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Outras reviravoltas argentinas pelas copas continentais (spoiler: nenhuma foi como a do River)

Se há torcedores do River que já se chamam de gallinas, ainda há segmentos que torcem o nariz para o apelido, iniciado como um xingamento contra eles em função da perda da finalíssima da Libertadores de 1966. Tudo porque o time, que vivia jejum de nove anos (seriam dezoito), perdeu por 4-2 uma partida que vencia por 2-0. A antítese da eliminatória de ontem na competição. Se reverter o 3-0 do Jorge Wilstermann não chegava a ser um devaneio, um 8-0 extrapolou qualquer prognóstico. Vale então lembrar outras reviravoltas dos argentinos em La Copa – com um filtro em que, tal como os millonarios, seria necessário no mínimo um 3-0 para a classificação ou a menos a sobrevida.

Vale uma rápida menção inicialmente a um duelo entre argentinos, na semifinal da Libertadores de 1968. O campeão anterior Racing fez 2-0 em Avellaneda mas levou de 3-0 em La Plata do futuro campeão Estudiantes. Contudo, o 3-0 não classificou automaticamente os alvirrubros, cuja vitória apenas forçou uma terceira partida. Nela, sim, o 3-0 do segundo jogo pesou: como o tira-teima no neutro Monumental ficou no 1-1, os platenses avançaram em função do melhor saldo de gols.

Para valer, mesmo, temos de ir primeiramente a 1975 e marcou heroicamente um fim de ciclo, o do Independiente. Como campeão da edição anterior, o Rojo também estreou já na semifinal, que deixara de ser em dois jogos mata-matas, virando um triangular. O que não diminuiu a epopeia. O clube começou levando duas derrotas de 2-0, para Rosario Central e Cruzeiro, ambas fora de casa mas que pareciam sinalizar o fim da linha. Em casa, devolveu o 2-0 no Central, cujos jogos contra a Raposa foram 2-0 no Gigante de Arroyito e derrota de 3-1 no Mineirão.

A rodada final opôs Independiente e Cruzeiro na Doble Visera. Os argentinos precisavam vencer por pelo menos 3-0. Se vencessem, todos os times do triangular terminariam com 4 pontos. Mas se fosse por 1-0, os mineiros ainda assim avançavam. Se fosse 2-0, a classificação seria rosarina. Um 3-0 permitira que ao Rojo 1 gol de saldo, enquanto o Central ficaria no 0 e os brasileiros, com -1. Foi o que aconteceu: o primeiro veio já com 35 minutos do primeiro tempo, com o lateral, xerife e capitão Pavoni convertendo um pênalti (“legítimo”, segundo a revista brasileira Placar). Aos 20 minutos, o caldeirão vermelho ferveu com direito a gol olímpico, de Bertoni, autor do último gol da Copa do Mundo de 1978. Ruiz Moreno completou o placar necessário.

Registros, da revista Placar, sobre o 3-0 do Independiente no Cruzeiro nas semis de 1975. Só assim o Rojo pôde avançar à quarta final (e quarto título) seguido na Libertadores

É curioso ler os relatos de desespero sabendo que a espera da Raposa duraria apenas um ano para um título que parecia distante demais naquele momento: “o  Cruzeiro chora o impossível. Desde 1963, com o Santos, o futebol brasileiro não tinha chance tão grande de conquistar a Taça, acabar com a banca de argentinos e uruguaios”, ressaltava reportagem da época na Placar, que registrou as seguintes palavras de Piazza: “a Libertadores não é para times do nosso tipo. Fiquei convencido de que não estamos preparados para enfrentar o futebol de competição que os argentinos mostraram. É mesmo de desanimar. Em 1967, perdemos no finzinho jogando contra a garra do Peñarol e do Nacional. E olhe que tínhamos Tostão. É melhor desistir”.

Sem pachequismos e sem falar em “catimba”, a Placar culpou bastante a tática medrosa dos visitantes, recuando seus pontas e assim estimulando os laterais argentinos (que tradicionalmente não são ofensivos) a atacarem junto; assinalou que o primeiro gol saiu quando os hermanos já faziam por merecer outros e que o maestro Bochini fez uma exibição “primorosa”. Clique aqui para ler.

O Independiente venceria adiante a quarta final seguida, despedindo-se de seu domínio na competição, que parecia eterno àquela altura: “o que digo desta equipe? O que digo outra vez do sexto campeão da América? Que pacto secreto e misterioso mantem com La Copa? (…) Nunca os rojos se enfrentaram a uma Copa tão acidentada e já quase tão perdida como esta. Mas depois, La Copa. O amante que volta a corteja-la com os velhos atributos de sua sedução. La Copa que se vai, que se distanciara definitivamente. Mas que conclui submetendo-se aos efeitos de um costume, desse que vem de muito longe. (…) Em um desses, até a mesma América já tomou afeto do velho proprietário” foi o quase poema publicado na revista argentina El Gráfico.

O Boca esteve perto de algo parecido em 1989. Nas oitavas, perdeu de 2-0 para o Olimpia em Assunção e com dezoito minutos perdia pelo mesmo placar em La Bombonera. Conseguiu empatar em 2-2, mas aos 12 do segundo tempo perdia por 3-2. Mas terminou ganhando por 5-3 graças a dois gols nos últimos quatro minutos, de Tavares e Perazzo. Sem critérios para gols fora de casa, o resultado foi o suficiente para a sobrevida, por isso entra na lista. Mas a menção é breve porque, apesar do heroísmo dos donos da casa, os visitantes levaram a melhor nos pênaltis.

Riquelme inicia o 3-0 no Cúcuta em meio ao nevoeiro em 2007, após derrota de 3-1 na Colômbia

Cruelmente, Tavares e Perazzo (que havia feito o primeiro do Boca) tiveram suas cobranças defendidas por Éver Hugo Almeida, que ainda pegou uma de Villarreal, que classificaria os argentinos caso convertesse, já nas intermináveis séries alternadas encerradas em 7-6 para os alvinegros. O refinado meia-armador xeneize Tapia, campeão da Copa do Mundo de 1986, afirmou que esta foi a partida mais triste da carreira. “O piso da Bombonera se movia, te juro, de verdade”, declarou também. Já nas oitavas-de-final de 1993, Newell’s e São Paulo reeditaram a final anterior e a Lepra parecia conseguir um troco após ganhar de 2-0 em Rosario. Mas Dinho, Cafu e duas vezes Raí assinalaram um 4-0 no Brasil para o futuro bicampeão.

Em 2000, quase o campeão Boca foi eliminado na semifinal após ganhar a ida por 4-1: no México, levava de 3-0 do América até o zagueirão Samuel conseguir um salvador gol de cabeça no finzinho. Em 2001, o River levou de 2-0 do Emelec nas oitavas, mas ao fim do primeiro tempo no Monumental o placar já estava devolvido. E ao fim do segundo a partida estava no 5-0 graças a Celso Ayala, duas vezes Saviola, Yepes e Ortega. Mas o Millo cairia na fase seguinte para a finalista Cruz Azul – que faria a decisão justo contra o Boca. Na época, times do mesmo país não eram obrigados a se cruzarem na semifinal. Já imaginaram um Superclásico decidindo a competição?

Já em 2006, o Estudiantes levou um susto do Goiás. Ganhou de 2-0 em La Plata, mas perdeu de 3-1 no Pantanal com Juliano marcando o terceiro aos 47 do segundo tempo. Avançou somente nos pênaltis. Vale menção a um exemplo do famoso azar do Gimnasia LP, que conseguiu um 3-0 sobre o Defensor na rodada final da fase de grupos de 2007, mas precisava de mais dois gols para se classificar. Aquele torneio foi (pela última vez) vencido pelo Boca, que riu na cara do perigo antes da tranquila decisão com o Grêmio. Já havia segurado derrota de 3-1 para o Vélez após batê-lo por 3-0 na Bombonera. Mas na semifinal levou de 3-1 do Cúcuta na Colômbia, de virada.

Na Argentina, os colombianos seguravam heroicamente o 0-0 até os 43 minutos. Foi quando Riquelme, de falta, pôs fogo em meio à forte névoa que mal permitia a visão. Com dez minutos de segundo tempo, a cabeça de Palermo anotava o 2-0 suficiente para a classificação, e a de Battaglia (em seu segundo toque na bola no jogo) confirmou a nove minutos do fim, assistida por escanteio de Riquelme. Os xeneizes voltaram a uma classificação cardíaca em 2008, na fase de grupos. Avançaram por um gol a mais no saldo em relação ao terceiro colocado Colo-Colo, que em casa só empatou em 1-1 com o líder Atlas. Uma vitória auriazul por 2-0 deixaria os argentinos igualados com os chilenos até em gols pró e contra. Mas o onipresente Riquelme anotou o terceiro no minuto 73 no Maracaibo.

O River já sofreu, vide a cara Jorge Higuaín (pai de Gonzalo) após o 3-0 para o Cruzeiro na final da Supercopa 1991. À direita, Carbonari comemora o 4-0 no Atlético Mineiro em 1995

Em 2013, foi a vez dos argentinos sofrerem o desgosto, com o Newell’s do técnico Gerardo Tata Martino, que nas semifinais venceu em Rosario por 2-0 o Atlético Mineiro, mas teve o placar devolvido no fim no Horto, em jogo alongado por um blecaute que se ocorresse na Argentina geraria eternas acusações de catimba. O Galo levou nos pênaltis. Em 2014, a campanha do San Lorenzo foi redentora não só pelo ineditismo do título para encerrar a sina de único grande argentino sem a taça. A trajetória incluiu uma ressurreição ainda na fase de grupos. Na última rodada, o 3-0 sobre o Botafogo não era um confronto direto só contra os brasileiros, que terminaram na lanterna.

O terceiro gol era necessário para permitir saldo de um gol a mais que o Independiente José Terán, que tinha dez gols pró (mas dez sofridos) contra apenas seis dos azulgranas. Ignacio Piatti foi o herói, marcando o segundo e, já aos 44 minutos do segundo tempo, o terceiro.

É bom o River, porém, não se empolgar. Nem falemos do “silêncio atroz” em 2008 contra o San Lorenzo (a quem escapou de enfrentar diante da eliminação cuerva em outro duelo caseiro, também ontem, contra o Lanús), pois aquela partida mágica em que o time do Papa avançou com o empate em 2-2 no Monumental mesmo com dois jogadores a menos após estar perdendo por 2-0 a meia hora do fim não se encaixa em nosso filtro. Mas sim da Supercopa de 1991, em que um 2-0 na final contra o Cruzeiro de nada adiantou, pois depois os mineiros fizeram 3-0 no Brasil e fariam mais não fosse o goleiro Comizzo, a considerar justamente aquela derrota a melhor partida de sua vida!

Dentre outros torneios da Conmebol, os melhores exemplos vêm da própria Copa Conmebol. Em 1995, o Rosario Central foi campeão nos pênaltis após conseguir devolver no Gigante de Arroyito os mesmos 4-0 que havia levado do Atlético Mineiro no Brasil. Em 1999, o título foi do Talleres graças a um gol do zagueiro Maidana (depois jogador do Grêmio) no último minuto, assinalando um 3-0 que reverteu o 4-2 sofrido em Maceió no jogo de ida na insólita final com o CSA. E isso que os cordobeses já haviam feito 3-0 no Independiente Petrolero após derrota de 4-1 na Bolívia nas oitavas-de-final!

Há ainda um 4-0 do River no Olimpia após derrota de 2-0 no Paraguai nas oitavas da Supercopa de 1988 (com troco em 1990: cada um venceu o outro por 3-0 e os alvinegros avançaram nos pênaltis); um 4-1 do San Lorenzo, avançando nos pênaltis, após derrota de 3-0 para o Sportivo Luqueño na Copa Conmebol 1993; o Lanús levou de 3-0 do Vasco, com Wagner Diniz marcando o terceiro no último minuto, após vitória grená por 2-0 na Argentina pelas oitavas da Sul-Americana 2007; por fim, o San Lorenzo conseguiu um 4-1 no Banfield após derrota de 2-0 para os alviverdes nos 16-avos-de-final da Sul-Americana 2016, enquanto o Huracán conseguiu um 4-0 após derrota na Venezuela de 3-0 para o Anzoátegui na Sul-Americana 2017.

https://www.youtube.com/watch?v=ZFdDdnVYJpw

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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