Primeira Divisão

Manuel Giúdice, 100 anos: volante de “La Máquina” do River, técnico das 1ªs Libertadores do Independiente, do 1º título do Vélez…

Giúdice com o Independiente campeão argentino de 1970

“Grandes jogadores há muitos, grandes equipes, bem pouco”, repetia Manuel José Giúdice, nascido há cem anos na cidade de Córdoba, mas com história em algumas das principais equipes de Buenos Aires. E não apenas em “equipes” como sinônimo de clubes, mas sim de elenco em perfeita comunhão. Além de jogar em La Máquina, o timaço do River dos anos 40 e de ser o técnico das duas primeiras Libertadores do Independiente (e do futebol argentino, no bi de 1964-65), El Colorado (era ruivo) também fez história no forte Huracán da virada dos anos 30 para os 40 e treinou ainda o primeiro título argentino do Vélez, em 1968. E ainda a conquista mais expressiva do sumido Atlanta…

Filho do casal italiano Nuncio Giudice e Concepción Intile, o volante Giúdice nasceu no bairro de Alta Córdoba e seu primeiro clube foi o Atlético Nacional da cidade natal, ingressando lá em 1930, nos juvenis – a equipe hoje se chama Libertad, em alusão à rua onde os jogadores se reuniam após os jogos (mudança oriunda de um decreto que proibiu o uso do termo “Nacional” em nomes de associações civis, sociais e desportivas). Ficou até 1933, passando no ano seguinte ao General Paz Juniors, ainda nos juvenis. Chegou a ser testado em 1935 no San Lorenzo, que possuía jogadores cordobeses. Viajou por dois dias de trem sem avisar em casa, mas não houve acerto financeiro com o Juniors. No time adulto do clube, foi trivice-campeão cordobês, de 1935 a 1937.

Em um futebol ainda semiprofissional, Giúdice mudou-se em 1938 para a cidade de Bella Vista, na província de Tucumán, e por lá defendeu o Bella Vista, conseguindo o título tucumano invicto de 1938. Em 1939, então, voltou a ser testado em Buenos Aires. Foi aprovado justo no rival sanlorencista, o Huracán. Estreou na turnê que o time fez pelo Brasil no início do ano. Já a primeira apresentação oficial deu-se em 19 de março, auspiciosamente: tanto pelo resultado, em um 5-1 no Rosario Central, como também por já marcado um gol, embora não fosse do seu feitio (seriam 17 em 167 jogos pelo clube). Foi na estreia da temporada de 1939, das mais bem recordadas da história huracanense. 

Pouco anos antes, a AFA instituíra de forma oficial Boca, River, Independiente, Racing e San Lorenzo como “os cinco grandes”, baseados em vinte anos de permanência seguida na elite, mínimo de dois títulos e 15 mil sócios, o único requisito que havia faltado ao Huracán. Pois em 1939 o Globo virou o primeiro time a vencer os cinco no mesmo turno, o primeiro, no qual terminou líder. Foi um raríssimo ano em que o clube venceu os dois clássicos contra o San Lorenzo, um deles por 5-2. Derrotou por 2-1 o River no Monumental. E, além da goleada no Central, obteve um 6-2 no Platense, um 6-3 no Lanús, um 7-2 no Atlanta e um 7-1 no Argentino de Quilmes. Mas derrapou no segundo turno e a taça ficou com o Independiente. Restou consolar-se com o vice-campeonato.

O recordado Huracán de 1939. Giúdice é o primeiro jogador em pé, ao lado do técnico, que era ninguém menos que o ex-artilheiro Guillermo Stábile

A equipe do bairro de Parque de los Patricios também esteve no pódio em 1940, ainda que a treze pontos de um Boca campeão com sobras, mas com direito às maiores goleadas que já aplicou sobre o River (um 4-0 só igualado pelo celebrado time de Pastore em 2009) e Estudiantes (6-0). Em 1941, o campeonato não foi tão bom, mas o Huracán foi oficialmente reconhecido como grande pela AFA, com o número de sócios evoluindo aos montes – a ponto de em 1945 ter 23 mil, só quinhentos a menos que o Boca. O de 1942 também foi marcante: os quemeros brilharam contra o River, que naquele ano não só foi bicampeão como viu nascer sua celebrada La Máquina

Globo terminou invicto contra aquele timaço no campeonato (1-1 em casa e 2-0 fora na rodada seguinte à do título millonario) e o derrotou na final da Copa Adrián Escobar (onde eliminou nas semifinais o San Lorenzo). Após tantos anos brilhantes com o Huracán, mas sofrendo com concorrência dos riverplatenses Bruno Rodolfi e José María Minella, nome do estádio de sua Mar del Plata natal na Copa de 1978, Giúdice estreou pela seleção. Foi em 4 de abril de 1943, atuando 54 minutos no 1-0 sobre o Uruguai dentro do Centenário. Foi sua única partida pela Albiceleste.

O Huracán foi bi em 1943 da Copa Escobar, enquanto pelo quinto ano seguido terminou o campeonato entre os quatro primeiros. Em 1944, o time decaiu para sétimo, mas venceu outra copa argentina (a Copa Británica, derrotando por 4-2 o Boca na final após eliminar por 4-1 o Newell’s e por 4-3 o rival San Lorenzo), ganhou de 4-1 de La Máquina do River e, sobretudo, conseguiu sua maior goleada no clássico, com um 5-1 no San Lorenzo logo na primeira rodada. Giúdice foi então adquirido pelo River em 1945. Apesar de La Máquina encantar, os millonarios haviam perdido justo para o Boca os dois torneios anteriores e se interessaram naquele volante batalhador e criterioso na distribuição de bola.

O River então foi campeão em 1945. Giúdice participou de 21 das 30 partidas. Mas terminou não se firmando: ainda naquele campeonato, começou a perder posição para a revelação Néstor Rossi. Em 1947, El Colorado desembarcou no Platense, na época um dos clubes pequenos mais saudáveis – foi o penúltimo deles a ser rebaixado (já nos anos 50), desconsiderando-se o Huracán. Mas até o Calamar sofreu com a greve que paralisou o futebol argentino em 1948. Muitos grevistas, como Di Stéfano, rumaram ao Eldorado Colombiano e o volante não foi exceção, defendendo o Deportivo Cali até 1951, quando voltou à Argentina. Os alviverdes tinham consigo treze argentinos.

Nos outros clubes onde teve boas passagens: River, Deportivo Cali e como técnico do primeiro Vélez campeão

Suspenso pela AFA por ter ido à Colômbia sem o passe, resolveu pendurar as chuteiras. Graduado no curso de técnico em 1955, teve seu primeiro trabalho na nova função no Argentinos Jrs, em 1956, após alguma hesitação. O time, bem mais modesto que atualmente, só não caiu nos critérios de desempate. O primeiro sucesso veio no Atlanta, o time pequeno intruso da vez entre os grandes no início dos anos 60. Na equipe de Villa Crespo, Giúdice venceu em 1960 a Copa Suécia, troféu que se desenrolava desde 1958, inicialmente para manter os clubes ativos enquanto o campeonato se paralisava por conta da Copa do Mundo. É o troféu oficial da AFA mais expressivo do Bohemio

O Huracán, na época uma lembrança pálida do belo período de vinte anos antes, recontratou o ídolo para ser seu técnico no restante de 1960. Mas Giúdice não foi o suficiente para evitar um desempenho fraco. Em 1961, passou ao Nueva Chicago, da segundona. E acabou marcante: naquele ano, a Conmebol promoveu um Sul-Americano de seleções representadas por jogadores das segundas divisões de seus países. Os argentinos foram representados pelo Chicago, incluindo Giúdice, e terminaram vices. El Colorado voltou ao Huracán, sem maior êxito, e após passagem rápida pelo Platense ingressou em 1963 no Independiente. O campeonato já estava na reta final.

Armando Renganeschi (campeão como jogador por Fluminense e São Paulo nos anos 40) era quem havia começado como técnico do Rojo em 1963. O time estava no páreo, encerrando o primeiro turno a dois pontos do líder River, mas Renga caiu após derrota de 4-0 em casa justo para o rival Racing na 17ª rodada. Giúdice assumiu para as nove rodadas finais. E conseguiu cumpri-las de modo invicto, vencendo em sete delas. Na antepenúltima rodada, bateu por 2-1 o River, resultado que igualou ambos na liderança. Depois, os de Avellaneda contaram com a ajuda do Boca, que, sem chances de taça (havia priorizado a Libertadores, onde foi vice), esforçou-se para atrapalhar o rival e venceu-o em pleno Monumental na penúltima enquanto o Rojo batia por 3-0 o Argentinos Jrs, virando líder isolado.

Na última rodada, o título foi garantido com um estrondoso 9-1 no San Lorenzo, ainda que a goleada se construísse por protesto dos oponentes (com direito a gol contra proposital) contra a arbitragem. Giúdice era daqueles técnicos disciplinadores (“para nos concentrar, nos enclausurava por três dias”, declararia Vicente de la Mata), o que não o impedia de ser figura querida de seus jogadores. Como campeão, o Independiente ingressou na Libertadores de 1964, na época em que o torneio ainda se chamava Copa dos Campeões, e no sentido literal – somente os campeões nacionais jogavam. Começava a nasce uma mística continental, iconizada pela posa perfilada dos pupilos de Giúdice ao invés da divisão entre agachados e em pé.  Surgiu para atrapalhar os registros fotográficos da imprensa, duplicando a largura das fotos em reação às críticas ferrenhas após aquele 9-1.

Independiente campeão da Libertadores de 1964. Giúdice, com camiseta azul escura com a sigla “DT” (de Diretor Técnico), é o homem mais à direita na segunda fileira de sentados

Giúdice teve estrela especialmente em duas decisões: manteve no elenco Luis Suárez, que viria a ser o autor da histórica virada por 3-2 sobre o Santos de Pelé (então bi seguido) no Maracanã pelas semifinais, após derrota parcial de 2-0. E, para substituir para as finais o lesionado goleiro titular Osvaldo Toriani, não usou o substituto imediato Hugo Trucchia e sim o reserva do reserva, o jovem Miguel Ángel Santoro. Santoro justificou a aposta fechando o gol e começando a ser o maior goleiro do clube, no qual venceria quatro Libertadores, incluindo aquela, a primeira do futebol argentino. Adiante, o Rojo foi páreo duro para La Grande Inter da época pelo Mundial. Cada um venceu em casa, e no jogo-extra na neutra Espanha os italianos venceram a dez minutos do fim da prorrogação.

O Independiente, ingressando já nas semifinais, ganhou nova Libertadores em 1965, sobre o Peñarol, no primeiro bi do futebol argentino no torneio. Mas os dias de Giúdice estavam contados: o adversário no Mundial foi novamente a Internazionale, que dessa vez se impôs mais contundentemente. Ganhou de 3-0 em Milão e pôde dar a volta olímpica na Argentina, segurando o 0-0 em Avellaneda. El Colorado então renunciou. Após passagem pelo Rosario Central, assumiu o Vélez, então um time simpático detentor de um clube social dos melhor reconhecidos, prioridade tamanha na presidência de José Amalfitani (que dá nome oficial ao estádio velezano) que, ainda que involuntariamente, ficava carente de títulos no futebol. Pendência encerrada em 1968.

O Vélez ganhou o Torneio Nacional após triangular com os gigantes Racing e River, após o trio ter terminado empatado na temporada regular. No jogo decisivo contra o Racing, Omar Wehbe eternizou-se como autor de três gols da vitória, ofuscando outra acertada escolha de Giúdice: para substituir o suspenso Alberto Ríos, o capitão do elenco fortinero, o treinador apostou em Roberto Moreyra. Foi ele quem abriu o placar do 4-1. Em 1969, Giúdice seguiu trabalhando, heresia, no San Lorenzo. Sem êxito como azulgrana, em 1970 voltou a Avellaneda e ao Independiente.

Em um elenco-embrião do time que venceria quatro Libertadores seguidas entre 1972 e 1975, Giúdice teve seu canto do cisne no Torneio Metropolitano. Em um clube orgulhoso mais das conquistas internacionais, aquela doméstica é das mais recordadas: na última rodada, o time enfrentaria o Racing e perdia por 2-1. Virou para 3-2, com o gol da vitória surgindo nos dez minutos finais. O resultado igualou Independiente e River. E, nos critérios de desempate, deu Rojo. Na nova década, seu trabalho mais destacado foi no bom momento que o Atlético Tucumán atravessou no período.

El Colorado faleceu em 27 de junho de 1983.

Atlético Tucumán campeão tucumano de 1977. Giúdice aparece como primeiro homem agachado, antes do goleiro, da esquerda para a direita
 

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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