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Deambrossi, o eficiente estepe de “La Máquina”, o timaço do River nos anos 40

Para os leigos, o poderoso ataque de La Máquina, o timaço do River nos anos 40 (cujo reconhecimento nesse apelidado completou 75 anos há exatamente uma semana, conforme mostramos aqui) se resumia à linha Juan Carlos Muñoz, José Manuel Moreno, Adolfo Pedernera, Ángel Labruna e Félix Loustau. Lendas que ofuscaram a realidade de que só jogaram oficialmente dezoito vezes juntos os cinco. La Máquina sempre foi a equipe inteira, conforme destacava Pedernera, o que incluía o falso reserva Aristóbulo Luis Deambrossi, ponta que hoje faria cem anos. Afinal, ele, ainda era titular quando o timaço – e o apelido – surgiram e quando foram campeões. Na foto acima, por exemplo, ele é o jogador mais à direita, na “vaga” de Loustau junto aos outros quatro, perfilados na clássica ordem Muñoz, Moreno, Pedernera e Labruna.

O River mudou-se do humilde bairro de La Boca à fina zona norte portenha em 1923, mas o apelido de Millonarios só surgiu em 1931. Foi quando o clube tirou do (hoje extinto) Sportivo Buenos Aires o astro Carlos Peucelle, que havia feito gol na final da Copa do Mundo de 1930. O apelido foi reforçado no ano seguinte por uma contratação ainda mais cara: a do centroavante Bernabé Ferreyra, fenômeno responsável por popularizar nacionalmente o clube. Pudera: ele é o único jogador com mais gols do que partidas no futebol argentino (232 em 228).

Contratações bombásticas viraram rotina. Em 1933, foi a vez de Ángel Bosio e Manuel Ferreira, respectivamente o goleiro titular (ainda que ausente da final) e o capitão da seleção na Copa de 1930. É nesse contexto que o livro River – El Campeón del Siglo, o livro oficial do centenário riverplatense, descreve que “em 1935, o clube sacudiu novamente o mercado de passes: pagou 37.500 pesos por José María Minella, do Gimnasia. Mas a equipe tampouco funcionou como se esperava: ao fim do certame ficou em quinto, em meio de uma inocultável decepção. Porém, essa temporada foi um marco na história do River: surgiram dois dos maiores jogadores do futebol argentino, José Manuel Moreno e Adolfo Pedernera”.

O livro deveria ter mencionado que Deambrossi também estreou em 1935. E ainda deixou dois gols, ambos fora de casa, sobre Talleres de Escalada (4-1) e Lanús (2-0). Mas demorou um pouco a se firmar. Nos seus inícios, os pontas titulares eram o veterano Peucelle na direita e o prodígio Pedernera na esquerda. Deambrossi esteve no elenco bicampeão argentino em 1936-37, mas jogando só quatro vezes no primeiro e três no outro. Não fez gols. Em 1938 e em 1939, foram só duas partidas em cada torneio. Aos poucos demonstrou ser um ponta notável: ambidestro, poderia jogar nos dois cantos do ataque. E em 1940, enfim, firmou-se, participando de 24 partidas. E voltando a marcar gols, nove, incluindo sobre os grandes Racing e Independiente.

O maior momento de Deambrossi no River: o 5-1 sobre o Boca em 1941, maior goleada millonaria no Superclásico. Marcou duas vezes

Mas foi preciso aguardar até 1941 para ser novamente campeão. La Máquina teria surgido nesse campeonato. Foi ao menos em 1941 que, por sugestão do quase aposentado Peucelle, o ponta-esquerda Pedernera foi deslocado para ser um falso 9 da época, um centroavante recuado e solidário que servia os colegas em vez de apenas ser servido. A mudança se provou certeira na segunda tentativa, em um 4-0 no Independiente. E permitiu que Deambrossi assumisse a ponta-esquerda. A primeira versão do ataque de La Máquina foi Muñoz, Moreno, Pedernera, Labruna e Deambrossi. E, embora com menos glamour que a mais famosa, foi essa a mais vitoriosa. Mas o início foi complicado.

O River terminou o primeiro turno a cinco pontos do San Lorenzo (quando a vitória valia dois pontos e não três). Deambrossi chegou a ser até suspenso pela diretoria, ao lado de Moreno e de Roberto D’Alessandro (centroavante titular até a mudança de Pedernera e sem parentesco com o ídolo do Internacional) por baixo rendimento em derrota por 2-1 para o Boca. Aquele 4-0 no Independiente, já no segundo turno, é que foi o ponto de virada.

Foram cinco vitórias seguidas, incluindo a maior goleada do River sobre o Boca. Um 5-1 onde só Muñoz não fez: Moreno, Pedernera e Labruna deixaram os deles, mas Deambrossi é quem acabou protagonista, marcando dois; e seria 5-0 se Mario Boyé não descontasse no penúltimo minutuo. Um troco coletivo e individual. Foram vinte jogos na campanha campeã. No ano seguinte, Loustau estreou profissionalmente, curiosamente nove dias após o 25º aniversário de Deambrossi. Talvez tenha influenciado para o próprio Deambrossi ser generoso com o novato, em tempos nos quais os reservas recebiam pagamento conforme fossem usados.

Assim ele contaria, bem-humorado: “La Máquina andava um fenômeno, mas entre os suplentes havia um tal de Loustau que não jogava nunca e que merecia uma chance. Um dia, disse a Peucelle [já aposentado e convertido em assistente técnico]: ‘ponha em um par de jogos esse garoto Loustau, assim ganha uns pesos [naqueles tempos, quem não jogasse não era remunerado]’. O pôs e não pôde tirar mais. Meu bom gesto foi equivalente a ver os partidos de fora. De todo modo, Félix não me fez ficar mal”. Mas o River já era reconhecido como La Máquina antes da mudança.

O River da reta final do vitorioso 1942, com Deambrossi no lugar de Muñoz na reta final

O apelido surgiu após um 6-2 no Chacarita que o apelido surgiu, em edição pubicada em 12 de junho de 1942 na El Gráfico – a estreia de Loustau foi no dia 28, na primeira vez em que o quinteto ofensivo mais famoso atuou junto. Mas foi a única vez daqueles cinco no torneio de 1942: Muñoz lesionou-se e Deambrossi foi deslocado à outra ponta. E não foi mal. Em 19 de julho, agora como ponta-direita, ele abriu o marcador em outra surra no Boca, por 4-0.

A volta olímpica viria diante do próprio rival, no returno, e na Bombonera. O ataque era Deambrossi, Moreno, Pedernera, Labruna e Loustau. O ponta ambidestro somou sete gols em 28 aparições, mais que os dois concorrentes: Loustau jogou onze (três gols) e Muñoz, vinte (cinco). Para o torneio de 1943, Deambrossi inicialmente recuperou seu lugar na ponta-esquerda, até a quarta rodada, mas jogaria ao todo 16 vezes (com quatro gols). O River perderia o campeonato por um ponto para o Boca, precisando contentar-se com o título do torneio de equipes B, no qual Deambrossi pôde manter-se ativo. Em 1944, o título argentino seria novamente perdido para o Boca, agora por dois pontos – e, novamente, o time B venceu o campeonato de sua categoria.

Os anos de 1943 e 1944, ironicamente, foram aqueles nos quais o quinteto clássico de La Máquina atuou junto mais vezes, seis em cada, o que permitia que Deambrossi volta e meia se “infiltrasse”. Algo que ficou cada vez mais raro, pois foram seis vezes (com três gols) no vice-campeonato e 1944 – novamente para o Boca, agora por dois pontos, embora outra vez o time B do Millo vencesse o campeonato de sua categoria. Em 1945, o River voltou a ser campeão da liga, mas já não havia La Máquina: Moreno fora vendido ainda em 1944 ao futebol mexicano, e o título ficou marcado por vitórias magras de um elenco apelidado exatamente de Los Caballeros de la Angustia.

Na reconquista em 1945, Loustau já estava intocável na ponta-esquerda, jogando 29 vezes. Restava a Deambrossi concorrer à outra ponta: foram dez jogos (e três gols) seus contra quatorze de Muñoz, que só marcou um a mais. E de fato era Deambrossi o ponta-direita titular no jogo do título, nos 2-0 sobre o Chacarita, formando o resto do ataque com Alberto Gallo (que por sua vez substituía um dos dois meias: Moreno ou Labruna), Pedernera, Labruna e Loustau.

Um River de 1943. Os cinco mais famosos de La Máquina já jogavam juntos, mas era algo raro. A linha ofensiva, agachada, é Deambrossi, Moreno, Pedernera, Gallo e Loustau

A formação famosa de La Máquina voltou a se reunir em 1946, com o regresso de Moreno do México, para mais cinco jogos do quinteto junto. E, assim como na maior parte do tempo em que pôde contar com o quinteto, o River ironicamente não foi campeão: o título ficou com um ataque talvez menos espetacular, mas mais eficiente, o Terceto de Oro do San Lorenzo (foram 90 gols azulgranas, mais do que qualquer ocasião com La Máquina clássica). Muñoz eventualmente perdeu a titularidade para Hugo Reyes, mas isso não significou espaço a Deambrossi, utilizado uma única vez na campanha de 1946 – uma derrota de 2-0 no Superclásico na Bombonera, na 25ª rodada. Seria sua última partida oficial pelo Millo.

O coringa não ficou para 1947: ele, Pedernera, o lateral-direito Eligio Corvalán e o goleiro José Soriano (um peruano de tamanha qualidade que foi sondado pela seleção argentina) rumaram ao Atlanta. O clube da comunidade judaica buscava formar um supertime, tirando do Racing um zagueiro campeão da Copa América de 1946 (León Strembel) e tendo ainda Bernardo Gandulla, famoso ex-vascaíno de grande passagem por Ferro Carril Oeste e Boca. Na pré-temporada, até o uruguaio Alcides Ghiggia (o próprio do Maracanazo) foi testado, mas dispensado. Mas tudo deu errado: no torneio, Deambrossi só jogou cinco vezes e o clube foi pela primeira vez rebaixado.

O estepe de La Máquina, como muitos ex-colegas, ainda rumou ao Eldorado Colombiano (após uma passagem pelo Sarmiento, que ainda jogava torneios regionais em Junín), virando jogador-treinador do Bucamaranga. Na nova função, Deambrossi ironicamente consagrou-se justo no Boca, novamente acompanhado de Pedernera, com quem convivia desde os juvenis do River – o colega era uma espécie de manager enquanto Deambrossi constava oficialmente nas súmulas como treinador xeneize. Assim, Deambrossi foi vice para o Santos de Pelé na Libertadores de 1963 e ganhou o campeonato de 1964 justo sobre o Millo, título que na época isolou os auriazuis como o clube mais vitorioso no campeonato argentino. O jogo do título foi justamente o Superclásico. O que faz de Deambrossi o único a dar voltas olímpicas em pleno confronto direto por ambos os lados da principal rivalidade argentina.

Mas a nova carreira não teve relevo por muito tempo. Ele reapareceria na elite argentina nos anos 70 sobretudo por clubes frágeis da cidade de Posadas, província das Misiones, normalmente sacos de pancadas no Torneio Nacional. Ainda assim, seu Guaraní Antonio Franco conseguiu em 1971 um 3-2 dentro do Gasómetro sobre um San Lorenzo no auge e um 1-1 com o Racing como resultados mais chamativos; em 1972, no rival Bartolomé Mitre, impôs um 2-1 em um Rosario Central também áureo, mas foi um vice-lanterna duramente goleado (7-1 em casa para o River, 5-0 para o Independiente…); e, em 1975, novamente pelo Mitre, foi tolerado até a 7ª rodada dos lanternas, goleados ali por 4-0 em casa para o Talleres treinado pelo velho parceiro Pedernera. O trabalho mais visível seguinte foi no All Boys, em 1979, também a última vez de Deambrossi na primeira divisão.

Ele, que jamais pôde defender a seleção em meio a uma geração dourada para além do próprio River, faleceu em 12 de setembro de 1995 (na sua Belén de Escobar natal), exatamente quatro meses após o parceiro Pedernera, morto em 12 de maio. Curiosamente, ele e seus dois concorrentes nas pontas de La Máquina foram os últimos remanescente vivos do ataque: Loustau faleceu em 2003 e Muñoz, em 2009.

No Atlanta de 1947, é o último à direita, com Pedernera ao centro e Ghiggia destacado à esquerda. A outra imagem é da época em que treinava o Boca

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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