Primeira Divisão

70 anos de Osvaldo Ardiles, campeão da Copa 1978 e quem abriu o futebol inglês aos argentinos

Originalmente publicado nos 65 anos, em 2017, revisto, atualizado e ampliado

Ser campeão mundial titular com a imprensa no pé não chega a ser incomum no Brasil (Félix, Dunga, Zinho, Lúcio, Roque Júnior…). Em 1978, isso se passou com boa parte dos comandados de César Menotti, que, a despeito de usar quatro titulares do River, apostou como nenhum outro técnico em jogadores dos confins do país, em uma geração dourada do interior argentino. Contra um único representante cada de Boca, Independiente e San Lorenzo e nenhum do Racing, haviam três oriundos do futebol cordobês: um do Talleres e dois revelados no Instituto. Osvaldo César Ardiles era um dos vaiados, o que pode surpreender olhares exteriores sobre o volante que carregava de modo refinado o piano na seleção e protagonista no futebol inglês. Hoje é aniversário de 70 anos de El Pitón – ou o “sexto melhor baixinho do futebol”, segundo uma lista de 2009 do tabloide britânico The Sun.

O apelido de Pitón, uma víbora das maiores, não foi em função da estatura do craque: “meu irmão Guillermo Manuel me batizou assim quando jovenzinho, tinha um corpinho como o de Messi, e jogava com seu estilo. Agarrava a bola, era escorregadiço e esquivava de todos, não passava a bola a ninguém”, explicou em longa entrevista em 2010 à revista El Gráfico, na qual expressou a quem não lhe assistiu que seu futebol se assemelhava ao de Cesc Fàbregas: estrategista, com grande panorama conceitual para iniciar jogadas e sentido veloz de colocação para habilita-las ou frear as do oponente. Nascido na cidade de Córdoba, Ardiles jogou nas três principais forças locais – além de passar a infância nas quadras do General Paz Juniors, de seu bairro e quinto grande cordobês. “No Instituto se jogava futebol a sério, no Juniors era mais uma diversão”, compararia ainda em 1983.

“Eu joguei um Nacional no Belgrano, uns amistosos para o Talleres, mas minha equipe de alma é o Instituto”, afirmou também naquela entrevista de 2010. “Ia sempre a campo vê-lo (…). Meu irmão é dirigente do clube e sei que tenho as portas abertas se quisesse treina-lo, mas não seria uma boa ideia, porque é um clube que está muito próximo do meu coração”. Ardiles estreou no time adulto dos alvirrubros aos 17 anos, em 1969, após uma boa quantidade de conquistas nos juvenis. Terceira força local, o clube do bairro de Alta Córdoba apareceu para o país em 1973 e não só por um curioso amistoso contra a seleção argentina em 8 de agosto (com direito a Ardiles enfrentando a Albiceleste na derrota de 2-1).

Instituto de 1973, com três vencedores da Copa de 1978: Perriot, Acevedo, Carballo, Oviedo, Ardiles e Anelli; José Saldaño, Miguel Saldaño, Kempes, Beltrán e Willington

Contexto: desde 1967, os times do interior conseguiam algum lugar ao sol por meio do tal Torneio Nacional, que reunia os melhores (em algumas edições, todos) os clubes do campeonato argentino com os campeões (às vezes, também vices) dos campeonatos do interior. Afinal, o campeonato argentino era virtualmente um torneio provincial como os demais: as afiliações eram restritas à Grande Buenos Aires, La Plata, Rosario e Santa Fe. Enquanto o Nacional vigorou, até 1985, o torneio que só de nome era “argentino” foi renomeado Metropolitano. Campeão cordobês raras vezes desde o elenco tetracampeão dos anos 20, a render ao Instituto o apelido de La Gloria, o clube conseguiu em 1972 um de seus títulos bissextos, o primeiro após a vigência do Torneio Nacional. No elenco, três futuros campeões de 1978: Ardiles, Mario Kempes (que jogaria o mundial já pelo Valencia e com quem jogava desde os treze anos) e Miguel Ángel Oviedo (outro do Talleres em 1978, mas reserva), além de Alberto Beltrán, na época apontado melhor que os três.

O título provincial rendeu a inédita classificação do Instituto ao Nacional. Foi 8º em grupo embolado, a três pontos do 4º colocado. Ardiles, eleito pela El Gráfico o melhor jogador do interior, fez três gols e despertou atenção do San Lorenzo – mas o desacerto financeiro faria o Sanloré optar por Beltrán, ainda visto como mais promissor. O Belgrano foi, por sua vez ,o campeão provincial de 1973 e assim o representante cordobês no Torneio Nacional de 1974. No contexto local, ficou comum o empréstimo entre vizinhos, com jogadores das equipes que ficariam ociosas mantendo a forma e talvez, conseguindo vitrine. Assim, Ardiles, que já havia jogado um amistoso pelo Talleres contra o Boca em 1973 (Mario Kempes também, até marcando o gol do 1-0), e o próprio Belgrano em curioso amistoso dos celestes com a seleção argentina em 26 de abril de 1974 – marcando inclusive o gol belgranense no honroso empate em 1-1 – defendeu o time do bairro de Alberdi no Nacional de 1974.

Foi uma rotina curiosa: aos fins de semana, vestia no Nacional a camisa celeste do Belgrano, conciliando-a com a camisa alvirrubra do Instituto nos jogos da liga cordobesa ocorridos nos dias úteis. Por La B, Ardiles ficou no Nacional de 1974 novamente a três pontos do 3º colocado, o Banfield, derrotado por 4-1 com o gol do Pitón como belgranense. Em 1975, foi a vez de Ardiles não ser mais adversário da Albiceleste, estreando por ela ainda como jogador regressado ao Instituto. Seu primeiro jogo, em 16 de março, foi não-oficial – inclusive marcando gol, ao converter um pênalti na derrota de 2-1 para o Palmeiras, em jogo que inaugurava o Serra Dourada (!); o segundo, também não-oficial, foi naquela mesma cerimônia, contra a seleção goiana. A estreia oficial veio em 27 de junho, em amistoso em que Menotti estreou de uma vez 14 jogadores, sendo 13 de clubes do interior, em um 2-1 na Bolívia.

Além de brilhar no Instituto, Ardiles também jogou na dupla principal cordobesa: Belgrano (em pé, ao meio, no Nacional de 1974) e Talleres (amistosos em 1973 e 1979)

Aquela partida foi a estreia oficial também de outros campeões de 1978, casos do zagueirão Luis Galván, do armador José Daniel Valencia (ambos do Talleres, onde seguiriam em 1978 – La T só forneceria menos jogadores que o River na Copa), Miguel Oviedo, na época nem no Talleres e nem no Instituto e sim pelo Racing de Córdoba, a quarta força local; e de Ricardo Villa, então no Atlético Tucumán e que seria campeão mundial durante sua breve passagem pelo Racing. Villa também seria o sócio de Ardiles no futebol inglês, uma relação oriunda a partir dali, como colegas de quarto. Ardiles fez um dos gols da vitória e em setembro estreava no grande centro futebolístico do país, no futebol de Buenos Aires, contratado pelo Huracán, recém-vice campeão do Torneio Metropolitano e que vivia ótima fase desde 1972 – foi o título no Metropolitano de 1973, a primeira conquista do Globo na elite desde 1928, quem credenciara o então treinador huracanense César Menotti à seleção.

Após jogar a Copa América, Ardiles reforçou o clube do bairro de Parque de los Patricios para novo Torneio Nacional, Ardiles estreou no clássico com o San Lorenzo: derrota de 1-0 que faria a diferença. O time perdeu a classificação ao octagonal final por dois pontos. História diferente se viveria em 1976. Ali, foram realizados cinco clássicos com o San Lorenzo. Nenhum outro dérbi no país, desconsiderando-se amistosos, foi realizado tantas vezes em um só ano. E o Huracán, historicamente desfavorável na rivalidade, venceu os cinco, no último ano em que conseguiu dois triunfos seguidos contra o rival. Ardiles só não esteve em um, no qual o time, já classificado, usou reservas. Marcou na primeira vitória da série, por 3-1, válida pela primeira fase do Metropolitano – roubando a bola do goleiro rival, Ricardo La Volpe (que havia cometido a imprudência de sair jogando da própria área…), futuro colega dele na seleção de 1978.

Naquele torneio, o Huracán foi o maior pontuador, mas não o campeão. Normalmente travado em turno e returno entre todos os participantes, justamente aquela edição teve fórmula diferente: os 22 times foram separados em dois grupos de onze cada, com cada rival separado do outro. Houve turno e returno no interior das chaves e duas rodadas extras, “intergrupos”, de clássicos. Em relação ao time campeão de 1973, o Globo havia perdido o xerife Alfio Basile e o ícone Carlos Babington, mas mantinha o símbolo Miguel Brindisi, o capitão Jorge Carrascosa, o arisco ponta René Houseman, o polivalente Omar Larrosa e se reforçara com Ardiles e o goleiro Héctor Baley. Os últimos cinco seriam convocados à Copa do Mundo, com Larrosa indo já como atleta do Independiente. Carrascosa seria o capitão e não Daniel Passarella, mas renunciou por razões políticas.

Ardiles posando pelo Huracán antes de vitória fora de casa contra o San Lorenzo, a terceira da série de 1976. À direita, seu gol na primeira – foto de sua autobiografia “Ossie’s Dream”

O Huracán foi um líder arrasador, invicto na fase de grupos, com oito pontos de vantagem para o segundo, em tempos em que a vitória ainda valia dois pontos e não três. Porém, pelo regulamento, a competição seguiria, com os seis primeiros de cada grupo jogando em turno único um dodecagonal final – que não levava em consideração a pontuação anteriormente acumulada. Isso permitiu um terceiro clássico com o San Lorenzo, também classificado. Mas o Boca, 4º colocado na chave do Huracán, embalou e conseguiu o título, deixando os quemeros de vices com três pontos a menos na fase final, mas com nove a mais na pontuação geral. O Boca foi o algoz também no Torneio Nacional (onde ocorreu os outros dois clássicos com o Sanloré no ano), nas semifinais. Nesse Nacional, o Globo conseguiu sua maior série de vitórias seguidas: oito.

Como o Boca também seria campeão do Nacional, a outra vaga na Libertadores foi definida no fim de dezembro entre seus vices. Deu River, 4-1. Foi o fim da fase dourada huracanense nos anos 70. Brindisi rumou ao Las Palmas espanhol, Larrosa ao Independiente e Baley não se entendia com a bebedeira de Houseman. Em 1977, o clube foi só 8º no Metropolitano e 3º em chave de oito no Nacional. O que não impediu que Ardiles seguisse na seleção (permitindo-lhe largar de vez a advocacia, profissão paralela herdada dos pais), embora o queridinho de público e mídia para sua vaga fosse alguém mais refinado feito Juan José Jota Jota López, maestro do River. Uma preferência por um volante mais tático ou operário, como Ardiles, faria a vaga estar igualmente bem servida com o capitão do Boca, Rubén Suñé. A declaração abaixo também é daquela entrevista de 2010 à El Gráfico:

Jota Jota era um excelente jogador. Na série [de amistosos] de 1977 no estádio do Boca [o Monumental estava em obras para a Copa], fazíamos o aquecimento prévio na quadra de basquete e escutávamos quando anunciavam as equipes. Eu era o mais vaiado de todos. Isso me marcou. Se não houvesse superado esse transe, não poderia ter seguido sendo jogador de seleção. Inclusive pensei em renunciar, mas por sorte tive amigos que impediram: Ricardo Villa e Daniel Passarella. Me disseram que eu estava louco. Eu era o jogador mais questionado as pessoas me viam como um capricho de Menotti. O ano de 1977 foi decisivo porque consegui superar esse vendaval e cheguei como indiscutido ao mundial”.

Rompendo a Cortina de Ferro: na neve de Kiev contra a URSS a na estreia da Copa 1978, contra a Hungria

O próprio Menotti relembraria, já em 2002: “um dia tive que agarra-lo e lhe dizer: ‘no fim o único idiota que acredita em você sou eu… demonstre pelo menos que você também tem confiança em si'”. Em seu próprio livro sobre a Copa, o treinador explicava que “não digo que El Negro López seja inferior, digo que Ardiles o supera como homem para minha equipe”. O huracanense, afinal, tinha a média mais alta nos diversos quesitos da avaliação interna que El Flaco vinha fazendo: “inteligência: 10. Cultura: 10. Aplicação no trabalho: 7. Comportamento no grupo: 8. Trabalho em equipe: 10. Equilíbrio emocional: 9. Desejos de superação: 8. Personalidade: 10. Temperamento: 9. Responsabilidade: 9. Pontualidade: 9”. Ardiles também declararia que ficou mais tranquilo ao ver um videotape de amistoso em 1973 entre Argentina e Alemanha Ocidental, notando como a plateia em Munique não se furtava em vaiar um Beckenbauer pré-glórias.

Ainda assim, não ajudava que, do Boca campeão pela primeira vez da Libertadores, Menotti convocasse somente o lateral Alberto Tarantini (que jogaria o mundial sem pertencer mais ao clube…). Muito menos que Menotti insistisse em Ardiles mesmo com este lesionado quase a Copa inteira: na estreia, contra a Hungria, apareceu na jogada do gol do empate ao acionar Kempes em cobrança de falta – em rebote à conclusão do parceiro, Leopoldo Luque igualou. Contra a França, Luque marcou outro gol, agora sob assistência direta do volante – que, contudo, fissurou o dedo mindinho do pé e precisou recorrer às infiltrações para seguir jogando. Funcionou contra a Polônia: buscou a bola após o tiro de meta adversário, saiu em disparada e atraiu dois marcadores, servindo mesmo perdendo equilíbrio a bola a um desmarcado Kempes. No último lance desse jogo, Kempes perdeu gol cara a cara após novo passe do velho colega de Instituto.

Mas a lesão no mindinho foi somada a uma no tornozelo na “guerra” contra o Brasil, obrigando Menotti a substituir no intervalo (por Villa, por sinal) seu queridinho, que ficou de fora do 6-0 sobre o Peru – mesmo de fora da polêmica, ele declararia que “reafirmo algo que digo sempre: caso se comprove que houve algo, a medalha não vale nada e a devolvo”. Seu substituto na classificação, Omar Larrosa, fora simplesmente o melhor em campo segundo a avaliação da El Gráfico, que lhe dera nota 10. Mesmo assim, Menotti bancou a volta de Ardiles para a grande final. Ela seria sua última exibição na Albiceleste como jogador do Huracán: é o segundo que mais a defendeu vindo de Parque de los Patricios, com 40 jogos, abaixo de Houseman, outro quemero naquela final.

Ardiles caído após sua melhor jogada na Copa de 1978, na assistência para o segundo gol de Kempes na Polônia. À direita, com o técnico Pochettino, sucessor argentino no Tottenham

Ainda não recuperado (“não podia caminhar”), Ardiles calhou de ser o pior argentino em campo na grande noite contra a Holanda e saiu aos 20 minutos do segundo tempo para nova entrada de Larrosa. A El Gráfico, que lhe deu nota 4, lamentava na nota pós-jogo: “Ardiles não funciona. Seu condutor natural e habitual. Não sei se em Ardiles permanecem resíduos de sua lesão. Não sei, parecia que seu estado não é o ideal. Lento para resolver. Que lástima! Osvaldo Ardiles merecia outro encerramento para o esforço e o talento que havia posto a serviço deste processo”. Mesmo assim, teve sua importância, ao conseguir iniciar a jogada do primeiro gol: recebeu de Gallego, correu entre dois holandeses e, novamente perdendo equilíbrio, ainda assim serviu para Luque repassar para Kempes concluir. Quem bem farejou foi o técnico do Tottenham Hotspur, Keith Burkinshaw. Ele veio então pessoalmente à Argentina buscar jogadores campeões.

Em tempos de forte lei do passe, os do River, base da seleção, eram inegociáveis. Burkinshaw então se virou para Osvaldo Ardiles. Sabendo que sua adaptação seria mais fácil se fosse acompanhado de um compatriota, indagou-lhe por uma sugestão. Ouviu o nome de Ricardo Villa. Começava assim a trajetória dos hermanos no futebol inglês. Transferência que rendeu não um, mas dois Especiais: a do título na centésima edição da tradicionalíssima Copa da Inglaterra, com dois gols de Ricky na finalíssima; e, ainda mais emocionante, a tarde em que Ossie foi aplaudido pela torcida na semifinal da edição seguinte, também vencida pelos Spurs. A partida ocorreu um dia depois do início da Guerra das Malvinas, onde o craque, que se radicaria até hoje na Inglaterra, perderia um primo. A Copa de 1982 veio em seguida e a campanha tumultuada pelo conflito foi o fim da linha de Ardiles na seleção.

Clique aqui para o Especial sobre a centésima FA Cup e aqui sobre os aplausos ingleses em plena guerra, que detalham a carreira inglesa de Ardiles. O enfoque deste fica na trajetória doméstica, a incluir um amistoso pelo Talleres contra o Ajax em 1979 e duas passagens como técnico, no Racing entre 2002 (“enquanto todo mundo fazia de tudo para sair da Argentina, eu voltava. Me diziam que estava louco”) e 2003 (quando sua equipe foi eliminada em polêmica decisão por pênaltis na Libertadores) e do Huracán na segundona em 2007. Nessa função, o êxito solitário foi um acesso com o Swindon Town, ainda como jogador-treinador: “o técnico se foi e me ofereceram o cargo. Treinei e joguei duas partidas. Na primeira, perdemos de 1-0. Na segunda, sentei no banco. Ganhávamos de 2-0, me coloquei no segundo tempo e nos empataram. Nesse dia decidi que terminava minha carreira. E não me pus mais. Tinha 38 anos. Terminamos subindo, superando equipes fortes como Leeds e Newcastle”.

Também já dedicamos um especial ao sócio de Ardiles no Tottenham: clique aqui para saber mais de “Ricky” Villa, que também fez 70 anos em 2022

https://twitter.com/InstitutoACC/status/1554814917940846592

https://twitter.com/Argentina/status/1554829453116616710

https://twitter.com/SpursOfficial/status/1554740327512264704

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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