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Há 35 anos, o San Lorenzo vencia a segundona. E reunindo mais público que os times da elite

No sábado de 6 de novembro de 1982, um jogo que ainda parece sem fim devolveu o San Lorenzo à elite do futebol argentino. Não só parece, ao ser relembrado através dos tempos; ele realmente o foi, com a plateia forçando a interrupção aos 36 minutos do segundo tempo. A duas rodadas do fim, aquela partida diante do El Porvenir coroava uma campanha redentora no pior momento da história do clube.

No ano anterior, o CASLA se tornara justamente o primeiro dos cinco grandes clubes argentinos a ser rebaixado (depois dele, Racing, River e Independiente cairiam, nessa ordem. Só o Boca ainda não têm essa mancha), em data ofuscada por ser no mesmo dia do único título argentino de Maradona. Nem mesmo o arquirrival Huracán, tradicionalmente o “sexto grande”, havia passado ainda por vexame igual (hoje já reúne quatro quedas…). A comoção na época foi tamanha que, para impedir eventuais descensos de outros grandes, instaurou-se para 1983 o famigerado sistema de promedios, ainda em vigor e que já ali salvou o River – mas condenou o Racing.

A inédita queda viera menos de dez anos depois de um dos melhores períodos da instituição do bairro de Boedo: em 1972, ao faturar tanto o torneio Metropolitano quanto o Nacional, ela se tornara a primeira bicampeã anual na Argentina, logrando os dois principais campeonatos do país. O título nacional de 1974 encerrara um raro período de conquistas em série, iniciado com o do Metropolitano de 1968, quando o Ciclón, treinado pelo brasileiro Tim, tornara-se o primeiro time a ser campeão argentino de forma invicta no profissionalismo. Alguns dos principais baluartes da época dourada estavam presentes no descenso, a começar pelos técnicos.

Inicialmente, o treinador era Victorio Cocco, ex-volante presente naqueles quatro títulos, suficientes para fazerem dele um dos quatro jogadores mais vitoriosos do futebol profissional sanlorencista até Leandro Romagnoli supera-los com um quinto troféu justo na Libertadores de 2014. Nascido na própria cidade santefesina de San Lorenzo que ajudara a inspirar o nome do clube (lá ocorrera uma das batalhas da guerra de independência da Argentina), a imagem de Cocco já estava manchada: a dívida trabalhista que ele exigira em juízo foi uma das maiores despesas que fariam o San Lorenzo ter de vender seu campo em 1979, ano em que se desfez também do campeão mundial Jorge Olguín (ao Independiente), Claudio Marangoni ( Sunderland), e Narciso Doval (aos EUA).

O jogo recordista contra o Tigre, no Monumental

O terreno do antigo Gasómetro, então maior estádio do país, passaria para a rede de hipermercados Carrefour e, a partir dali, o clube deixou seu bairro de Boedo e passou a peregrinar sem casa fixa pela cidade, carma que duraria até 1993. Cocco, recém-chegado, resolveu tirar o veterano Sergio Villar, sua antiga dupla e outro tetracampeão cuervo (o goleiro Agustín Irusta e o atacante Roberto Telch são os outros dois), do time titular. A barra brava não perdoou o técnico e o insultou constantemente até que saísse, já com a equipe à beira do abismo. El Sapo Villar voltou para os últimos três jogos e acabaria encerrando seu ciclo no San Lorenzo ali, depois de outras 444 partidas; este uruguaio é também quem mais jogou nos azulgranas.

Outros ídolos antigos também se retirariam de cena naquela campanha. Mario Rizzi, artilheiro na segunda metade dos anos 70 e autor do último gol no Gasómetro (um 4-0 no minúsculo Cippolletti de Río Negro, no penúltimo jogo na antiga casa), saiu ao fim do primeiro turno; Héctor Scotta (seu irmão Néstor passou pelo Grêmio), que havia regressado do Sevilla, também foi incapaz de repetir o desempenho notável de 1975, quando alcançou um recorde ainda insuperável de gols em um único ano; o defensor Rubén Glaría (que voltava após defender o clube entre 1970 e 1974, ano em que esteve na Copa do Mundo), justamente quem cometera o pênalti a originar o gol do rebaixamento; e o técnico que tentou tirar o time da lama: Juan Carlos Lorenzo.

Lorenzo fora o treinador do bi anual de 1972 e repetiria tal sucesso em 1976, já no Boca Juniors, onde foi bi também na Libertadores – em 1977 e 1978, as primeiras vencidas pelo Boca. Após o rebaixamento, decidiu ficar e convenceu promessas como o volante Leonardo Madelón a fazer o mesmo (o jovem de 17 anos pensara em largar o futebol). Ele e o atacante Jorge Rinaldi, de 19 anos, intercalariam seus jogos com o serviço militar obrigatório; Madelón recebeu baixa antes da hora e se livrou da Guerra das Malvinas após presentear um oficial com uma camisa azulgrana.

Já El Chancha Rinaldi, que usou cabelos curtos pela única vez na carreira, escapou da Guerra porque o subtenente que lhe calhou era filho de um fanático pelo San Lorenzo que teria declarado ao militar que “se algo ocorre com Rinaldi no serviço, te mato”. O atacante chegou a ter se apresentar por alguns dias, até conseguir licença na eclosão do conflito, estendida até a baixa definitiva. Afastado do descenso (quem esteve mais presente foi seu irmão, Osvaldo) por conta de uma lesão que também lhe cortara do mundial sub-20 de 1981, acabaria o goleador azulgrana, com 15 tentos na campanha.

O pontas López e Morel Bogado, “símbolos de una euforia ganhadora” em legenda da capa; e o goleador Rinaldi, com cabelo do serviço militar

Outros rebaixados que deram a volta por cima (ou melhor, para cima) foram o incansável Armando Quinteros, que perdia dois quilos por jogo na dupla com Madelón; e o goleiro Rubén Cousillas, que, apesar da irregularidade, conquistaria a massa sanlorencista pelo amor à camisa: o episódio de ficar para a B se somaria a outros, como jogar depois que o já titular José Luis Chilavert abandonou a concentração, mesmo El Flaco tendo passado a noite em claro ao acompanhar no hospital um irmão doente (em 1986) ou quando se improvisou como jogador e técnico após Nito Veiga demitir-se do comando (em 1987).

Quem chegou já para a Primera B foi o ponta Héctor Raúl López. Seria o vice-artilheiro da campanha campeã de 35 anos atrás, com doze gols vindos dos dois pés e do jogo aéreo. Especialista no “mundo ascenso”, onde viveu toda a carreira, subiria também com o Gimnasia LP, em 1984 – sua ida para lá foi acertada pouco após o título, em uma troca com os platenses pelo passe de Jorge Higuaín (pai do atacante do Real Madrid). Curiosamente, o acesso do Gimnasia impediu que o recém-rebaixado Racing também conseguisse voltar à elite logo depois de cair, obrigando este outro time grande a passar um ano a mais na segundona.

Outra boa peça contratada para a campanha foi outro ponta, o veterano paraguaio Eugenio Morel Bogado, campeão da Copa América de 1979 sobre o Brasil. Ainda ágil, marcou oito vezes e forneceu cruzamentos para vários outros, incluindo, indiretamente, o da jogada do título. Também contribuiu para o clube sendo pai de Claudio Morel Rodríguez, que, ao salvar em cima da linha um tentativa do Nacional uruguaio ao fim de um jogo em Montevidéu, impediu o CASLA de ser eliminado na primeira fase da Copa Mercosul de 2001. Aquela que acabaria sendo a primeira taça internacional dos cuervos e sobre a qual já falamos aqui, no início do ano.

Ao todo, o plantel de 35 anos atrás era formado por Rubén Cousillas, Rubén Insúa, Hugo Verdecchia, Norberto Díaz, Osvaldo Biaín, Jorge Rinaldi, Raúl Moreno, Carlos Schamberger, Armando Quinteros e Óscar Quiroga; Pablo Comelles, Daniel López, Miguel Batalla, Hugo Moreno, Héctor Osvaldo López, Leonardo Madelón, Claudio Peréz, Eugenio Morel Bogado e Héctor Raúl López; Hugo Sánchez, Óscar Ros, Ricardo Demagistris, Eduardo Abrahamian, Claudio Marasco, Ricardo Collavini, Víctor Barreras e Ernesto Aráoz. São, respectivamente, os jogadores da imagem abaixo, da esquerda para a direita.

O plantel campeão há 35 anos

A referida jogada do título teve a assinatura da peça mais valorizada na segundona: o volante Rubén Darío Insúa. No dia do rebaixamento, foi implorado por torcedores para que ficasse, apesar das ofertas de outros clubes. Além da garra e o fato de vir de uma família fanática pelo San Lorenzo (morava a sete quadras do Gasómetro; seu pai era sócio vitalício; e outro parente, Jaime Lema, fora goleiro no título de 1933, o primeiro profissional), fora poupado por ter sido afastado de alguns jogos por conta do serviço militar também.

El Gallego Insúa, com apenas 21 anos, seria a alma da equipe naquelas 42 rodadas. Não desde o início; desentendimentos com Lorenzo chegaram a afastá-lo por seis jogos. Já quando o treinador já era José Yudica (último em pé, na foto acima), ficou intocável. Este já havia ajudado o Quilmes a subir na temporada anterior (nos cerveceros, fora também o técnico campeão da elite em 1978) e assumira o cargo de Lorenzo na antepenúltima rodada do primeiro turno, depois que o antecessor acertara com o Vélez. Mesmo volante, Insúa ainda marcou onze vezes.

Naquele campeonato de fórmula confusa (os times estavam divididos em duas chaves com onze cada, com todos jogando entre si e também com os do outro grupo em turno e returno; quem somasse mais pontos, considerando ambas as chaves, seria o campeão), episódios dos mais marcantes ocorreram em meio aos oito pontos de vantagem para o segundo colocado, em época em que a vitória valia dois e não três pontos. Por exemplo, contra o All Boys, onde estava jogando Sergio Villar, o antigo ídolo recebeu uma placa de agradecimento, mesmo também tendo ajuizado uma ação contra o Ciclón. Já contra o Tigre, no Monumental de Núñez, na sexta rodada, houve mais plateia do que em todos os jogos do fim de semana na elite somados.

Foram 75 mil pessoas a dar sua mostra de paixão pelo CASLA ao acompanhar um 1-1. Apenas as finais da Copa do Mundo de 1978 e da Libertadores de 1996 levaram mais gente de uma vez ao estádio do River; contando-se apenas o campeonato argentino, aquela partida de segunda divisão ainda é a de maior público já visto no torneio. “Eu sabia que havia uma loucura generalizada, mas no primeiro jogo contra o Gimnasia no campo do Ferro, não podia crer no pessoal qua havia. Uma loucura. Bateram-se recordes, até a El Gráfico fez notas com sociólogos e enquetes se perguntando se o sábado não era o dia do futebol; antes estava instalado que o sábado era do ascenso e domingo, da primeira divisão”, declararia Rinaldi em entrevista à própria revista El Gráfico já em junho de 2017.

Folclore: a torcida carregou na volta olímpica o técnico adversário, Veira, antigo ídolo como jogador

Os principais concorrentes ao título e acesso direto foram o Gimnasia LP, o Chacarita (no grupo A) e o Atlanta (no grupo B, o sanlorencista). As chances de ser superado por alguns deles limaram-se na 40ª rodada. Poderia ter vindo até na anterior, se o Deportivo Español tivesse sido vencido na Bombonera, em um duelo encerrado em 0-0. Já no estádio do Vélez, o El Porvenir também conseguia mostrar resistência, até que Morel Bogado cruzou e Rinaldi foi derrubado dentro da grande área após tentar dominar a bola com o peito, com a penalidade máxima sendo assinalada pelo árbitro Rubén Torres.

“No campo do Vélez, havia 60 mil pessoas contra El Porvenir. (…) Sabíamos que não podíamos falhar. Como empurrava a torcida nesse dia! Buscamos, mas não conseguíamos marcar. Até que chegou o penal e eu meti o gol”, declarou o cobrador Rubén Insúa, que havia convertido todos os cinco penais que executara no certame e acertaria aquele no canto direito. “Faltavam apenas dez minutos para o final. Quanta tensão! Foi a emoção mais grande da minha vida”. E os tais minutos que faltavam foram logo suprimidos pela torcida: as comemorações foram estendidas ao gramado, invadido pouco depois e impedindo o prosseguimento da partida. A AFA decidiu manter o 1-0, o título e o acesso. A edição pós-jogo da revista El Gráfico ainda reservou uma curiosa anedota com o então ditador do Brasil.

“Devoção é o que tem pelas cores azulgranas o atual presidente do Brasil, João Baptista Figueiredo. A história nasceu quando o primeiro magistrado viveu em Buenos Aires e foi deslumbrado pelo primeiro título profissional do San Lorenzo, em 1933. O seguia a todas as partes e, quando já como presidente chegou à Argentina em 1980, recordou emocionado: ‘é um momento muito especial para mim, me sinto garoto outra vez graças ao San Lorenzo’. Seu comentário, ao inteirar-se do acesso, foi também emotivo: ‘nem tudo no mundo é crise econômica. Hoje é um dia feliz'”. João Figueiredo, de fato, morou em sua adolescência na Argentina devido ao exílio político do pai, general derrotado na Revolução Constitucionalista de 1932. Como contamos aqui, aquele San Lorenzo de 1933 tinha uma verdadeira colônia brasileira – e paulista.

Já um das oito derrotas veio na última rodada e também renderia anedota parecida. Foi em um 1-0 diante do Banfield, único a vencer seus dois compromissos contra os campeões. O Taladro era treinado por Héctor Veira, que havia jogado por lá em 1974. Veira, todavia, era bastante identificado com a massa azulgrana, sendo oficialmente eleito no centenário em 2008 o maior ídolo em Boedo, mesmo tendo no passado também jogado (e se declarado torcedor) no rival Huracán. Ao fim da partida, os torcedores resolveram carregar El Bambino e não Yudica na volta olímpica. O próprio Veira acabaria sendo chamado para dirigir o San Lorenzo na volta à elite. E o elenco demonstraria que voltara para ficar, terminando vice-campeão no metropolitano de 1983, um ponto atrás do campeão Independiente. Rinaldi e Insúa chegariam à seleção. E este, a fazer sucesso também no próprio Independiente, estaria 20 anos depois à frente de outra conquista sanlorencista especial: a primeira edição da Copa Sul-Americana, em 2002 – história já retratada neste outro Especial.

Versão revista e atualizada desta nota publicada pelos 30 anos do acesso, em 6 de novembro de 2012.

A massa azulgrana invadindo o estádio do Vélez após o gol do acesso. Ao lado, El Gráfico retratando “El Negro” Quinteros na firme briga pelo título da elite em 1983, já na volta à ela (e a posse do presidente Raúl Alfosín, o primeiro pós-ditadura)

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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