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Mario Boyé, “El Atómico”: conheça a versão argentina de Rivellino

“Eu te darei, te darei menina bonita, te darei uma coisa, uma coisa que começa com B”. Em vez de “beijo”, a canção se encerrava com um uníssono “Boyé!!” (pronunciado em mistura de “Bodjê” com “Bochê” no sotaque portenho). Assim era saudado Mario Emilio Heriberto Boyé. Diferentemente de Rivellino, ele mal sabia driblar, mas suas bombas nos anos 40 renderam-lhe o apelido de El Atómico, palavra repentinamente em voga na época em função de Hiroshima e Nagasaki. A comparação com o autor do elástico e da “patada atômica” também fica mais verossímil não só pelo bigode, mas pela posição. Embora Boyé fosse destro e Riva, canhoto, se consagraram na ponta, onde o brasileiro foi improvisado com sucesso na Copa de 1970 em meio a tantos camisas 10. Se jogar na ponta sugere mais assistências que gols, Boyé, nascido há 95 anos, rompeu com essa regra. 

Mas não foi tão fácil se firmar. Boyé apareceu no time adulto do Boca em 1941, vindo dos juvenis. O contexto era este: entre 1930 e 1935, o clube foi três vezes campeão argentino, deixando a torcida mal acostumada para um pequeno jejum que durou até 1940. Foi o ano da inauguração da Bombonera. Era em meio a um time campeão e festejado que ele precisou buscar lugar. Mesmo assim, atuou em 18 jogos do campeonato de 1941, a maioria como titular, com direito a dois gols nos três primeiros jogos. Mas era justamente o ataque o problema de um time que já não foi tão bem no ano seguinte. O River foi campeão, no ano em que formou La Máquina. Foi de Boyé o gol de honra do Boca no 5-1 (estava 5-0) para o arquirrival naquele campeonato, até hoje a maior goleada sofrida oficialmente para os millonarios. Em 1942, ainda havia irregularidade e Boyé chegou a ser vaiado.

Ele jogou só onze partidas do campeonato de 1942, com apenas dois gols – o dia da exceção que confirmou a regra para aquele ano foi o do 6-0 no Racing, onde deixou o seu. La Máquina do River foi novamente campeã. Foi o ano em que o ataque rival usou pela primeira vez sua linha ofensiva mais famosa: Juan Carlos Muñoz, José Manuel Moreno, Adolfo Pedernera, Ángel Labruna e Félix Loustau. Aquele quinteto atuou junto uma única vez em 1942, mas se reuniu mais vezes em 1943 e em 1944. Os desmistificamos há algumas semanas, pois a ironia é que não foram campeão nestes anos. Foi o Boca. Foram anos intensos na rivalidade, que, se ainda era chamada de Clásico de La Boca ou Clásico Boquense nos anos 30 (pois o River também surgira no bairro de La Boca), como um entre tantos dérbis de bairro em Buenos Aires, agora começava a virar o Superclásico.

Os anos de 1943 e 1944 foram justamente os primeiros em que Boca e River disputaram o título argentino até a última rodada. Boyé agora destacou-se desde o início, literalmente: na estreia, Boca 3-1 fora de casa no Racing com dois gols daquele ponta-direita. Ele chegou a ficar um mês parado após lesionar-se contra o Estudiantes pela sexta rodada, mas foi fundamental na reta final. Em setembro, deixou o dele em um 10-1 no Chacarita, uma das maiores goleadas da história xeneize. Mas a grande partida veio mesmo na penúltima rodada. O Boca receberia o lanterna Gimnasia LP, que surpreendeu inicialmente ao marcar duas vezes antes dos dez minutos. Mas, aos 31, a partida já estava empatada, graças a dois gols de Boyé. O Boca terminou vencendo um jogo emocionante por 4-3 (o gol da vitória veio faltando cinco minutos).

Além do canhão no pé direito, Boyé tinha um míssil na cabeça, outra fonte de seus gols. À direita, com o concunhado e sócio Pontoni, do San Lorenzo: a pizzaria deles ainda existe 

A partida decretou o primeiro rebaixamento do Gimnasia, mas, sobretudo, conservou a vantagem de um ponto para a rodada final. Nela, bateu fora de casa o Ferro Carril Oeste, sagrando-se campeão após 23 jogos seguidamente invicto. Que virariam 26 com as rodadas iniciais do campeonato seguinte. Foi um recorde nacional que duraria por mais de vinte anos, até os 39 emendados pelo Racing campeão de tudo entre 1966-67. Quando a derrota veio, o Boca tratou logo de construir outra série considerável, com 17 novos jogos seguidamente invictos em 1944, tudo em meio a uma notável e dourada geração do futebol argentino ocultada pela faltas de Copas do Mundo na época. La Bombonera era uma fortaleza e não viu derrotas do time da casa em 1944. Mas a hostilidade às vezes passava do ponto e o clube precisou festejar como mandante em outro lugar na última rodada.

O Boca alugou justamente o Monumental de Núñez (o River jogaria em Rosario) para lá golear por 3-0 o Racing. Festejou na casa rival o bicampeonato sobre La Máquina, agora atrás por dois pontos. Boyé ainda não era o artilheiro que se revelaria, mas os títulos o projetaram à seleção. Semanas após ser bicampeão, estreou pela Albiceleste em 31 de janeiro de 1945, na Copa América. Mesmo concorrendo na ocasião com Juan Carlos Muñoz, o notável ponta-direita de La Máquina, participou de quatro jogos do torneio em 1945 e deixou um gol, no massacre de 9-1 na Colômbia. Os anos de 1946 e de 1947 também teriam Copas América e a Argentina ganhou todas, um tri seguido não alcançado por mais nenhuma seleção na competição. Mas, mesmo que ocorrido em anos seguidos, só cinco jogadores estiveram em todo o tri, o que realça quão boa era aquela geração. Boyé foi um desses cinco.

Ainda em 1945, Boca e River voltaram a disputar, pelo terceiro ano seguido, o título argentino. Foi o ano em que as bombas caíram no Japão e que Boyé mostrou-se um ponta de muitos gols: terminou o campeonato como artilheiro do elenco auriazul, com 19. Três deles, em um 5-3 no Newell’s. Outros dois, em um 4-1 no River na antepenúltima rodada, resultado que manteve as esperanças xeneizes para um tricampeonato – seria o primeiro tri do profissionalismo argentino. Mas deu tudo errado na rodada seguinte: o Boca perdeu fora para o Rosario Central (2-0), jogo em que Boyé foi expulso. O River venceu o seu jogo e foi campeão por antecipação. Boyé seguiu na seleção. Já no fim de 1945, em 16 de dezembro, marcou em um 4-3 no Brasil no Pacaembu pela Copa Roca, mas os tupiniquins levariam o troféu após vencer os dois jogos seguintes, incluindo um 6-2.

Semanas depois, começou nova Copa América. Dessa vez, o boquense só esteve no 2-0 sobre o Paraguai; o técnico Guillermo Stábile preferiu improvisar na ponta-direita Vicente de la Mata, que era meia no Independiente. O título deu razão ao treinador, apesar da expulsão de De la Mata no jogo final contra o Brasil. A resposta de Boyé foi ser artilheiro do campeonato argentino de 1946. Foi a primeira vez em que um ponta conseguiu a artilharia do Argentinão. Agora Boyé sabia se desmarcar bem e estava com a bomba no pé direito e o míssil nos cabeceios (também potentes) bem preparados. Sua característica era cortar com pique em diagonal para disparar, mais ou menos como consagrado modernamente pelo holandês Arjen Robben. Também invertia posições com o centroavante Jaime Sarlanga para aproveitar as bolas aéreas do lateral Carlos Sosa. 

Na seleção, foi um dos cinco presentes em todo o tri argentino na Copa América: recorde

Em 1946, Boyé primou mais pela regularidade de gols (foram 24 em 30 rodadas) do que pela quantidade em uma mesma partida. Só marcou mais de uma vez em cinco delas: dois em um 5-2 no Chacarita, no 2-1 no Newell’s, no 3-0 no Estudiantes, no 3-2 fora de casa no Huracán (do jovem Alfredo Di Stéfano) e três no 5-3 no Tigre, a despeito de nessa partida ser expulso aos 21 minutos do segundo tempo! Essa partida, pela 19ª rodada, ainda pôs o Boca na liderança, mas ao fim o clube ficaria no vice a quatro pontos do San Lorenzo. O Boca voltou a disputar o título em 1947 no embalo dos gols do seu ponta-artilheiro, que somou 18 gols, ficando em quarto na artilharia, mas não pôde com a eficiência maior do River do artilheiro-revelação Di Stéfano, que deixou o Boca de vice ainda na penúltima rodada. A Copa América dessa vez ocorreu em dezembro, semanas depois.

Dessa vez, Boyé foi titular e manteve a fase artilheira. Jogou nas sete partidas e marcou quatro vezes, em especial os dois no 7-0 na Bolívia. O ano de 1948 parecia promissor e Boyé não deixou de se destacar. Como na terceira rodada, em que fez três em um 7-2 no Gimnasia. Ou em amistoso em São Januário contra o Expresso da Vitória do Vasco recém-campeão sul-americano, mas que com 21 minutos de jogo já perdia de 3-1, com dois do Atómico – terminaria Boca 5-3. Só que 1948 terminou sendo o ano da longa greve de jogadores que, não atendida, inspirou muitos astros a buscarem o exílio no Eldorado Colombiano. Os dirigentes não cederam a escalaram juvenis para os jogos finais, enquanto as estrelas, vestindo a camisa de seus clubes, jogavam no interior amistosos extra-oficiais que geravam públicos maiores. Como o 4-3 sobre o San Lorenzo em Lavallol, com gol de Boyé.

Ele ainda chegou a jogar o início do campeonato de 1949, mas foi vendido ao Genoa. Sem ele, o clube agora brigou até a última rodada. Mas para não ser rebaixado. Já o astro brilhou no calcio em 1949. Pois, por razões familiares, saiu da Europa no início de 1950. Boyé realizou só 18 partidas da temporada italiana de 1949-50, mas com doze gols pelo Genoa. Inicialmente, ele foi ao Millonarios do Eldorado Colombiano, refúgio de muitos argentinos grevistas, como Di Stéfano. Jogou alguns amistosos, mas logo voltou à Argentina, contratado pelo campeão de 1949, o Racing. Já era ídolo na Academia antes de chegar e assim se manteve. Os primeiros gols vieram na quarta rodada, com dois em um 4-3 fora de casa sobre o Vélez. Um dos gols de Boyé na campanha foi seu único no Clásico de Avellaneda, em vitória fora de casa por 4-2 no Independiente. De tão arrasadora, a campanha terminou em título ainda na antepenúltima rodada, mesmo com derrota de 3-0 para o Banfield.

Assim, em maio de 1951 El Atómico voltou à seleção (foi o primeiro a defendê-la por Boca e Racing), que visitaria Wembley pela primeira vez. O contexto da época era este: a Inglaterra desqualificava as Copas do Mundo e considerava-se por direito a melhor seleção do mundo, algo que reiteradamente “confirmava” ao convidar quem despontasse para ser surrado em Londres. A arrogância dos súditos da Rainha só viria a arrefecer com a famosa goleada sofrida pela mágica Hungria em 1953. Os magiares tornaram-se a primeira seleção não britânica a bater o English Team na casa dele. Um ineditismo que quase coube aos hermanos. Pois Boyé abriu o placar aos 18 minutos, ainda que o destaque visitante tenha sido o goleiro Miguel Rugilo, que passou a ser bombardeado pela honra inglesa.

O gol do tricampeonato racinguista em 1951. À direita, Boyé no seu outro clube argentino, o Huracán: responsável pela maior média de público da equipe

A atuação de Rugilo lhe renderia para sempre o apelido de León de Wembley, mas os ingleses conseguiriam virar com dois gols nos últimos onze minutos, de Jackie Milburn e Stan Mortensen. Uma derrota honrosa naquelas circunstâncias. Foi a única vez em que Boyé marcou e a Argentina não venceu, e também o último de seus sete gols em 17 jogos por seu país. Ainda em maio, Boyé esteve na vitória de 1-0 sobre a Irlanda em Dublin. No regresso à Argentina, seu Racing conseguiu o primeiro tricampeonato do profissionalismo. Não sem uma disputa ferrenha com aquele forte Banfield. O Taladro forçou jogos-desempate após ambos terminarem o campeonato na liderança.

O Racing havia acabado de inaugurar seu novo estádio, batizando-lhe de Juan Domingo Perón em honra ao presidente que ajudara o clube nisso, mas a primeira-dama Evita manifestou preferência para que os banfileños, por serem uma equipe pequena, ganhassem – o que gerou relatos de tentativa de suborno. Mas Boyé, agora um ponta “verdadeiro”, pois só havia feito três gols no campeonato, se eternizou. Fez o único da finalíssima, em bomba de fora de área no ângulo alviverde. Voltou a marcar mais vezes em 1952, com onze gols, mas o tetracampeonato (ainda inédito no profissionalismo) escapou por um ponto para o River. El Atómico, em dezembro, despediu-se da seleção (1-0 sobre a Espanha em Madrid). Terminou sua passagem em Avellaneda com sete gols nas doze primeiras rodadas de 1953. Com passe livre, acertou com o Huracán para 1954.

O clube do bairro de Parque de los Patricios também teve o mitológico Pedernera, gerando até hoje a maior média de público de sua história, com 16.423 pessoas por partida (não alcançados nem pela equipe celebrada de 1973…), ainda que em campanha sofrível. Se em 1953 o Globo havia feito 21 dos 26 pontos em casa, em 1954 foram só cinco vitórias em toda a campanha, com alguma briga para não cair. Assim, os sete gols de Boyé não o tornaram um ídolo quemero, mas foram importantes e ele assim acertou uma volta ao Boca, que em 1954 foi campeão após dez anos de jejum. O time começou com tudo, mas fraquejou em meados do torneio e terminou a oito pontos de um River campeão, quando as vitórias ainda valiam 2 pontos e não 3. Faixa que Boyé carimbaria em amistoso de fim de ano.

O Boca bateu o rival por 5-2, com quatro gols do velho ídolo, que pendurou as chuteiras nos amistosos de pré-temporada de 1956. Ele ainda voltaria como manager em 1960, sem sucesso. A vida após a carreira se dedicaria às massas. Com o concunhado René Pontoni, outro daqueles cinco presentes em todo o tri argentino na Copa América de 1945-46-47, Boyé abriu a pizzaria La Guitarrita. O negócio ainda se mantém hoje, mesmo já sem os sócios originais – ídolo do Papa Francisco, Pontoni faleceria em 1983 e Boyé não driblou a morte em 22 de julho de 1992, a cerca de uma semana do seu 70º aniversário, em 30 de julho. Visitamos La Guitarrita em fevereiro e contamos aqui. Uma das opções, obviamente escolhida por nós, chama-se La Atómica.

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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