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Boca só cedeu dois campeões de Copa do Mundo. Um deles, Tapia foi o maior filho pródigo do clube

Originalmente publicado no aniversário de 55 anos de Tapia, em 20-08-2017, revisto, ampliado e atualizado

A grandeza do Boca é inquestionável e o clube pode se gabar de ser a equipe argentina de melhor retrospecto em diversos segmentos. A grande exceção são campeões mundiais, onde os poderosos xeneizes têm menos representantes até que os muito menores Huracán, Talleres (cada um com três em 1978) e os mesmos dois do Argentinos Jrs (1986), para não falar no fato do maior rival ser a equipe mais representada nos dois títulos da Albiceleste (cinco em 1978, com quatro titulares, e três em 1986, todos titulares). Reserva na Copa de 1986, Carlos Daniel Tapia, que hoje faz 60 anos, surgiu justamente no River. Para virar o maior colecionador de idas e vindas no Boca.

Nascido em San Miguel, no noroeste da Grande Buenos Aires, Tapia (a pronúncia é “Tápia” e ele não tem parentesco com o atual chefão da AFA, Claudio Tapia) de fato era torcedor do Boca, o que não o impediu de começar a carreira no arquirrival e ter como ídolo Norberto Alonso – uma espécie de Zico canhoto, argentino e do River (era justamente ele o millonario reserva na Copa de 1978, apesar do grande sucesso como cerebral camisa 10, ótimo cobrador de faltas e multicampeão nos anos 70 e 80 pelo clube). Ele explicou a curiosa situação em entrevista à El Gráfico em 2010:

“Aprendi muito olhando-o como gandula: sua pegada, seu estilo; era um jogador que me dava gana de ver. Meu pai era River, eu me fiz torcedor do Boca por um parente que me havia presenteado a camisa. Meu velho fazia apostas pelo River. Isso até que passei ao Boca. Quando meu velho foi à tribuna do Boca e viu que cantavam meu nome, lhe caíram as calças e chorou no campo. A partir daí, nunca mais pisou no River. Quando és garoto, o único que pensas é chegar na elite. Não pensas como torcedor”.

Estatisticamente, aquele torcedor do Boca teve um início meteórico no River. Estreou no time principal da equipe de Núñez em 22 de abril de 1980, ainda antes dos 19 anos completos, e marcando logo seu primeiro gol (“contra o Tigre, veio um cruzamento de Comelles, matei no peito e coloquei no ângulo”), o segundo nos 3-1 pela 15ª rodada do Metropolitano. E, em setembro, já estreava pela seleção: foi em 2-2 amistoso com o Chile em Mendoza. Foi testado por César Menotti com vistas para o Mundialito do Uruguai, para o qual não chegou a ser convocado. Menotti, na mesma época, chamou outros jovens, dentre os quais dois que estrearam pela seleção principal antes mesmo de estrearem pela equipe principal em seus clubes (Alejandro Débole, do Ferro Carril Oeste, e Jorge Cecchi, do Boca, que não vingaram). Em 1981, Tapia iria também ao mundial de juniores.

No River, entre Débole e Cecchi, trio chamado ainda adolescente à seleção principal em 1980

Apesar de conseguir tão cedo algo que colegas de River muito mais experientes jamais alcançariam, Tapia não deslanchou o que poderia se esperar. Fez parte dos títulos Metropolitano de 1980 e do Nacional de 1981, mas com apenas duas partidas no primeiro (após a estreia, esteve também na rodada seguinte, no 1-1 com o Independiente, mas só) e zero no segundo – onde, no máximo, foi relacionado duas vezes ao banco, no 2-0 sobre o San Martín de Tucumán e no 2-0 contra o Sarmiento. Só foi jogar seu primeiro Superclásico em setembro de 1982 (1-1), após uma debandada do elenco do River. O clube, para responder a ida de Maradona ao Boca, providenciara em dólares o empréstimo de Kempes. A moeda ianque logo se valorizaria em 240%, algo piorado com o fracasso nas Malvinas. Foi necessário fazer caixa e após a Copa de 1982 saíram de Núñez os astros Kempes, Passarella e Ramón Díaz.

A crise não arredou. No Metropolitano de 1983, o River fez sua pior campanha até a lanterna de 2008. Terminou em penúltimo e só não caiu porque justamente para aquele torneio haviam programado os polêmicos promedios. Jogadores fizeram greve e foi a vez de Fillol e Tarantini irem embora. Como se não bastasse, o elenco, já afetado pela morte do técnico Vladislao Cap em 1982, chorou a do ídolo-mor Ángel Labruna em agosto de 1983 (ele estava cotado a voltar a ser técnico do Millo) e a do atacante Oscar Trossero um mês depois. Nesse complicado contexto, Tapia marcou o maior golaço de 1983 do futebol argentino apenas quatro dias depois da perda do colega Trossero, driblando meio time adversário do Platense desde antes do meio-campo para fechar o 3-1 pela 23ª rodada do Metropolitano.

O trágico ano de 1983 foi justamente a primeira temporada em que ele parecia firmar-se como titular, mas aquele projeto de camisa 10 não decolou de modo duradouro em Núñez. E passou a sofrer a concorrência do recém-chegado Francescoli e do velho ídolo Alonso, que apareceram em 1983 (Alonso na verdade voltava de um exílio no Vélez) para ocuparem as posições ofensivas de meio-campo. O Boca, porém, fervia ainda mais, pois a transferência de Maradona em 1981 também fora dolarizada e o astro igualmente saiu de lá após a Copa de 1982. O time despencou. Brigou para não cair em 1984, ano em que teve La Bombonera fechada e no qual simbolicamente levou a pior goleada de sua história, um 9-1 para o Barcelona.

Em 1984, também foi a vez dos jogadores do Boca fazerem a sua greve. Os dois únicos que conseguiam permanecer na seleção queriam sair: o zagueiro Oscar Ruggeri e o atacante Ricardo Gareca, que, exatamente por estarem a serviço da Albiceleste, não estiveram nos 9-1. Em janeiro de 1985, então, a dupla principal do país acertou um troca-troca. Gareca e Ruggeri foram ao River, que recebeu 100 mil dólares além de ceder ao rival Tapia e o volante Julio Olarticoechea – ambos pretendidos pelo técnico Alfredo Di Stéfano, agora no Boca e que os conhecia de quando treinara o River em 1981. “Meu pai perguntou se eu estava seguro e lhe respondi que sim, porque no River não ia jogar, estavam Alonso e Francescoli, e me animei para ir ao Boca”.

O quase gol contra os ingleses na Copa de 1986: logo após Lineker descontar, Tapia tabelou com Maradona (atrás dele), mas precisou usar a perna ruim, a direita. Lamentação: acertou a trave e… teve distensão muscular ao chutar, não podendo mais jogar na Copa!

Foi no Boca, aliás, que Tapia recebeu o apelido de El Chino (“O Chinês”), em alusão aos olhos puxados. Foi expulso em plena estreia, em amistoso de pré-temporada com o Newell’s. Mas justamente Tapia, um ex-rival que era um meia frio e elegante que pouco combinava com o estilo mais raçudo associado aos xeneizes (inclusive, sofreu inicial resistência da torcida também por isso) viraria o recordista de idas e vindas na história auriazul: foram quatro passagens diferentes. Os ex-colegas de River logo conquistariam entre 1985 e 1986 o título nacional e, pela primeira vez, a Libertadores e o Mundial, em temporada fantástica que ofuscou um retorno do Boca a bons resultados: ainda em agosto de 1985, os xeneizes venceram o Valencia no amistoso Torneio Naranja. E, em dado momento do campeonato argentino de 1985-86, a equipe esteve a dois pontos do líder River.

Tapia destacou-se sobretudo ao marcar dois gols em 4-0 em Avellaneda sobre o forte Independiente da época e os três do 3-1 no “rival” Chacarita em outra vitória fora de casa. Essa partida foi em abril e foi a última do meia no campeonato: foi convocado por Carlos Bilardo ao México junto com Olarticoechea, que virariam os únicos jogadores do Boca campeões mundiais – Tarantini seria o representante em 1978, mas desligara-se do time ainda em 1977 e permanecera na seleção mesmo sem clube. Tapia não jogava pela Argentina desde a estreia em 1980. Na reestreia, marcou seu único gol oficial pela seleção, no 7-2 sobre Israel em Tel-Aviv.

No mundial, foi usado para cadenciar o jogo, atuando somente nos 15 minutos finais das partidas contra a Coreia do Sul, na estreia, e contra a Inglaterra; com essa partida já em 2-1, chegou a fazer tabelas duplas com Maradona e acertar a trave britânica – precisou usar a perna ruim, a direita. A lamentação não foi apenas pela chance perdida: “uma pena: se ficasse para a canhota, teria tido mais chances de que entrasse. O pior é que chutei e me distendi todo e não pude voltar a jogar”. O título mundial, ironicamente, lhe custou uma volta olímpica no Boca, que soube sem Tapia classificar-se à Libertadores 1986 após grande reviravolta em um torneio repescatório, a liguilla. O meia voltou aos gramados cerca de um mês depois do jogo contra os ingleses, contra o Peñarol, já pela própria Libertadores de 1986. O clube caiu na primeira fase, mas fez um bom campeonato de 1986-87, liderando ocasionalmente e tendo chances de título até a penúltima rodada.

A boa fase boquense manteve El Chino na seleção para a Copa América de 1987, ano em que marcou seu outro gol com a Argentina, em jogo não-oficial contra a Roma, vencedora no Olímpico por 2-1 em 19 de março. Tapia ainda jogou no Boca o início da temporada seguinte, quando foi então vendido ao Brest francês, que acabara de contratar o zagueiro Jorge Higuaín (cujo filho Gonzalo nasceria nessa cidade francesa). Despediu-se após marcar os dois gols de um 2-1 no Instituto, partida observada por dirigentes da equipe europeia que pretendiam originalmente avaliar o atacante adversário Oscar Dertycia. Segundo Tapia, Higuaín pai “era meu amigo, e além disso estava desesperado, queria outro argentino lá. Eu não conhecia nada, e ele: ‘um paraíso, não sabes como é o lugar, é na costa da França, estamos perto de Paris’. Assinei contrato e não me esqueço nunca mais. O avião privado com o qual vieram me apanhar em Paris esteve 20 minutos dando voltas para aterrizar por conta do vento. Quando cheguei a Brest, ele estava com um guarda-chuva. Ali chove 360 dos 365 dias do ano. Queria morrer”.

Contra o Equador na Copa América de 1987

Após somente meia temporada europeia, Tapia já estava outra vez em La Bombonera. O time chegou a brigar pelo título na temporada 1988-89, dividindo a liderança ao fim do primeiro turno, mas não manteve o gás até o fim – serviu ainda assim para que o meia, desaparecido da seleção desde a Copa América, voltasee a defender em outubro a Argentina – foi sua última partida pela Albiceleste, em 1-1 amistoso com a Espanha. Teve uma eliminação traumática para o Olimpia na Libertadores de 1989, ganhando por 5-3 após estar perdendo de 2-0 e de 3-1 em La Bombonera, mas caiu nos pênaltis. Tapia foi repassado ao Deportivo Mandiyú, caçula na elite argentina, voltando ao Boca após uma temporada pela equipe de Corrientes – com isso, acabou não integrando os títulos que amenizavam o jejum vivido desde o maradoniano Metropolitano 1981 na Casa Amarilla (a Supercopa em 1989 e a Recopa Sul-Americana em 1990).

Na temporada 1990-91, o Boca, repatriando El Chino Tapia, destacou-se sobretudo na segunda metade. Ele foi o meia-ofensivo para as conclusões da endiabrada dupla Diego Latorre-Gabriel Batistuta, que embalou a campanha semifinalista da Libertadores e a liderança invicta no Clausura, que na época não era um torneio separado: o título se definiria em final com o vencedor do Apertura, o Newell’s de Marcelo Bielsa, que levou a melhor em plena Bombonera, nos pênaltis. Tapia era o encarregado da quinta cobrança, que não se fez necessária em função de erros de dois colegas. Após a decepção, ele voltou a deixar a camisa azul y oro, com passagens pelo futebol suíço (Lugano) e chileno (Universidad de Chile) entre 1991 e 1992, quando retornou uma vez mais aos bosteros. A torcida, embora comemorasse a recente Copa Master em 1992, carregava a frustração de onze anos sem títulos argentinos, desde aquele com Maradona em 1981 – ainda é o maior jejum doméstico dos xeneizes.

Para Tapia, havia a frustração extra de sempre estar ausente nas raríssimas voltas olímpicas que permearam aquele período: a liguilla em 1986 e em 1990, a Supercopa (torneio que existiu entre 1988 e 1997 para reunir somente campeões da Libertadores) em 1989, a Recopa (então travada entre os campeões da Libertadores e da Supercopa) em 1990 e aquela Copa Master (por sua vez, troféu oficial da Conmebol a reunir somente campeões da Supercopa). O fim da seca, tão bem retratado na foto que abre essa matéria, enfim veio no Apertura de 1992, agora enfim um torneio separado sobre o qual dedicamos este Especial. Tapia também pôde ganhar um troféu continental, a Copa Ouro de 1993, disputada entre os campeões de 1992 na Libertadores, na Supercopa, na Copa Conmebol e na Copa Master. Só parou de jogar em maio de 1994, pois o mesmo técnico Menotti que o “descobrira” em 1980 precisava usar jogadores que pudessem render lucros ao time – Tapia era dono do próprio passe. Pendurou as chuteiras após um 2-1 no Real Madrid pela Taça Íbero-americana.

Desconsiderando-se amistosos, foram 217 partidas, 47 gols e 41 assistências para o Boca por seu maior filho pródigo. Desde que pendurou as chuteiras, Tapia trabalhou na secretaria de esportes de sua San Miguel natal e também como comentarista. “É dos poucos campeões mundiais no México que, para além de alguma tentativa pontual, não insistiu no futebol depois do futebol. Em todo caso, tem utilizado esse passado ilustre para sustentar sua carreira política”, assinalou sobre ele nesse 2022 a revista El Gráfico sobre um dos raros doze jogadores que defenderam a seleção argentina vindos tantos do River como do Boca.

No último jogo da carreira, no 2-1 sobre o Real Madrid, e em foto de 2011

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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