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Cruzeiro, 100 anos: relembre os argentinos do clube

O Rio de Janeiro é quem historicamente leva a fama, mas Belo Horizonte é outra cidade de expressiva comunidade argentina. E o Cruzeiro é o clube normalmente mais associado, já tendo fornecido três jogadores diretamente à seleção vizinha, um recorde entre equipes brasileiras dividido com o Internacional. O clube é mesmo familiar aos hermanos, com diversos embates continentais, incluindo finais, gabando-se do apelido de La Bestia Negra da América declarado por Caniggia após duelos na Supercopa 1997 – enquanto que o goleiro Ángel Comizzo já reconheceu que o melhor jogo de sua vida foi quando evitou uma surra superior aos 3-0 sobre o River na final da Supercopa 1991. Hora de relembrar os argentinos da Raposa, atualizando nota originalmente publicada nos 20 anos da Libertadores de 1997.

Essa relação com argentinos, na verdade, demorou relativamente para existir. Nos anos 40, o Brasil, tão goleado naqueles anos pela Albiceleste, viveu o “Platinismo”, expressão designada por Mário Filho para referir-se à contratação desenfreada de diversos argentinos pelos clubes nacionais, até mesmo os pequenos. O fenômeno chegou a Minas Gerais, mas o Cruzeiro foi uma exceção entre as vindas de Guido Baztarrica e José Villalba ao Atlético e de Roque Valsecchi ao América.

O primeiro argentino só apareceu já nos anos 50, quando aquele contexto vinha arrefecendo: foi o treinador Nelson Filpo Núñez, que a partir dali iniciou sua longeva carreira no Brasil, cujo ápice foi ser técnico por um jogo da seleção brasileira em 1965 – exatamente nas festividades de inauguração do Mineirão (ocasião em que o Brasil foi representado pelo time do Palmeiras, onde o argentino trabalhava na época). Filpo Núñez, tio de Eduardo Coudet, estava no Cruzeiro também em 1970. Não conseguiu títulos.

Se Filpo Núñez era um desconhecido na terra natal, o hermano cruzeirense seguinte era um astro. Foi o zagueirão Roberto Perfumo, por sinal ex-Racing. Marcador implacável, sem hesitar ao jogo duro quando necessário, já era figura na seleção argentina e chamado também para seleções do Resto do Mundo quando foi contratado, em meio a uma crise financeira do futebol argentino. Perfumo integrou parte do tetracampeonato mineiro no início dos anos 70, em contexto em que os torneios estaduais eram valorizados pelas torcidas de modo equiparável ao Brasileirão, onde o argentino foi vice em 1974. Essa fase não foi ignorada na terra natal.

El Mariscal (“O Marechal”) não foi só convocado à Copa do Mundo de 1974, sendo um dos primeiros “estrangeiros” chamados pela seleção argentina (que só em 1972 passou a chamar quem jogasse no exterior), como também, como cruzeirense, foi o capitão dela. Já dedicamos este Especial ao beque, eleito duas vezes para o time dos sonhos da Raposa, em eleições promovidas pela revista Placar em 1994 e 2006, tendo os votos dos ex-colegas Dirceu Lopes e Piazza, dentre outros.

Perfumo: eleito para o time dos sonhos do Cruzeiro em 1994 (atrás de Zé Carlos) e 2006, onde foi acompanhado por Sorín (na frente deles, Tostão e Palhinha), que comemora o Sul-Minas 2002

Perfumo seguiu como estrangeiro recordista de jogos pelo Cruzeiro, com 141 partidas, até 2017, quando foi superado por Giorgian de Arrascaeta. Uma de suas últimas aparições públicas, felizmente, foi em homenagem do clube, feita conjuntamente com o River (para onde Perfumo foi em 1975 participar da quebra de jejum de dezoito anos dos millonarios) no Monumental de Núñez por ocasião das quartas-de-final da Libertadores de 2015 – atitude de paz encorajada pelo “apimentado” tumulto entre Boca e River na fase anterior. É a imagem que abre essa matéria.

Apesar do sucesso de Perfumo, o argentino seguinte só apareceria em 1995. Sem ser aprovado: foi o volante Silvio Rudman, que, chamado para um período de testes, atuou somente em amistoso contra o Guarani de Divinópolis. Revelado no Argentinos Jrs e com passagens por Independiente e Boca, pertencia à equipe mexicana do Toros Neza, para onde voltou. Depois dele, foi a vez do lateral ou meia Juan Pablo Sorín. Veio em 2000 do super River noventista para logo virar ídolo também na Toca da Raposa: foi logo campeão da Copa do Brasil, além de eleito o melhor de sua posição na Bola de Prata alusiva à Copa João Havelange, torneio em que chegou a marcar em um 4-2 no clássico com o Atlético.

Sorín também marcou no clássico secundário, contra o América, no 3-1 no Estadual de 2001. Teve três passagens pelo Cruzeiro, e foi a primeira que o eternizou como outro jogador do time azul dos sonhos, acompanhando Perfumo na eleição de 2006 da Placar, e na homenagem conjunta com o River em 2015. Naquele período 2000-02, conseguiu um título por ano, ganhando o bi da Copa Sul-Minas em 2001 e em 2002, em contexto no qual os grandes clubes do país vinham valorizando mais os torneios regionais do que os estaduais – os regionais classificavam à Copa dos Campeões, atalho mais curto à Libertadores.

A primeira despedida de Sorín foi cinematográfica: com a cabeça enfaixada após sangra-la na final da Sul-Minas de 2002, fez o gol do título sobre o Atlético Paranaense. O time, adiante, disputaria a final da Copa dos Campeões, e Sorín certamente foi a ausência sentida na inacreditável decisão com o Paysandu. O argentino já estava na Lazio àquela altura, após ter disputado a Copa do Mundo vindo do Cruzeiro – tal como Perfumo em 1974. Teve uma breve e infrutífera volta em 2004, com um salário alto demais para o ambiente dos colegas; e escolheu o clube para pendurar as chuteiras, em 2009.

Os hermanos seguintes viriam a partir de 2010, quando a Toca da Raposa abrigou uma pequena colônia platina. Sebastián Prediguer, meia do Colón classificado à pré-Libertadores daquele ano (credenciando-o a testes na seleção de Maradona), foi apresentado, mas não chegou a jogar. Quem foi efetivado foi o atacante Ernesto Farías e, sobretudo, o meia-armador Walter Montillo. Tecla Farías, vindo do Porto, chegara a defender a seleção em meio a um bom momento que tivera no River (artilheiro da Libertadores de 2006), mas já havia perdido o faro de gol, sendo repassado em 2012 a um Independiente semi-rebaixado.

Montillo com Farías e (de costas com a camisa 10) com Martinuccio, o camisa 11 na comemoração com Anselmo Ramon

Já Montillo era um refugo do San Lorenzo redescoberto na ascendente Universidad de Chile do técnico Jorge Sampaoli, chamando a atenção dos brasileiros ao eliminar o Flamengo na Libertadores de 2010. Chegou com o Brasileirão em andamento e ainda assim conseguiu ser eleito um dos melhores meias do torneio, em dupla argentina com Darío Conca, do campeão Fluminense. Se a Raposa disputou o título até parte da reta final, em 2011 ela quase foi, pela primeira vez, rebaixada. Campeão mineiro em 2011 (com gol em 3-2 em clássico com o América), Montillo recebeu novamente a Bola de Prata, agora como esteio do elenco em frangalhos no Brasileirão após a surpreendente queda em casa na Libertadores.

Montillo não esteve no 6-1 que salvou o clube no clássico na última rodada, suspenso, mas fez os dois gols da vitória de 2-1 sobre o rival no primeiro turno (o segundo, aos 42 do segundo tempo). Também virou o terceiro cruzeirense a ser importado pela seleção argentina, e o primeiro a estrear por ela vindo do clube. Em 2012, superou o colombiano Víctor Aristizábal como estrangeiro com mais gols pelo Cruzeiro e chegou a ser o jogador mais caro da América do Sul, cavando uma transferência ao Santos para jogar com Neymar, fã declarado do argentino. A saída iniciou a má fase do meia. Uma pena: certamente seria imortalizado se ficasse para o bicampeonato no Brasileirão em 2013-14.

Além deles, entre 2012 e 2013 e o Cruzeiro contou com o empréstimo de Alejandro Martinuccio junto ao Fluminense, que o contratara do Peñarol vice-campeão da Libertadores de 2011 sem se atentar que, apesar de alguns gols, o argentino na realidade era cornetado no Uruguai. Teve um bom início, especialmente com assistências e até com gol no clássico com o Atlético (derrota de 3-2), mas o bom desempenho foi fugaz. O empréstimo foi direcionado ao Coritiba e em 2016 o argentino foi adquirido pela Chapecoense. As constantes lesões, que já haviam adiado sua estreia em Minas e impediram a compra pela Ponte Preta, o tiraram do voo fatídico dos catarinenses rumo a Medellín.

Nova colônia se formou a partir de meados de 2015, quando o lateral/meia Lucas Romero veio do Vélez, recebendo no ano seguinte outro meia ex-velezano, Ariel Cabral. Em 2016 também chegaram o meia/ponta Matías Pisano, do Independiente; o lateral/meia Ramón Sánchez Miño, emprestado pelo Torino e revelado no Boca; e, sobretudo, o artilheiro do Huracán campeão da Copa Argentina de 2014 (encerrando jejum de 41 anos de títulos nacionais expressivos do Globo) e vice da Sul-Americana 2015: Ramón Ábila. Miño e Pisano não duraram muito, em meio à campanha pobre no Brasileirão.

Wanchope Ábila jogou pouco, mas jogou muito: com início arrasador de nove gols nos onze primeiros jogos (um deles foi no 2-0 no clássico com o América), contribuiu bastante para tirar os azuis do Z4. A média caiu depois, mas o tanque argentino foi fundamental para afastar a forte ameaça de rebaixamento que pairou na Toca já naquele 2916, onde a degola foi evitada por oito pontos de diferença. Ábila também marcou na finalíssima do Estadual de 2017 sobre o grande rival, mas não evitou a derrota de 2-1. Ainda assim, despertou interesse do Boca em repatria-lo em meados daquele ano.

Salvador da campanha perigosa do Cruzeiro em 2016, Ábila comemora com Romero e Cabral no clássico com o América: desempenho que seduziu o Boca

Por sua vez, Romero (ex-jogador das seleções juvenis) e Cabral (om passagem pela principal) seguiram por mais tempo na Raposa, ainda que como opções de banco, com destaque maior a Cabral. Ainda em 2017, receberam no segundo semestre a companhia fugaz de Alexis Messidoro, emprestado pelo Boca até janeiro seguinte sem fazer muita diferença na reconquista da Copa do Brasil. Em 2018, o bi da Copa do Brasil contou ainda com o meia Federico Mancuello, também campeão estadual; e, sobretudo, com o atacante Hernán Barcos.

Mancuello vinha mais como aposta pelo desempenho exibido ainda em 2014 no Independiente (que o fizera ser testado na seleção) do que pelo retrospecto aquém visto no Flamengo, de onde chegara. Barcos estava de volta à LDU, time que criara a fama que o fez rodar o Brasil primeiramente por Palmeiras (onde pudera aparecer na seleção mesmo com o rebaixamento em 2012) e Grêmio. O atacante saiu-se melhor, aplicando a lei do ex contra os paulistas em cada semifinal da Copa do Brasil, mas não indo além; ambos deixaram Minas já em janeiro de 2019. E escaparam dos desdobramentos daquela temporada.

O título mineiro que Cabral e Romero venceram no ano do inédito rebaixamento azul já parecia ilusão mesmo quando o clube se deu ao gosto, em paralelo, de eliminar o arquirrival por uma vaga nas semifinais da Copa do Brasil. Romero buscou ainda em agosto o bote oferecido pelo Independiente. Cabral segue sendo cruzeirense, com uma pausa sob empréstimo no Goiás em 2020. Nos mares revoltos que ressacarão no centenário, tornou-se o argentino mais longevo da riquíssima história do clube – cujos numerosos capítulos com argentinos já renderam os Especiais abaixo:

Elementos em comum entre Cruzeiro e Boca

Elementos em comum entre Cruzeiro e (o freguês) River

Elementos em comum entre Cruzeiro e Racing

Elementos em comum entre Cruzeiro e San Lorenzo

Elementos em comum entre Cruzeiro e Huracán

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Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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