini

O golpe foi bem assimilado na jornada seguinte, em que o Millo impôs um 4-0 no Banfield (dois de Labruna, um de Pedernera e outro de D’Alessandro, que, porém, não escaparia de ser vendido ao Racing em 1943). A rodada posterior, em 28 de junho, foi um magro 1-0 no Platense, gol de Moreno. Mas é outra possível data de nascimento de La Máquina. Ao menos, da versão mais famosa daquele ataque. Preferimos, porém, adotar a de 12 de junho porque essa versão mais famosa só atuaria dezoito vezes juntas entre 1942 e 1946, por fatores de lesões de algum componente ou pela estadia de Moreno no futebol mexicano entre meados de 1944 e meados de 1946 (período em que seu posto foi de Alberto Gallo, titular no título de 1945), quando voltou a Núñez.

As palavras são de Deambrossi: “La Máquina andava um fenômeno, mas entre os reserva havia um tal de Loustau que não jogava nunca e que merecia uma chance. Uma dia disse a Peucelle: ‘ponha-o um par de jogos esse garoto Loustau, assim ganha alguns pesos’… o pôs e não o pôde tirar mais. Meu bom gesto se equivaleu a ver os jogos de fora. De todo modo, Félix não me fez ficar mal”, brincava sobre a última peça a se juntar: Félix Loustau, que participaria de onze partidas na campanha. Dois dias antes, em 26 de junho, a El Gráfico publicava sua edição 1198, emblemática sobre o que viria, com o miolo de ataque formado por Moreno, Pedernera e Labruna – na imagem logo abaixo. Loustau já era conhecido por Cesarini, cujo olho clínico o deslocou de lateral para ponta esquerda ainda na base: “me obedeça que serás um fenômeno”. Loustau só deixaria o River em 1958.

Mas, a rigor, Deambrossi não saiu de imediato: Muñoz se lesionou e assim Deambrossi foi deslocado à outra ponta, somando 28 jogos. Deambrossi inclusive abriu o placar de outra exibição primorosa, o 4-0 sobre o Boca em 19 de julho. O primeiro turno se encerrou com o River disparado na liderança, a seis pontos dos perseguidores. No início do returno, houve alguma turbulência, com Pedernera se ausentando em algumas partidas. Sem ele, La Máquina chegou a levar de 6-1 do Racing. Com ele de volta, veio o título, e em plena La Bombonera. Foi a primeira volta olímpica do Millo na casa do arquirrival, que abriu 2-0. Mas, mesmo com um a menos (Yácono foi atingido por um rojão e não eram permitidas substituições), o River buscou o empate. Com dois gols de Pedenera…

Modesto, o maestro diria que La Máquina não era só aquele ataque. Afinal, como já dito, a escalação Muñoz-Moreno-Pedernera-Labruna-Loustau só jogou dezoito vezes juntas, ainda que só perdendo duas: 1-0 no Platense (1942), 1-3 para o Atlanta, 3-1 no Ferro, 5-0 no Racing, 1-1 com o Rosario Central, 3-0 no Chacarita e 1-1 com o San Lorenzo (1943), 2-2 com o Independiente, 5-1 no Racing, 1-1 com o Fero, 1-0 no Chacarita, 2-1 no Vélez e 2-1 no San Lorenzo (1944); e 2-1 no Chacarita, 1-0 no Estudiantes, 4-1 no Ferro, 1-2 para o Lanús e 2-2 com o Huracán. Um falso 9 da época, Pedernera foi-se ao Atlanta em 1947. A força coletiva do River se manteve com seu substituto como centroavante, autor de 27 gols que lhe deram a artilharia no meio do ataque mais goleador do clube na década, com 90 gols: Alfredo Di Stéfano. Uma outra história, que contamos neste outro Especial.

Muñoz, Moreno, Pedernera, Labruna e Loustau, o ataque mais famoso de La Máquina, embora só tenha jogado junto 18 vezes

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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