EspeciaisPrimeira Divisão

Há dez anos, o Tigre voltava à elite. Foi após eliminar no mata-mata os dois principais rivais. E criar um terceiro

“No lado da torcida brasileira, um reforço. Torcedores do Chacarita Jrs engrossavam o coro tricolor. No intervalo da partida revezavam canções em espanhol e se arriscavam com alguns cantos em português. Tradicionais rivais do Tigre, fizeram questão de explicar aos ‘amigos que compartilham a paixão pelas mesmas três cores’, de quem se tratava o adversário desta final. Tudo numa visão muito parcial, é claro. Após o término do confronto o lado visitante permaneceu por mais de uma hora dentro da Bombonera esperando a total desconcentração do público ‘local’. Foi a deixa para mais intercâmbio de canções e camisetas. Os argentinos iam embora com a do São Paulo e os brasileiros vestindo camisetas do Chaca“.

Essas palavras são de trecho de nossa matéria do jogo de ida da final da Copa Sul-Americana de 2012, onde nos fizemos presentes em La Bombonera (clique aqui), estádio no qual o Tigre optou usar para a partida. A decisão continental foi o ápice de um ressurgimento do Matador, que disputara duas únicas temporadas na elite argentina entre 1959 e 2007 (em 1968 e em 1980) após ser um membro assíduo da primeira divisão desde sua estreia nela em 1913. Em 2008, já era vice-campeão da elite apenas nos critérios de desempate contra o Boca, mesmo vencendo-o na última partida. E ontem explicamos que, no mesmo 2012 da tumultuada final com o São Paulo, o Tigre já havia ficado nos quases no Clausura: quase campeão como também quase rebaixado.

Essa trajetória começou sob outro clima de tensão. Foi pelas finais das vagas extras de acesso da segunda divisão de 2006-07. O campeão foi o Olimpo. Uma das vagas na repescagem já havia ficado com o tradicional Huracán, que subiu em 24 de junho ao bater o Godoy Cruz. Mas o acesso mais chamativo talvez tenha sido o do Tigre. Afinal, teve o gostinho de eliminar o rival clássico e o rival moderno no mata-mata. A rivalidade com o Chacarita, descrita no primeiro parágrafo, é a moderna. Pois a clássica é com o Platense, com quem o Tigre trava o Clásico de la Zona Norte (veja), assim como o Chaca tem no Atlanta seu rival tradicional, no Clásico de Villa Crespo (saiba mais). E, como mostra a imagem que abre a matéria, a dupla inimiga dos rubroazuis foi “homenageada” na festa do acesso, com um caixão tricolor junto a um marrom com a sigla CAP (de Club Atlético Platense).

O noroeste de Buenos Aires e cidades limítrofes à área são marcados por rivalidades assim, que se interligam. O fenômeno é visível quando rivais clássicos passam tempo considerável sem se encontrar, pela diferença de divisões, preenchendo o vazio com quem esteja mais por perto. Dois terços do dérbi entre Atlanta e Chacarita ocorreram na primeira divisão, mas o Bohemio não frequenta a elite desde 1984 e acostumou-se até mesmo à terceira divisão. O Clásico de Villa Crespo chegou a ficar doze anos sem ocorrer, entre 1999 e 2011. Já a longeva ausência do Tigre na elite na segunda metade do século XX misturou-se com a incrível rotina de sobrevivência do Platense nela – mostramos aqui como o Tense se converteu no Fantasma del Descenso regularmente entre 1977 e 1999, escapando das formas mais malucas e dramáticas.

As fotos da esquerda são dos anos 90, quando o clássico do Tigre era contra o Chacarita. À direita, a volta dos clássicos tradicionais com o Platense nos anos 2000

Assim, desde os anos 80 o Platense desenvolveu rivalidade paralela com o Argentinos Jrs, cujo rival mais tradicional é o All Boys – nas rodadas reservadas aos clássicos na elite nos anos 70, era contra o Albo (que subira em 1973 para retomar um encontro realizado regularmente no amadorismo e entre os anos 30 e 50 na segundona) que os Bichos Colorados jogavam. Até voltar em 2010, os alvinegros do bairro da Floresta estavam longe da elite exatamente desde 1980. Mas vale ressaltar que, para estes, uma rivalidade ainda mais tradicional é sentida contra o Nueva Chicago. Que é mútua, a ponto desse duelo ser chamado de Clásico del Ascenso por tradicionalmente animar as divisões inferiores (falamos aqui). Mas o Chicago também se interligaria nessa história de sincronias…

Tanta dança de cadeiras foi sentida em cheio pela torcida do Tigre. Sua geração mais jovem passou a enxergar mais rivalidade com o Chacarita, o vizinho mais próximo para encontros mais frequentes. A antipatia foi recíproca, uma vez que mesmo entre 1984 e 1999 os encontros do Chaca com o Atlanta estavam irregulares. Mas o Clásico de la Zona Norte, não realizado entre 1980 e 2000, voltou com tudo: Tigre e Platense, rebaixados juntos à terceira divisão em 2003, disputaram o título de 2004-05.

Tanto o Apertura como o Clausura daquela terceirona foram faturados pelo Tigre, e em ambos o Platense foi o vice. O Apertura se definiu exatamente no dérbi, com outro fator especial: foi só o segundo triunfo do Matador sobre o Calamar na casa rival. E o primeiro desde 1917. O Platense chegou a perder por quatro anos seguidos como mandante entre 1972 e 1975, mas sempre no estádio do Atlanta, enquanto não inaugurava seu novo estádio na cidade de Vicente López. A data de 27 de novembro de 2004 virou então “o dia internacional do torcedor tigrense” exatamente por esses condimentos extras, após Carlos Luna (por sinal o artilheiro do Clausura 2012 e que semana passada tornou-se só o terceiro a chegar aos cem gols pelo Tigre) e Gonzalo Peralta assinalarem um 2-0.

Curiosamente, a outra vaga na segunda divisão foi definida em uma repescagem exatamente entre Platense, vice da terceirona, e Chacarita, um dos últimos da segundona. Se a torcida do Tigre não queria que ninguém vencesse, deu certo: os dois jogos ficaram no 1-1, e como o Chaca tinha a vantagem do empate por ser de divisão superior, levou. A resposta do Tense foi imediata, ganhando a terceira divisão da temporada seguinte. Assim, o clássico nortista voltaria para a segunda divisão na temporada 2006-07. De novo, com tudo. A dupla disputou acirradamente o Apertura.

Fotos dos clássicos nos mata-matas do Torneo Reducido de 2006-07

Mas no Apertura deu Olimpo, que somou 40 pontos. O Platense foi o vice, com 38, e o Tigre foi o terceiro, com 35. Diferença oriunda justamente do dérbi: mesmo fora de casa, o Tense riu primeiro. Sapecou um 3-0, gols de Charles Pérez e dois de Mauricio Ferradas. O “infiltrado” Chacarita também esteve no páreo, ficando por pouco de fora do pódio, com 33 pontos. Contra o rival moderno, o Tigre também não aproveitou o fator casa no Apertura, não saindo do 0-0. No Clausura, o Matador, fora de casa, foi melhor nos dois clássicos: arrancou um 0-0 com o Tense e 1-0 sobre o Chaca, partida que rendeu briga de torcidas com 40 detidos.

O Clausura também foi ganho pelo Olimpo, que assim subiu diretamente. Dessa vez, o Huracán foi o vice e o Defensa y Justicia ficou em terceiro. Mas o que contou para definir-se as outras três possíveis vagas de acesso foi a tabela geral da temporada. Nela, San Martín de San Juan e Huracán ficaram atrás do Olimpo e assim travaram uma final pela segunda vaga direta. Deu San Martín, que aplicou em casa um 3-1 após ser derrotado por 1-0 em Buenos Aires. O Huracán então entrou direto na repescagem com um dos piores da elite, o Godoy Cruz, ganhando ambos os jogos (2-0 na capital e 3-2 em Mendoza) e voltando à elite após quatro anos.

A última vaga viria de forma intrincada. Os quatro melhores times abaixo dos três primeiros da tabela agregada jogariam eliminatórias em um Torneo Reducido, cujo vencedor iria à repescagem contra outro dos piores da elite, o Nueva Chicago. Os tais quatro foram, pela ordem, Atlético de Rafaela, Tigre, Chacarita e Platense. O primeiro deles pegaria o último, e o segundo, o terceiro. Assim, o Platense inicialmente encarou o Rafaela e soube reverter: ganhou de 1-0 em casa e segurou o 2-2 fora. Já Chacarita e Tigre travaram seu clássico moderno. O Chaca começou vencedor com um 3-2 em casa. O funebrero Cristian Alfaro se insinuou na defesa rubroazul e abriu o placar aos 17 minutos. Diego Castaño foi expulso ainda aos 35 ao deixar forte o pé em uma dividida. Matías Alustiza ampliou aos 2 do segundo tempo ao ficar livre pela esquerda.

Outros dois minutos depois, Leandro Lázzaro foi lançado em posição legal e diminuiu com um toque sutil na saída do goleiro. Uma bomba da canhota de Alustiza em rebote de um lançamento ampliou para os tricolores, aos 19. O Tigre ficou com dois jogadores a menos aos 27, quando Alexis Ferrero (que iria ao Botafogo em 2008) foi expulso por uma cotovelada. Mas uma conclusão carateca do reserva Juan Pablo Pereyra arrancou um desconto heroico a cinco minutos do fim. Por ter feito melhor campanha, qualquer triunfo em Victoria bastava ao Tigre, mesmo um 4-3. A volta não teve um jogo tão bom, e mais no coração do que na técnica o Tigre venceu por 1-0, em chuveirinho aos 39 do segundo tempo que fez o adversário Iníguez marcar contra. A bola ainda bateu na trave antes de entrar. Assim, o velho Clásico de la Zona Norte foi a final do Reducido.

Cenas de futebol e de barbárie entre Tigre e Nueva Chicago em 25 de junho de 2007. Começava, da forma mais triste, uma rivalidade nova

O Tense outra vez ficou invicto em casa, mas em um 0-0 perigoso e entediante dos dois lados. No jogo da volta, o Matador demorou, mas levou a melhor: 2-0, dois gols depois dos 35 do segundo tempo, de Pereyra emendando forte cruzamento rasteiro de Wilchez e de Fontanello aproveitando rebote de uma falta. Entre um gol e outro, o calamar Casado foi expulso, praticamente enterrando o mais perto que o Platense esteve para voltar à elite desde a queda em 1999. Sem perder tempo buscando saber com qual as rixas estavam mais afloradas, a segurança pública preferiu banir torcida visitante tanto no mata-mata entre Tigre e Chacarita como no entre Tigre e Platense, após isso ter sido permitido nos clássicos da temporada regular e no mata-mata entre Platense e Rafaela.

E foi quando a situação parecia tranquila, admitindo-se torcidas visitantes entre Tigre x Chicago, que ocorreu a tragédia que ofuscou o acesso. Em 21 de junho de 2007, o Tigre bateu em casa por 1-0 o Chicago (golaço de bicicleta de Lazzaro), um placar nada definitivo para o jogo de volta no bairro de Mataderos, no dia 25. Mas o Matador se superou. Castaño, aos 34 do primeiro tempo, usou a canhota para emendar um tiro livre contra as redes do veteraníssimo Carlos Navarro Montoya, fuzilado aos 4 do segundo após Galmarini ficar cara-a-cara contra o goleirão: 2-0. Os verdinegros precisavam virar e diminuíram rápido, aos 10 do segundo, gol de Federico Higuaín (irmão de Gonzalo).

Deveríamos enaltecer a escalação titular Daniel Islas (irmão de Luis Islas, que foi tanto o titular da seleção na Copa de 1994 como também ironicamente um goleiro que defendeu todo o trio Chacarita, Platense e Tigre…), Fernando Stang, Alexis Ferrero, Juan Carlos Blengio, Martín Galmarini, Diego Castaño, Román Martínez, Nicolás Torres, Lucas Wilchez, Juan Pablo Pereyra e Leando Lázzaro, treinados por Diego Cagna. Especialmente Martínez, titular remanescente no bom ano de 2012, ou Pereyra, que em breve chegaria à seleção. Mas à altura dos 49 minutos do segundo tempo, o jogo seguia no 2-1, uma situação que já parecia irreversível aos donos da casa. Que não toleraram o apito de um pênalti que Navarro Montoya cometera no reserva Martín Morel. Na briga generalizada que se seguiu, o torcedor tigrense Marcelo Cejas acabou assassinado.

Somente em 1º de julho o Tigre pôde realizar uma festa para a própria torcida, com o filho de Cejas comparecendo vestindo a camisa ensanguentada retirada do corpo do pai e recebendo um manto autografado por todo o elenco no momento mais emotivo da ocasião. A tragédia fez com que torcidas visitantes só fossem readmitidas na segunda divisão a partir da temporada 2011-12, uma vez que ela recebeu o popularíssimo River Plate. Já o Tigre iniciava sua terceira grande rivalidade. Que motivou ao fim do ano passado que alguns barrabravas, no caminho de jogo contra o Lanús, descessem do ônibus em Mataderos para surrarem alguns torcedores do Chicago vistos em um churrasco, roubarem alguns dos petiscos e postarem nas redes sociais fotos consumindo-os.

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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