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60 anos de Nery Pumpido, o goleiro titular da Copa de 1986

Quem só acompanhou Nery Alberto Pumpido na Copa de 1990 pode vê-lo como um azarado. Na estreia, o aniversariante de ontem foi o vilão da Argentina, com falha grotesca no gol da surpreendente derrota para os desconhecidos camaroneses. E na segunda partida, foi fraturado pelo companheiro Julio Olarticoechea, precisando se retirar do mundial – e da seleção (foi assim que Sergio Goycochea assumiu as metas hermanas). Antes disso, já havia perdido um dedo em acidente grotesco envolvendo seu anel de casamento e as redes que protegia. Vale deixar essa impressão de lado: além de campeão da Copa anterior, Pumpido está no raro grupo dos sete homens que venceram a Libertadores como jogador e técnico. No caso dele, logo na primeira tentativa nas duas funções!

Mas o primeiro feito de Pumpido foi ser vice-campeão argentino, em 1979. Nascido em Barrancas porque não havia clínica no seu povoado de Monje, às margens do Rio Paraná no interior da província de Santa Fe, Pumpido chegara dez anos antes, em 1969, aos juvenis de um dos principais clubes provinciais, o Unión (da capital também chamada Santa Fe). A princípio, não para evitar gols: “gostava de jogar avançado, não tinha vocação para goleiro, mas um dia me colocaram e com peguei carinho com o tempo”. Ele chegou mesmo a desistir aos 15 anos, mas foi demovido pelo pai. Após sete anos nas inferiores, estreou no time adulto na primeira rodada do Torneio Nacional de 1976, em derrota de 2-1 fora de casa para o Rosario Central. Mas não teve protagonismo instantâneo.

Pumpido alternou-se com goleiros experientes (Agustín Irusta, quatro vezes campeão no San Lorenzo, e Carlos Biasutto, duas no Rosario Central) até enfim se firmar, cerca de duas temporadas depois. Começou a ter mais oportunidades sobretudo a partir do Metropolitano de 1978. Firmou-se na titularidade justamente nas primeiras rodadas do Torneio Nacional de 1979, tão inesquecível à torcida do Tatengue. Foi o mais perto que uma equipe da cidade de Santa Fe conseguiu até hoje do título argentino. E quase Pumpido não chega lá: havia sido vendido ao Instituto de Córdoba, mas forçou sua permanência, mesmo que custasse alguns treinos em separado do grupo.

Na campanha, o Unión conseguiu a segunda vaga em grupo equilibradíssimo, levando nos critérios de desempate contra Ferro Carril Oeste e San Martín de Tucumán e com dois pontos a mais que o Independiente. O primeiro mata-mata foi quartas-de-final contra o Talleres, uma das bases da Argentina campeã mundial no ano anterior. Serviço que parecia feito em casa: 3-0 em La T, que, porém, conseguiu um perigoso 2-0 para si em Córdoba. Pumpido foi fundamental, pegando até pênalti de Luis Antonio Ludueña para classificar o Tate às semis. Nelas, voltou a Tucumán para encarar o Atlético. Não sofreu gols, o Unión venceu por 2-0 ambos os jogos e estava na final.

Pela frente, o poderoso River, a principal base da seleção de 1978 e que naquele 1979 já havia vencido o Torneio Metropolitano. Os millonarios levariam o título só pelo gol fora de casa após dois empates. Em Santa Fe, o time da casa vencia até os dois minutos finais, quando Norberto Alonso empatou o placar aberto por Oscar Mazzoni. No Monumental, uma final histórica, entre os dois goleiros titulares dos títulos mundiais argentinos: no duelo Ubaldo Fillol x Pumpido, ambos se igualaram, sem gols. Pior para os visitantes, que adiante ficaram sem Libertadores.

Até hoje, nenhum time da cidade de Santa Fe foi campeão argentino. O Unión conseguiu um vice em 1979

Como o River havia vencido os dois torneios de 1979, a outra vaga para La Copa em 1980 foi disputada entre seus vices. O Vélez, vice do Metropolitano e que havia sido o líder do grupo do Unión no Nacional, segurou o 0-0 em Santa Fe e aplicou um 3-0 no bairro de Liniers… mas já ali abriu o olho no goleiro adversário. Em 1980, ainda no Unión, Pumpido recebeu sua primeira convocação à seleção; a estreia, ainda que não-oficialmente, foi em 4-1 sobre a própria seleção santafesina, em 18 de junho de 1981. Terminaria convocado como terceiro goleiro para a Copa do Mundo de 1982, atuando uma segunda vez já em 6 de junho de 1982, também não-oficial: 15-0 (!) no clube Villajoyosa. Na época do mundial, havia já acertado sua transferência ao Vélez. No tempo em que foi titular do Unión, o clube só perdeu um Clásico Santafesino: em nove duelos, foram seis vitórias e dois empates contra o Colón, rebaixado em 1981.

Já a estreia no Vélez deu-se após a Copa do Mundo. O Fortín foi quinto do Metropolitano de 1982 e avançou às oitavas de final do Nacional de 1983, quando caiu pelo placar mínimo para o River. Que foi o clube seguinte a abrir o olho para aquele talento, sobretudo após repassar Fillol ao Argentinos Jrs em meados de 1983. Para repor o ídolo, o River contratou Pumpido (que, em 15 de julho daquele ano, enfim fizera seu primeiro jogo oficial pela seleção, embora derrotado por 1-0 pelo Paraguai no troféu binacional Rosa Chevallier) e o experiente Carlos Gay – goleiro titular do Independiente campeão da Libertadores de 1974, onde até pênalti contra o São Paulo pegou. Mas foi o mais jovem quem levou a melhor na titularidade… e, para repor Pumpido, o Vélez promoveu o então juvenil Carlos Navarro Montoya.

O River vinha em situação financeira complicada. Em 1981, para responder à contratação de Maradona pelo Boca, buscou o empréstimo de Mario Kempes, em dólares, moeda que repentinamente teve alta de 240% em função dos desmandos econômicos da ditadura – algo piorado em função das Malvinas. A outrora poderosa equipe de Núñez só não foi rebaixada em 1983 em função dos polêmicos promedios, instalados exatamente naquele campeonato. Fillol forçara sua saída exatamente como líder de uma greve interna em função de salários atrasados. Foi esse o contexto que Pumpido pegou. Os resultados deram um salto: no Torneio Nacional de 1984, o clube foi vice. Mas um vice não é o bastante para um clube do porte do River, especialmente naquela ocasião, em que levou de 3-0 em casa, com meia hora de jogo, para o nanico Ferro Carril Oeste. Foi necessário esperar mais dois anos, mas valeria a pena.

Em 1986, o River conseguiu em altíssimo estilo a primeira tríplice coroa do futebol argentino. Foi arrasador no campeonato doméstico, faturado com rodadas e rodadas de antecedência. Vencendo ambos os jogos finais, ganhou sua primeira Libertadores. Adiante, o único título mundial do clube somou-se ao título mundial com a seleção. Lembramos aqui sobre o ano mais mágico de Núñez. Já na Copa, Pumpido foi o preferido do técnico Carlos Bilardo ao invés dos queridinhos do público e da mídia: o veterano Hugo Gatti, que deveria ter sido o titular em 1978 (uma lesão o tiraria da Copa), seguia protagonista de um Boca em situação econômica ainda pior que a do rival. E Fillol havia sido o titular nas eliminatórias, bem como vice da Recopa Europeia pelo Atlético de Madrid.

Bilardo preferiu aquele goleiro que, embora tivesse problemas de agilidade e de voo para cortar cruzamentos, era seguro e sóbrio entre as traves, além de um bom chute capaz de habilitar contra-ataques. No México, Pumpido levou frango quando podia: na estreia, contra a Coreia do Sul, ao posicionar-se muito adiantado e ser encoberto aos 32 do segundo tempo, quando a Argentina já vencia por 3-0. Ele comprometeu uma única outra vez, ao escorregar aos 11 minutos de jogo contra a Inglaterra, mas Peter Beardsley não aproveitou. Os demais gols sofridos deveram-se mais aos méritos adversários. Das defesas, destaque à bem colocada que impediu o sucesso de um bombardeio de Venancio Ramos no fim do primeiro tempo contra o Uruguai, com o clássico platino nas oitavas-de-final ainda em 0-0 – ele declararia que foi após esse jogo que teve certeza de ser campeão.

Em 1990, apesar da foto, mal falava com Luis Islas, que pediu para sair, revoltado com a reserva. Mas Pumpido não demorou muito, fraturado nesse choque com Julio Olarticoechea contra a URSS

Em paralelo, naqueles meses felizes do River, o clube podia gabar-se de fornecer os dois goleiros da seleção: Goycochea estreou pela Argentina em 1987, sendo reserva de Pumpido nas duas equipes. Foi em 1987 que o titular precisou amputar o dedo anelar esquerdo, após o anel enroscar-se com as redes em um treino no clube. Recuperado, Pumpido não só seguiu dono da posição no clube (a ponto, inclusive, de ter um recorde geral de invencibilidade no Superclásico: desconsiderando-se amistosos, não perdeu nenhum dos oito que disputou, cifra não alcançada por mais ninguém seja no Boca ou no River, com cinco vitórias e três empates) e na seleção – como conseguiu, já com 31 anos, partir para o futebol europeu, contratado pelo Real Betis enquanto o rival Sevilla trazia outra estrela, Rinat Dasayev. Não foi tão auspicioso na temporada de estreia, com o rebaixamento. Mesmo assim, manteve-se titular da Albiceleste.

Ele e o Betis conseguiram o imediato acesso à elite como vices da segundona espanhola de 1989-90. E, como seguia dono da camisa 1, Pumpido involuntariamente provocou a saída de Luis Islas, que pediu para ir embora às vésperas da Copa do Mundo, revoltado pela falta de oportunidades. Liberado pelo Betis após a fratura na Copa, Pumpido acertou um retorno ao Unión. Os tempos já eram outros no Tatengue e ele não evitou o rebaixamento ao fim da temporada 1991-92. O goleirão ainda reforçou em 1993 um Lanús turbinado com ex-jogadores da seleção, o que incluía os irmãos Carlos e Héctor Enrique, ambos ex-River (Héctor também venceu a Copa de 1986), e Néstor Fabbri, mas terminou não defendendo os grenás; seus últimos jogos terminaram sendo pelo Unión mesmo, em 1992.

Após pendurar as luvas, Pumpido cometeu uma pequena heresia: trabalhou no Boca, como auxiliar técnico do mentor Bilardo, treinador do clube em 1996 (“ninguém me dava trabalho. E Bilardo me chamou, não o Boca”, justificaria). Inclusive, manteve sua incrível invencibilidade particular no Superclásico, dessa vez à beira do campo: o nono duelo Boca x River sem perder veio na famosa noite em que Caniggia fez três gols e beijou Maradona em um 4-1 em julho e o décimo veio em setembro, nos 3-2 marcados pelo “nucazo de Guerra”. Sem repetir o sucesso no quesito troféus, a virada de casaca durou pouco e ele se voltaria mais ao Unión para fazer um pocuo de tudo: técnico entre 1999-2001, em sua primeira experiência na função; manager na de 2009-10; e novamente técnico em 2012-13, sem os mesmos êxitos dos anos 70.

O sucesso solitário na nova função, onde é mais motivador do que tático, veio às margens do Rio Paraguai mesmo. Contratado em 2001 pelo Olimpia, se tornou o primeiro técnico argentino a vencer a Libertadores por uma equipe estrangeira. Foi já na de 2002, na última Libertadores do clube e do futebol paraguaio – e fora de casa, após reviravolta nas finais contra o forte São Caetano da época. Uma justiça poética contra um clube de prefeitura após eliminar o Flamengo na primeira fase, o Grêmio no Olímpico na semifinal e, sobretudo, o Boca nas quartas, na única vez entre 2000 e 2004 em que os xeneizes não chegaram à decisão. “Nesse ano, fui eleito o segundo melhor técnico da América Latina. Muitos poucos conseguiram. Se não fosse em 2002, justo quando o Brasil foi campeão do mundo e Scolari varreu com todos os prêmios, com certeza terminava em primeiro”, declararia.

No Japão, os alvinegros, campeões da Libertadores em pleno ano de seu centenário (e um dia depois do aniversário de 45 anos de Pumpido!), ainda sofreram um 2-0 honroso de um já galáctico Real Madrid, que só fez o segundo gol já aos 39 minutos do segundo tempo. Pumpido foi o sexto a ganhar a Libertadores como jogador e técnico, quase todos argentinos: sucedeu Humberto Maschio (Racing 1967; Independiente 1973!), Roberto Ferreiro (Independiente 1964-65; Independiente 1974), o uruguaio Luis Cubilla (Peñarol 1960-61 e Nacional 1971; Olimpia 1979 e 1990), o uruguaio Juan Mujica (Nacional 1971; Nacional 1980) e José Omar Pastoriza (Independiente 1972; Independiente 1984) e antecedeu Marcelo Gallardo (River 1996; River 2015).

Atualizações após essa matéria: ainda em 2017, Renato Gaúcho tornou-se o mais recente campeão de Libertadores como jogador (1983) e técnico, sempre pelo Grêmio. E em 2018 foi a vez de Gallardo conseguir uma segunda Libertadores como treinador, novamente com seu River

Festejando o Mundial do River em 1986. E no Olimpia campeão da Libertadores 2002 (a foto é após a eliminação do Boca)

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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