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Só dois argentinos conseguiram a Chuteira de Ouro europeia: Messi e Héctor Yazalde, morto há 20 anos

Já fazem 15 anos sem que o Sporting Lisboa ganhe o campeonato português. Quando a “equipa” alviverde já não era a força dominante em seu país, conseguiu na mesma temporada faturar tanto a liga como a copa nacionais, e com o rival Benfica ainda contando com Eusébio. Feitos liderados pelo argentino de maior sucesso em Portugal: Héctor Casimiro Yazalde (a pronúncia no sotaque portenho é uma mistura de “Djaçalde” com “Xaçalde”), artilheiro máximo do campeonato e do futebol europeu naquela temporada 1973-74, o que lhe rendeu a Chuteira de Ouro. Sucesso que o fez casar com uma Miss Portugal e o colocou na Copa do Mundo em tempos em que jogar no exterior ainda mais atrapalhava do que ajudava os expatriados a serem convocados à seleção. Há vinte anos, El Chirola falecia precocemente. Vale atualizar este outro Especial que publicamos nos 15 anos.

Ele recebeu o apelido (gíria argentina para pouco dinheiro) por conta de pequenos trabalhos temporários que precisava fazer na juventude para ajudar nas finanças caseiras. Vinha de uma família humilde e fez seus primeiros gols em Villa Fiorito, a mesma favela em que cresceu Diego Maradona. Começou nas categorias inferiores do Los Andes, esteve depois nas do Racing, e, ainda nos juvenis, passou para o pequeno Piraña, minúsculo clube do bairro portenho de Parque Patricios, lá se profissionalizando. Na quarta divisão, foi descoberto pelo arquirrival racinguista, o Independiente. Aos 21 anos, estreou em 1967 na elite argentina. O técnico era o brasileiro Osvaldo Brandão.

Fora o ano em que o Racing conseguira a Libertadores e a primeira Intercontinental de um quadro argentino. Os rojos (que já eram bicampeões da América, mas falharam nos dois confrontos contra os europeus) souberam dar uma carimbada no feito do rival, com Brandão montando um time dos mais ofensivos. A delantera formada por Yazalde com Raúl Bernao, Raúl Savoy, Luis Artime e Aníbal Tarabini faria o Independiente vencer o campeonato nacional com média de três gols por jogo. Os diablos tiveram cerca de 87% de aproveitamento, com doze vitórias em quinze partidas e apenas uma derrota, para o San Lorenzo (1-3), na décima segunda rodada. A reta final foi justamente contra os grandes. A boa recordação daquele título nacional veio por isso também: vitórias seguidas sobre Boca (3-2), River (2-0), e, ainda melhor, um 4-0 sobre o já campeão mundial Racing na última partida.

Yazalde contribuiu com dez gols naquelas quinze rodadas. Nenhum time tinha sido campeão argentino no profissionalismo com um aproveitamento tão alto. Por outro lado, foi a peça ausente no jogo do título, na primeira vez em que o Rojo conseguiu-o em pleno Clásico de Avellaneda. O destino trataria de compensar o atacante em breve: em 1968, veio as primeiras convocações à seleção, mesmo com um ano mais aquém do Independiente, quando simplesmente quatro técnicos passaram por lá após Brandão voltar ao Brasil, convidado para ser supervisor da seleção brasileira. O clube ficou longe da disputa dos torneios metropolitano e nacional, bem como sucumbiu facilmente na primeira fase da Libertadores. Mas os dezoito gols que El Nene (“O Neném”, outro apelido) marcou na Argentina, três deles em clássicos de Avellaneda falaram mais alto. 

O maior momento de Yazalde no Independiente: o gol nos últimos dez minutos em clássico com o Racing que valeu o título argentino de 1970

Em 1969, Yazalde fez 21 gols e o Independiente foi semifinalista do Metropolitano, eliminado pelo Racing. O troco viria um ano depois, para o atacante e seu clube: 23 gritos por conta de Yazalde e o mais importante, a conquista de uma nova taça: foi no Metropolitano, disputado centímetro a centímetro com o River Plate, então em jejum de treze anos. Ambos terminaram empatados, mas os de Avellaneda levaram a melhor nos critérios de desempate. Assim como em 1967, o clássico da cidade na última rodada deu o título à metade vermelha dela. Dessa vez, foi El Chirola quem acabou como o símbolo da conquista: o Independiente venceu de virada La Academia, e por consequência o Metro, com um gol do centroavante a oito minutos do fim (um belo gol, por sinal, com ele dominando a bola no peito antes do chute). A conquista ainda tinha outro adicional, o de ter feito as duas forças de Avellaneda ficarem igualados no número de títulos argentinos profissionais.

Naquele ano, a mais importante premiação argentina para esportistas, o Olimpia de Plata, teve a sua primeira entrega para um jogador de futebol. E foi Yazalde o primeiro oficialmente escolhido como o melhor argentino na sua profissão. O que lhe faltou em 1970 foi uma participação na Copa do Mundo: a seleção vinha sendo um ponto fraco da carreira. Esteve na conturbada campanha da eliminação dentro da Bombonera para o Peru nas eliminatórias para o mundial do México. Tinha marcado só um gol (aquele contra os peruanos em 1968) em 12 jogos, e vencendo apenas dois, antes de seu desempenho clubístico chamar a atenção europeia. Na época, quem fosse jogar no exterior estava impedido pelo sindicato de jogadores argentinos de ser convocado, algo só alterado em 1972. Deixou o Independiente após ótimos 73 gols em 117 jogos, com seis tentos no clássico contra o Racing.

Yazalde foi contratado pelo Sporting Lisboa. Era a “equipa” mais vitoriosa do futebol português até o fim dos anos 50, quando a dominação do arquirrival Benfica fez com que as conquistas alviverdes na liga lusitana, desde um tetra leonino seguido em 1954, passassem a vir bissextamente, a cada quatro anos. A piada benfiquista era que os “lagartos” (como o Sporting é pejorativamente chamado pelos rivais) serviam só para marcar os anos de Copa do Mundo. Não seria o argentino a alterar isso, para o bem e para o mal. Na estreia europeia, marcou dois “golos” em um 4-1 no Boavista. Ainda assim, demorou a emplacar, em um futebol local ainda pouco comum para forasteiros – a morte do ditador António de Oliveira Salazar ainda era bem recente.

Não que argentinos, e de sucesso, fossem inéditos em Portugal: o próprio Sporting fora campeão em 1962 tendo em Diego Arizaga seu artilheiro. Alejandro Scopelli, vice da Copa do Mundo de 1930, e Oscar Tarrío se tornaram ídolos na virada dos anos 30 para os 40 no Belenenses (com Tarrío apaixonando-se tanto pela “terrinha” que lá faleceria), que, quando ainda disputava com o Porto o porte de terceira força nacional, foi vice-campeão nos anos 50 com o trio José María Pellejero, Ricardo Pérez e Miguel Di Pace. Por outro lado, o próprio Benfica, que posteriormente teria Claudio Caniggia, Pablo Aimar, Javier Saviola e Ángel Di María, orgulhava-se por ainda não haver contado com jogadores estrangeiros do Império Português.

Marcando no clássico lisboeta: com Yazalde, o Sporting, mesmo ainda concorrendo com o Benfica de Eusébio, conseguiu a liga e a copa portuguesas na mesma temporada

Nas duas primeiras temporadas completas do Chirola em Portugal, o Sporting nem mesmo vice-campeão foi de uma liga até então marcada pela polarização da dupla rival lisboeta (o Porto só seria um vencedor mais constante a partir dos anos 80): o segundo colocado do campeonato de 1971-72 foi o Vitória de Setúbal e o Belenenses foi o vice do de 1972-73. Nesta última, com Yazalde já marcando bons 19 gols, ao menos obteve-se a Copa nacional, com ele marcando nos 3-2 sobre o Vitória. A grande explosão dele veio na temporada 1973-74. Depois de quatro anos, o Sporting, cumprindo aquela escrita, voltou a ser campeão português, em uma parelha disputa contra seu arquirrival: os encarnados ficaram apenas dois pontos atrás.

 A contribuição de Yazalde foi fundamental: 46 gols em 29 jogos. Superou os então recordistas 43 tentos que outro goleador de Alvalade, Fernando Peyroteo, estabelecera em 1947. Aqueles números do Chirola, que marcou ainda quatro nas competições continentais (seu time chegou às semifinais da Recopa Europeia), foram na época também um recorde no continente. Maior artilheiro da temporada na Europa, ali recebeu a Chuteira de Ouro, ou “Bota de Ouro” em Portugal. Ela o fez retornar à seleção especialmente para o mundial da Alemanha, mesmo com uma lesão que o tirara das partidas decisivas da Copa de Portugal (o Sporting conseguiria vencer o Benfica na final).

O centroavante estava longe da Albiceleste desde janeiro de 1971 e reestreou a três semanas da competição, sendo um dos “estrangeiros” (o primeiro que a seleção convocou do futebol português) na bagunçada delegação, em que havia três técnicos – Vladislao Cap, José Varacka e Víctor Rodríguez – e que não se davam ao trabalho de se entender. A Argentina perdeu a estreia para a Polônia por 3-2 e, no primeiro jogo de El Chirola no mundial, empatou em 1-1 com a Itália. Ela chegou na última rodada não dependendo apenas de si: precisava que os italianos perdessem para os poloneses, e se o revés azzurro fosse pela diferença mínima, os sul-americanos teriam que vencer o Haiti com três gols de diferença. Naquela campanha longe do memorável, Yazalde teve ali seu momento de herói: marcou o primeiro e o último gol dos 4-1 sobre os caribenhos (um dos gols foi 900º das Copas) que, somado à vitória polaca por 2-1, classificou os argentinos.

Porém, voltou a ser relegado após os 4-0 para a Holanda no primeiro jogo da segunda fase de grupos, não jogando contra Brasil e Alemanha Oriental. Na sua volta a Lisboa, a situação do Sporting retornou àquela triste normalidade (só seria campeão português novamente em 1978, 1982 e 2002, além de 2000). Foi o Porto o vice do Benfica na “época” de 1974-75, mas ainda assim o “avançado”, que havia recusado oferta do Real Madrid, conseguiu se destacar. Em meio à Revolução dos Cravos, o “Terror das Pampas” foi novamente Bola de Prata (prêmio português para o artilheiro da liga), agora com 30 gols, estando perto de nova chuteira de ouro – quem a levou foi o romeno Dudu Georgescu, que anotou três a mais pelo Dínamo Bucareste. Ao fim da temporada, em que chegou a ser treinado por Alfredo Di Stéfano, foi vendido por uma oferta menor que anteriormente oferecida pelo Real Madrid, pois o Sporting agora necessitava com urgência de fundos.

A chuteira de ouro lhe devolveu à seleção para a Copa de 1974. À direita, celebra (com a camisa haitiana) com o velho rival Perfumo: graças a Yazalde, a Argentina não caiu na 1ª fase

O clube não escapou da crise nacional oriunda da independência das colônias portuguesas em 1975. Com “Leão no peito”, a média de gols de Yazalde em jogos do campeonato foi das mais expressivas: incríveis 104 em 104 partidas. Demorariam treze anos para que outro não-português fosse artilheiro na “terrinha”: o brasileiro Paulinho Cascavel, que também vestiu a “camisola” alviverde. E só em 2000 outro se tornou o estrangeiro com mais gols na liga, o também brasileiro Jardel, à época no Porto e depois igualmente ídolo sportinguista. Yazalde também foi o maior goleador estrangeiro do Sporting, superado em 2009 pelo luso-brasileiro Liédson. Sua marca de 46 tentos em um único campeonato, no vitorioso de 1973-74, porém, ainda não foi batida em Portugal.

Contratado pelo Olympique de Marselha, ficou duas temporadas, não rendendo tão bem. Foram só 43 jogos pelos ciel et blancs, longe da ponta da tabela da liga francesa. Ainda assim, fez 23 gols pela equipe da Côte d’Azur e obteve a Copa da França de 1976. Mas o artilheiro argentino no futebol gaulês continuava a ser um posto disputado por Carlos Bianchi, do Stade de Reims, e Delio Onnis, do Monaco. Em 1977, Yazalde deixou o Mediterrâneo e voltou à terra natal, após acerto com o Newell’s. Não chegou a convencer César Menotti por um lugar na Copa de 1978 (algo que lhe amargaria profundamente), a ser realizada na Argentina, mas os gols continuavam a vir bem para a idade elevada. Foram 54 em 119 compromissos com o NOB, tornando-se um ídolo para a torcida leprosa também por conta de um clássico rosarino histórico.

Foi em 1980: o bom time do Rosario Central (seria o campeão nacional daquele ano) não perdia dentro do seu Gigante de Arroyito para o arquirrival havia quinze anos – curiosamente, o autor do gol leproso naquela ocasião em 1965 foi um brasileiro, João Cardoso. Já em 1980, Américo Gallego abriu o marcador e El Chirola, primeiramente em um peixinho para as redes de Daniel Carnevali e depois de pênalti, fechou os 3 a 0 sobre os canallas, até hoje a maior vitória rubronegra sobre o rival na casa dele. Outro triunfo dos visitantes ali em um clássico só voltaria a ocorrer dez anos depois, já nos tempos dourados sob o técnico Marcelo Bielsa. Yazalde ficou na Lepra até o ano seguinte. Em 1982, ele, ex-Piraña, foi jogar no representante mais famoso do bairro portenho de Parque Patricios, o Huracán. Já aos 36 anos, pouco fez e ali mesmo se aposentou, chegando a ser técnico interino do clube em 1985.

Descrito por colegas como um oportunista atacante de personalidade forte e que crescia em partidas decisivas, faleceu ainda com 51 anos, vítima de uma complicada úlcera combinada com uma doença hepática. Ainda hoje, é celebrado pelos hinchas de Independiente e Newell’s, com a revista El Gráfico não deixando de incluí-lo em edições especiais que fez em 2012 sobre os maiores ídolos destes dois clubes. Mas, inegavelmente, é mais idolatrado ainda pelos “adeptos” do Sporting Lisboa: em 2007, o jornal esportivo português A Bola promoveu uma eleição que terminou por eleger o Chirola como o melhor estrangeiro que já passou pelo clube. Pelo mesmo jornal, dois anos depois, ficou em terceiro em votação para melhor forasteiro do futebol luso, atrás de Jardel e do argelino Rabah Madjer (do gol de calcanhar pelo Porto na vitoriosa final da Liga dos Campeões de 1987).

O Sporting Lisboa é talvez o clube que mais teve ídolos argentinos em Portugal, algo que detalhamos recentemente neste outro Especial.

Com Arsenio Erico, maior artilheiro do Independiente e do futebol argentino. No Newell’s com Maradona, que veio da mesma favela. No Huracán e com Cármen Yazalde, ex-Miss Portugal

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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