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Craque uruguaio Walter Gómez, desfalque do Maracanazo e “antecessor” de Francescoli no River, faria 90 anos

A história do River é repleta de uruguaios bem recordados. Antonio Alzamendi fez o gol do único título mundial, em 1986, em elenco onde Nelson Gutiérrez garantia (até ferozmente) a segurança na defesa. Carlos Sánchez, Camilo Mayada e Rodrigo Mora participaram da recente redescoberta de títulos internacionais em Núñez, e já nos anos 60 também foram finalistas da Libertadores um importado do Barcelona (Luis Cubilla) e um recorde de transferência (Roberto Matosas), assim como Jorge Villazán e Gabriel Cedrés figuravam nos elencos campeões de continentais 1986 e 1996, respectivamente. Enzo Francescoli lidera todos eles em idolatria e teve seu jogo festivo de despedida contando com o pontapé inicial conveniente do pioneiro dessa trupe. Aquele capaz de fazer a própria torcida preferir jejuar a não poder pagar para vê-lo: Walter Gómez, que hoje faria 90 anos.

Não que Gómez tenha sido o primeiro uruguaio no River. Em 1932, o clube conquistou seu primeiro título argentino profissional e tinha consigo Pablo Dorado, autor do primeiro gol uruguaio na final da Copa do Mundo de 1930 (também o primeiro gol da história das finais de Copa). Ainda nos idos de 1913, jogou Zoilo Canaveri, que curiosamente defenderia a seleção argentina – e consagrado mais por Boca, Racing e Independiente (desconhecemos vira-casaca maior no futebol platino!). Mas Walter foi o primeiro charrua a realmente dar certo como millonario.

Essa trajetória começou indiretamente em um clássico histórico do futebol vizinho. Em 9 de outubro de 1949, Peñarol e Nacional terminaram de forma renhida um primeiro tempo. Os aurinegros haviam marcado duas vezes após os 38 minutos. O segundo gol veio de um pênalti bastante contestado pelos tricolores, a ponto de Eusebio Tejera ser expulso por empurrar o juiz. Walter fez pior: mesmo jovem e tímido fora do campo, ali chutou o árbitro (ou o socou, em outras versões. Talvez ambos) após o gol ser marcado. A cobrança em si foi perdida, mas outro oponente, Ernesto Vidal, marcou aproveitando o rebote. Gómez e colegas reclamavam que Vidal teria invadido a área antes do tempo. Para eles, o juiz estaria “comprado”.

Com dois a menos no placar e na quantidade de jogadores, o Nacional, temendo uma goleada, não voltou para o segundo tempo, no que ficou conhecido como El Clásico de la Fuga. Aquele Peñarol terminaria campeão invicto e com sobras e, especialmente no setor ofensivo (apelidado de “Esquadrilha da Morte”), naturalmente compôs a base da seleção que no ano seguinte venceria a Copa do Mundo. Além do goleiro Roque Máspoli e do xerife Obdulio Varela, eram carboneros quatro dos cinco titulares do ataque celeste em 1950: o ponta-direita Alcides Ghiggia, o centroavante Oscar Míguez, o meia-esquerda Juan Alberto Schiaffino e o citado ponta-esquerda Ernesto Vidal – um italiano curiosamente criado na Argentina a ponto de ter defendido antes o Rosario Central, mas adotado pelos uruguaios.

Ainda garoto (ao chegar na Argentina foi apelidado de “botija”, de significado semelhante) no Nacional e pela seleção – em jogo contra a Argentina no Gasómetro.

A vaga que sobrava, na meia-direita, deveria ser de Walter Gómez, mas ficaria com Julio Pérez, em parte porque a outra opção era o argentino Juan Hohberg (quem complementava aquele ataque do Peñarol), ainda impossibilitado legalmente de se naturalizar. Gómez, por sua vez, tinha mais experiência na seleção, o que não lhe impediu de sofrer uma suspensão de um ano em função do incidente, apesar de até haver abaixo-assinado que pedia o relaxamento da sanção. Para substituir Gómez, o Nacional adquiriu em 1950, a um mês da Copa, o passe do próprio Julio Pérez, que jogava no modesto River Plate uruguaio. Walter, por sua vez, rumou ao River “principal”. O argentino.

Antes de tudo isso, Gómez começou naturalmente nas peladas de rua de Montevidéu, onde preferia jogar de volante. Mas ainda ali foi deslocado à força para o ataque por Washington, irmão mais velho. “Às vezes, até me pegava, mas reconheço que tinha razão: minha posição era de atacante”, afirmaria Walter, cujo primeiro clube profissional foi o Central (atual Central Español). Estreou em 1944. Nos campeonatos daquele ano e no de 1945, o time ficou exatamente no meio da tabela, com dois quintos lugares em torneios de dez clubes. Mas Walter se destacava, a ponto de estrear na seleção uruguaia em 15 de agosto de 1945. Foi em jogo em prol de jornalistas esportivos onde ele foi incluso de última hora, pois algumas estrelas se negaram a jogar.

A estreia não foi auspiciosa. Foi em um 6-2 para a Argentina pela Copa Newton, no velho Gasómetro do San Lorenzo. Entrou no decorrer da partida para substituir Luis Ernesto Castro. Mais tarde, afirmaria que “sempre me senti bem tratado e alguns dizem que fui o primeiro estrangeiro ovacionado. Vim com 18 anos jogar um Uruguai-Argentina, e quando saí de campo por uma bolada no nariz, o estádio me aplaudiu. Perdemos de 6-2 e não podia acreditar”. No início do ano seguinte, mais três jogos: em janeiro, um 1-1 contra o Brasil no Centenário pela Copa Rio Branco e, pela Copa América, 4-0 sobre a Bolívia no estádio do Independiente; e, ainda pela Copa América, derrota de 3-1 em fevereiro para a campeã Argentina no Gasómetro. As únicas quatro partidas de Gómez pela Celeste.

Ele não marcou gols pela seleção uruguaia e ficou só em quarto em uma Copa América onde não foi titular, mas chamou a atenção do Nacional, reforçando-o para 1946. Os tricolores vinham de perder os dois campeonatos anteriores para o rival, mas responderiam a partir dali com um tri seguido. Mesmo jovem, Gómez foi titularíssimo ali e nas boas campanhas internacionais: em 1947, o time venceu uma Taça do Atlântico, a envolver Peñarol, Vasco, Palmeiras, River e Boca.

Gómez ganhou muito do Boca na Bombonera, incluindo a maior goleada do River lá (3-0 em 1951, com ele marcando o terceiro à esquerda) e a volta olímpica de 1955. Ele está ao meio, entre Federico Vairo e Ángel Labruna

Já em 1948, pela Copa Ricardo Aldao (tira-teima corrente na época entre os campeões de Argentina e Uruguai para definir moralmente o melhor time do Rio da Prata) válida por 1946, aplicou-se um 7-2 no San Lorenzo. No mesmo ano, veio um bom Sul-Americano de Clubes, torneio considerado embrião da Libertadores. O Vasco foi campeão nos pontos corridos, mas os uruguaios brilharam com um 3-0 no River. Em seguida, houve a famosa greve de jogadores na Argentina e no Uruguai, algo que também impediu mais jogos de Gómez pela seleção antes daquela suspensão (com a greve ainda em curso, só jogadores juvenis foram usados na Copa América de 1949, por exemplo).

Se no Nacional era ídolo, no River seria ainda mais. Passou com sucesso de meia-esquerda a centroavante. A torcida criou-lhe o cântico “a gente já não come/para ver Walter Gómez”. Algo que parecia ter sido válido literalmente desde o primeiro minuto do uruguaio em campo. Na primeira rodada do campeonato argentino de 1950, recebeu bom passe de Ángel Labruna e abriu o marcador sobre o Newell’s em Rosário, justo no primeiro minuto. Foi o primeiro gol do próprio campeonato. Ao todo, foram 22 naquele torneio, a dois gols da artilharia. Destacou-se sobretudo por um triplete no 7-2 sobre o Rosario Central, além de um dos gols da vitória no Superclásico em plena Bombonera, por 2-1.

Mas, segundo ele mesmo, o momento mais inesquecível foi no dia em que marcou duas vezes em um 2-1 no San Lorenzo. Era 16 de julho e na mesma data seu país vencia a Copa do Mundo, o que foi anunciado nos alto-falantes do Monumental, para todo o estádio aplaudir Gómez, parabenizado também pelos novo colegas. Em 1950 e em 1951, o título ficou com o Racing. Por outro lado, o River emendava vitórias seguidas no Superclásico (quatro, incluindo um 3-0 na Bombonera com gol do uruguaio em 1951. Nunca o River conseguiu vitória maior no dérbi na casa rival) e fez uma festejada turnê pela Europa. Incluindo um 4-3 com gol de Walter no Real Madrid.

Na época, valorizou-se mais o empate em 3-3 (com dois gols dele) com o Atlético de Madrid, que era a equipe mais vitoriosa da capital espanhola e então bi seguida de La Liga. Outro resultado superlativo foi um 5-0 em um combinado Benfica-Sporting, mas o triunfo mais histórico foi um 4-3 no Manchester City. Gómez fez o quarto gol no lendário Bert Trautmann, no que foi a primeira vitória de um time argentino na Inglaterra, ainda vista como senhora do futebol (até a derrota de 6-3 para a mágica Hungria em 1953 começar a mudar essa visão). Esses resultados do River vinham no embalado do ataque apelidado de La Maquinita, em alusão à célebre La Máquina da década anterior.

À esquerda, Gómez é o terceiro jogador agachado na primeira vitória do futebol argentino em solo inglês. À direita, orienta o jovem Ramón Díaz sobre os atalhos do Monumental

Embora menos festejada, La Maquinita se mostrou mais eficiente, acumulando na década cinco títulos contra os três obtidos na existência da romantizada antecessora (1941-1946). Gómez participou de três deles, como centroavante no ataque Santiago Vernazza, Eliseo Prado, ele, Labruna e Félix Loustau. O primeiro título veio em 1952, impondo-se na última rodada em Rosário sobre o Newell’s para superar em um ponto o então tricampeão Racing. Gómez fez doze gols, incluindo ambos de um 2-2 contra o próprio Racing, no Monumental, além de outros dois em um 3-1 no Superclásico. Outro brilho especial foi na antepenúltima rodada, iniciada com Racing e River igualados. O Millo visitava o Huracán e começou perdendo de 1-0. Ganhou de 7-1 com dois do uruguaio.

Em 1953, o concorrente foi novamente o Racing, ainda que nos critérios de desempate com ele o vice tenha sido o Vélez. Pois, com dois do uruguaio, o River, campeão por quatro pontos sobre ambos, venceu por 3-1 dentro do Cilindro. Gómez também marcou no jogo do título, no 2-1 no Newell’s. Em 1954, foi logo marcando quatro no 5-2 no Lanús na primeira rodada. O outro gol foi da lenda Omar Sívori, que estreava ali e que estaria nervoso. Walter notou isso e lhe pediu “calma, que o jogo eu ganharei”. Fez seus quatro gols em 21 minutos… O Boca terminaria campeão, mas o Millo teve o gosto de vencer os dois Superclásicos, em especial o 3-0 no Monumental para impedir em casa a volta olímpica do rival (o que ocorreria se os auriazuis ganhassem naquela antepenúltima rodada).

Quem teve esse gostinho foi o próprio River, em 1955, sagrando-se campeão com um 2-1 de virada em La Bombonera, na penúltima rodada. Ou melhor, não teve: Labruna pediu as colegas que abdicassem da volta e apenas prestassem uma saudação para irem logo aos vestiários, não querendo extrapolar na provocação. Walter Gómez, que dera a assistência para o gol da vitória, de Roberto Zárate, iria jogar no Milan e sua última exibição oficial pelo River se deu na rodada seguinte, a última, em um 2-2 contra o Racing no Monumental. E, tal como na estreia, aquele cântico se fez valer: no espaço de um metro quadrado, se livrou de dois oponentes, adiante aplicou uma caneta em outro e concluiu no ângulo.

Após uma estadia ruim na Itália (no Palermo, a quem foi emprestado por um Milan já lotado de não-italianos em tempos pré-passaporte comunitário; não se deu bem em um time sem ambição, com salários atrasados e rebaixamento), Gómez ainda estenderia a carreira na Colômbia e na Venezuela. Sem paciência para ser técnico, trabalhou no River na dirigência. Voltou outras vezes a pisar no Monumental, como em uma volta olímpica de velhos ídolos nas comemorações dos 90 anos oficiais, em 1991. A mais lembrada foi para dar o pontapé inicial no jogo-despedida de Francescoli, contra o Peñarol, em 1999, em um último toque na bola metida no gol 76 vezes (cinco delas, no Boca) em 140 jogos pelo River por aquele senhor de 72 anos radicado na Argentina.

Gómez faleceu em 4 de março de 2004, na cidade de Vicente López, quase vizinha a Núñez.

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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