Primeira Divisão

Huracán de 1973, a versão argentina do Corinthians de 2017?

Corinthians e Huracán são marcados por jejuns em suas histórias, estereotipados com classes humildes, seus redutos são Parques (São Jorge/de los Patricios, respectivamente) e têm variados nomes em comum – jogaram nos dois, nessa ordem, o ponta-direita Marcos Pereira Martins, ex-seleção brasileira; o goleiro Carlos Buttice e o meia-esquerda Héctor Veira, ambos curiosamente ídolos no arquirrival huracanense San Lorenzo; o zagueiro Fernando Ávalos; e o volante Matías Defederico, cuja contratação incluiu no pacote também Mariano Torres. Se o Huracán homenageia o pioneiro da aviação argentina, o Corinthians quase se chamou Santos Dumont. Pois outra semelhança apareceu em 2017: o roteiro do título corintiano assegurado ontem lembra o do dos quemeros de 1973.

O título do Torneio Metropolitano de 1973 ainda é o único que o Huracán conseguiu na elite profissional argentina. Na época, desfez jejum de 44 anos (o título anterior foi válido pelo campeonato amador de 1928, mas ele só foi finalizado em meados de 1929), tempo igualado exatamente neste ano de 2017. Já retratamos aquela conquista em diversos outros Especiais do site, e não é à toa: jejum à parte, ela foi especial ao futebol nacional. Foi por causa dela que o técnico daquele elenco chegou à seleção: César Menotti, dali a meia década comandante da primeira Copa do Mundo vencida pelo país, em um elenco repleto de quem ainda defendia o clube ou havia passado pelo elenco de 1973.

Mas Menotti não iria à seleção por “apenas” desfazer aquele jejum. O time não apenas foi campeão, mas foi campeão em altíssimo estilo. Nos três primeiros jogos em casa, fez 6-1 no Argentinos Jrs, 5-2 no Atlanta e 5-0 no Racing, mesmo placar aplicado na décima rodada em pleno Gigante de Arroyito sobre o Rosario Central (que naquele mesmo ano venceria o outro campeonato argentino em disputa, o Torneio Nacional). No primeiro turno, ainda venceu fora de casa o Vélez, vice-campeão do ano anterior, e um Independiente multicampeão da Libertadores na época, dentre outros feitos.

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Menotti é o primeiro sentado na grama, da esquerda para a direita

Diferentemente do Corinthians de 2017, o Huracán não chegou a passar invicto o primeiro turno, perdendo duas vezes, para a dupla Boca e River. Mas a vantagem acumulada nas primeiras 23 rodadas foi a melhor até então do profissionalismo argentino. Era de sete pontos, quando as vitórias ainda valiam dois e não três, com o Globo somando 33 pontos de 40 disputados. Nenhum time havia vencido com tantos gols as quatro primeiras rodadas. O próprio clube nunca havia vencido os seis primeiros jogos. Nas dez primeiras rodadas, foi o time mais goleador em 35 anos. Eis algumas descrições dadas na época ao desempenho quemero:

“Foram seis gols no Argentinos Jrs. Para todos os gostos e em todos os estilos. Foram seis gols e poderiam ser mais”.

“O Huracán seguia juntando. O Huracán seguia tocando. O Huracán seguia chegando. Fiel a esse futebol que já é religião”.

“Ao Huracán já não se pode pedir: joga, ganha e goleia. Se isto do domingo se repete, aceite minha sugestão. Mesmo que você seja do Boca, do River ou do Racing, vá ver o Huracán. Vá, que não se arrependerá. E o preço do ingresso – apesar do aumento – lhe parecerá barato…”

“Isso é futebol, senhores!”

Tratando-se do Huracán, pode-se dizer isto: ganhou só por dois gols de diferença: dois a zero. E sem jogar bem. Tratando-se do Huracán, é quase um fracasso. Que mal se acostuma a gente!”

“Por algo sua torcida cantou tão alegremente durante toda a partida de domingo e produz essas arrecadações que tranquilizam o tesoureiro huracanense”

Por outro lado, tal como o Timão desse ano, o time argentino perdeu o ímpeto arrasador no segundo turno. O principal inimigo do clube era, por ironia, o sucesso repentino. A equipe começou a ser reiteradamente desfalcada por convocações à seleção. René Houseman (que no ano anterior jogava a terceira divisão, da qual foi campeã com o Defensores de Belgrano), Miguel Ángel Brindisi, Carlos Babington (décadas depois, o presidente que fez jogo duro para liberar Defederico aos alvinegros), Jorge Carrascosa e Roque Avallay por vezes defendiam conjuntamente a Albiceleste.

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Houseman, Brindisi e Avallay juntos na seleção, ironicamente a maior inimiga daquele Huracán. E Basile erguido na volta olímpica

Somente Avallay, por lesão, terminou não participando da Copa do Mundo do ano seguinte, na qual Houseman, com três gols, foi o destaque argentino. Houseman e Brindisi (que na Copa fez de falta o gol de honra na derrota para o Brasil) chegaram a deter o recorde individual de partidas pela seleção. Destes jogadores, somente Carrascosa (que seria o capitão da Argentina na Copa de 1978, mas renunciou a convocação às vésperas do torneio por motivações políticas – foi só assim que Daniel Passarella assumiu a braçadeira) não jogava no ataque.

Assim, no segundo turno o principal destaque huracanense foi sua defesa, xerifada pelo veterano Alfio Basile, um dos símbolos do Racing multicampeão da década anterior. O time, mesmo sem necessariamente virar retranqueiro, passou cinco jogos seguidos sem sofrer gols, mas conseguiu somente uma vitória por mais de um gol de diferença. 

A campanha do primeiro turno, de todo modo, cumpriu bem o papel. Afinal, o clube foi campeão por antecipação mesmo perdendo. Foi em um 2-1 sofrido para o Gimnasia LP, na antepenúltima rodada. O concorrente ao título, o Boca, também perdeu na rodada e já não poderia alcançar os quemeros. Avallay, Babington e Brindisi estavam naquele dia em Assunção, concentrados para a partida contra o Paraguai nas eliminatórias e os festejos chegaram até o hotel, sendo o trio autorizado a descer para comemorar, enquanto “até os cachorros” acompanhavam famílias inteiras a comparecer no estádio Tomás Adolfo Ducó.

Não à toa, o Huracán foi rotulado como “um dos candidatos a ganhar o título” no oscarizado filme O Segredo dos Seus Olhos, na antológica cena gravada no estádio do clube, em história a se passar em meados dos anos 70. O futebol do time de 1973 foi eleito ao lado simplesmente da célebre La Máquina do River dos anos 40 como o mais belo do futebol argentino, em eleição promovida pelo Olé em 1999.

Para saber mais, clique aqui para acessar nota onde dissecamos aquela conquista quando ela completou 40 anos, transcrevendo textos da época rodada a rodada especialmente daquele primeiro turno arrasador. Algumas filmagens daquele time campeão aparecem a partir do primeiro ao segundo minuto do primeiro vídeo abaixo. Mais abaixo, clipe que contém filmagens dos festejos na última rodada no estádio Ducó, com o vice Boca perfilado aplaudindo os campeões.

Dedicamos essa nota ao saudoso Tiago de Melo Gomes, fanático pelo Huracán e que vivenciou pessoalmente aquele elenco; à sua filha Alice, por sua vez fanática corintiana; ao craque Houseman, que recentemente descobriu-se acometido por câncer na língua; e desde já a Omar Larrosa, artilheiro daquele elenco campeão, vencedor da Copa de 1978 (como Houseman) e que fará 70 anos depois de amanhã.

Para relembrar os argentinos do Corinthians, clique aqui.

 

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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