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Lucas Pratto e uma missão complicada: ser ex-Boca que triunfa no River

Lucas Pratto é o mais novo doblecamiseta da principal rivalidade argentina. Visando alguma chance de ir à Copa de 2018 após terminar o ano passado esquecido nas convocações de Jorge Sampaoli, definiu ontem seu retorno ao futebol argentino, mesmo que às custas de virar a casaca. De fato, ele já não demonstrava pudor em relação ao seu (mal aproveitado) passado no Boca – a metade direita da imagem que abre a matéria foi uma brincadeira que ele tirou com a classificação do River sobre o Cruzeiro (como mostra a foto, Pratto defendia o Atlético) na vitoriosa Libertadores millonaria de 2015. Mas ir com a seleção à Rússia não será a única missão complicada do atacante. Historicamente, é bem mais fácil fazer sucesso no Boca sendo ex-River do que o inverso.

A própria via River-Boca é mais frequente do que a Boca-River. Desde o primeiro homem a vestir as duas camisas: foi o caso de Pedro Moltedo, presente tanto no primeiro jogo registrado do Millo, em 1904 (ano real da fundação riverplatense, e não 1901), como no primeiro dos xeneizes (em 1905). Desde então, o número de ex-jogadores do River que passaram pelo rival é extenso. Assim como o índice de sucesso.

Símbolo de La Máquina do River (seu timaço dos anos 40), o astro José Manuel Moreno não teve o mesmo êxito no Boca, onde esteve nos anos 50. Mas, como auriazul, tornou-se o primeiro profissional a servir a seleção argentina vindo de ambos os clubes. E com Moreno mesmo veterano o Boca evoluiu de um quase-rebaixamento no ano anterior a um vice-campeonato.

Ainda nos anos 50, Norberto Menéndez conseguiu três títulos em Núñez para na década seguinte conseguir a mesma quantidade no rival, ainda um recorde – com o adicional das três taças como boquense deixarem de vice o ex-clube. Nas duas últimas, ele fez os gols decisivos em vitórias nos Superclásicos travados na reta final. Alfredo “Tanque” Rojas foi seu contemporâneo nos dois times e, sem vingar no River, virou grande ídolo xeneize, indo à Copa de 1966.

Voltando a Moreno: mesmo jogando no River, não escondia que torcia pelo Boca na infância. Isso e a trajetória River-Boca não foi um condimento raro na rivalidade. O Boca foi campeão mundial pela primeira vez em 1978 (válido ainda por 1977) com três homens assim, o goleiro Hugo Gatti e nada menos que os autores de dois dos gols do título – Ernesto Mastrángelo e Carlos Salinas, que chegara ao ponto de, ainda como jogador millonario, circular “sem querer querendo” pelas instalações do Monumental com a camisa azul y oro, enlouquecendo os cartolas.

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Di Stéfano: o ex-craque também é o único técnico campeão nos dois

Carlos Tapia (campeão da Copa de 1986), Claudio Caniggia e Gabriel Batistuta foram outros exemplos de ex-jogadores do River que, ao passarem ao clube do coração, tiveram desempenho superior ao como gallinas. Fernando Gamboa e Abel Balbo não tiveram esse êxito, mas confessaram-se torcedores xeneizes e vestiram a camisa do coração após defenderem o rival. Julio César Toresani (autor do gol do título millonario no Apertura 1993), Gabriel Cedrés (titular da conquista da Libertadores de 1996) não ganharam troféus virando a casaca, mas viraram carrascos com gols em triunfos boquenses nos Superclásicos. Fernando Cáceres defendeu a seleção…

Mais recentemente, tem-se o caso de outro ex-atleticano, o zagueiro paraguaio Julio César Cáceres, presente na Recopa 2008 (último título internacional do Boca) e do celebrado Apertura 2008, aquele torneio nacional em que o Boca foi campeão e o River, o lanterna – início da “campanha” nos promedios que culminaria no rebaixamento millonario três anos depois.

Considerando-se então técnicos, vira um massacre. O Boca está repleto de treinadores campeões que haviam se consagrado no rival, sem nenhum exemplo contrário. Nos anos 60, o River amargava seu maior jejum vendo outros ícones de La Máquina conduzirem os bosteros aos títulos, alguns conquistados sobre o próprio Millo: foram os casos de Aristóbulo Deambrossi, Adolfo Pedernera, Néstor Rossi e Alfredo Di Stéfano. Um dos técnicos riverplatenses naquela década que não pôde dar fim ao jejum foi Juan Carlos Lorenzo. Ele passou ao Boca na década seguinte. Para treina-lo nas duas primeiras Libertadores que o time venceu, e no primeiro Mundial também…

A lista dos antecessores de Pratto como vira-casacas de Boca e River já foi destrinchada em quatro especiais sequenciais do Futebol Portenho – clique para acessar: Parte I, Parte II, Parte III e Parte IV. Vamos relembrar os profissionais que fizeram a travessia Boca-River, com os de mais brilho com a mudança sendo destacados em imagens. Já outros foram literalmente trágicos:

Juan Vairo, anos 50: campeão nos dois clubes, pelo Boca em 1954 e em três jogos pelo River em 1957. Apesar da estatística, não vingou em nenhum, ofuscado pelo irmão Federico Vairo, este sim um ídolo millonario e participante da Copa do Mundo de 1958.

Tarantini e Ruggeri foram campeões e jogadores de seleção pelos dois

Francisco Lombardo, anos 50: defensor ícone do Boca dos anos 50 (foram oito anos de clube), servindo continuamente a seleção mesmo em meio a uma década pobre em títulos, vencendo apenas o de 1954 (que já encerrava um jejum de dez anos). Esteve no River em 1960 sem chegar sequer a uma dezena de partidas.

Renato Cesarini, anos 40 e 60: nome histórico no futebol argentino e italiano como jogador e treinador, havia treinado a célebre La Máquina do River nos anos 40. Chegou ao Boca em 1949 e foi demitido com o campeonato em andamento: os auriazuis simplesmente só se livraram do rebaixamento na última rodada. Voltou a Núñez nos anos 60, colecionando dolorosos vices.

José Manuel Moreno, anos 50 e 60: assim como jogador, El Charro Moreno também foi vira-casaca como treinador, “traição” dupla (ou quádrupla…) que é algo único no Superclásico. No Boca, foi vice em 1958. No River, em 1964, terceiro.

Miguel Ángel Loayza, anos 60: talentoso meia peruano a ponto de ser importado pelo Barcelona nos anos 60, de lá voltou à América do Sul para uma rodada passagem pelo futebol argentino. No Boca, foi uma opção de banco no time campeão de 1962 (com direito a triunfo dos mais famosos no Superclásico na penúltima rodada) e vice da Libertadores de 1963. No River, perdeu em 1966 uma das Libertadores mais ganhas já vistas, trauma que rendeu ao time o apelido de gallinas.

Rubén Galletti, anos 70: pai de Luciano Galletti, ex-seleção argentina na década passada, formou-se no Boca, parando nos dez jogos oficiais. Após emplacar no Estudiantes, chegando a jogar uma partida (com gol marcado) pela seleção, foi campeão com o River em 1979 tanto no Torneio Metropolitano como no Nacional. Mas somando só onze partidas entre as duas campanhas.

Alberto Tarantini, anos 70 e 80: o primeiro profissional de sucesso na travessia do Boca rumo ao River. Foi o lateral do Boca campeão pela primeira vez da Libertadores, sendo extra-oficialmente o único representante do clube na seleção campeã em 1978 (pois estava legalmente sem time na época do torneio). No River, foi centralizado na zaga em boa dupla com Daniel Passarella (por sinal, outro torcedor do Boca na infância…), ganhando dois títulos argentinos e mantendo-se na seleção.

Carlos Randazzo, anos 70 e 80: conseguiu algo único na rivalidade, sendo o único jogador formado no Boca a passar pelo River para voltar aos auriazuis posteriormente. A ironia é que ele sempre foi assumido torcedor millonario, mesmo também, em outra ironia, sempre tendo morado no bairro de La Boca. As naturais críticas eram afastadas pelo profissionalismo: jogou quatro Superclásicos pelo Boca e marcou duas vezes. No seu único pelo River, em 1982, o time perdeu de 5-1. Em casa…

Centurión, artilheiro da primeira Libertadores do River, e Berti, figura carimbada dos bons anos 90 de Núñez, não haviam vingado no rival

Alfredo Di Stéfano, anos 60 e 80: após ser campeão nacional com o Boca em 1969, em disputa direta com o River na última rodada em pleno Monumental (até hoje, foi a única volta olímpica que os xeneizes deram no estádio rival após um Superclásico), o velho ídolo millonario como jogador redimiu-se ao também ser campeão nacional no velho clube, em 1981. Sua lenda internacional ofusca esse outro feito, pois Di Stéfano ainda é o único técnico campeão pelos dois. Só que a campanha treinando o River foi por demais acidentada, peitado por alguns jogadores. A ponto de não durar muito no cargo – e até treinar mais uma vez o Boca depois.

Vladislao Cap, anos 80: ex-jogador daquele River dos anos de jejum, El Polaco foi outro que passou pelo rival como treinador. Foi em 1982, no elenco que sofria o desmanche de Maradona e outros ídolos campeões no ano anterior. Após ser demitido, foi contratado pelo River, ainda sendo o único a virar a casaca como treinador diretamente de um a outro. Estatística não repetida talvez por conta de um trauma: um infarto matou El Polaco Cap semanas depois, em pleno exercício do cargo.

José Varacka, anos 70 e 80: assim como Cap, havia defendido o River do jejum dos anos 60 como jogador. Treinou então o Boca em 1972, chegando às semifinais nacionais, eliminado justo pelo River. Sucedeu Cap no Millo em 1983, quando o velho clube terminou na vice-lanterna, escapando do rebaixamento graças à instalação, justo naquele campeonato, dos famigerados promedios.

Oscar Trossero, anos 70 e 80: o atacante foi profissionalizado no Boca em 1972, sem receber muitas chances. Dez anos depois, após sucesso no Nantes francês, veio jogar no River. Para em 1983 morrer em pleno vestiário no intervalo de uma partida, fulminado por um infarto, assim como Cap.

Ramón Centurión, anos 80: após bom passo no Unión, apareceu no Boca em 1985, sem emplacar. No River, saiu-se bem melhor, mas ainda assim de forma agridoce. Foi o artilheiro do elenco que venceu em 1986 a primeira Libertadores do clube, mas um antidoping positivio afastou-lhe por um ano dos gramados, não se eternizando na reta final.

Ricardo Gareca e Oscar Ruggeri, anos 80: vieram juntos no início de 1985, como os solitários ídolos de um Boca periclitante na época. Conseguiam servir à seleção como jogadores de um clube que quase quebrou em 1984, simbolicamente o ano da maior goleada sofrida pelo time (9-1 para o Barcelona. Exatamente por estarem com a seleção, não jogaram), que teve La Bombonera fechada. Fizeram greve e a traição de ir ao rival jamais foi perdoada. Ruggeri consagrou-se como o líbero do Millo vencedor da Libertadores e do Mundial em 1986, títulos inéditos em Núñez. Gareca ficou pouco, rumando ainda em 1985 ao América de Cali. Para ser vice de Ruggeri e outros ex-colegas na Libertadores e, diferentemente do defensor, perder a convocação à Copa de 1986.

Jorge Higuaín (pai de Gonzalo) e Amato não viraram ídolos eternos no River, mas tiveram bons momentos. Melhores que no Boca

César Menotti, Jorge Rinaldi e Milton Melgar, anos 80: o técnico campeão com a seleção não emplacou nem no Boca em 1987 e nem no River na temporada 1988-89. Nos dois clubes, treinou Rinaldi (protagonista do San Lorenzo campeão da segundona em 1982) e o boliviano Melgar, que igualmente só ficaram em Núñez na temporada 1988-89 após um tempo maior servindo ao rival, onde tiveram destaque maior, ainda que no máximo relativo – o time padeceu de um jejum entre 1981 e 1989.

Jorge Higuaín, anos 80 e 90: como Menotti, Rinaldi e Melgar, ele também chegou ao River em 1988 após passo prévio pelo Boca, onde foi zagueiro-artilheiro. O pai do atacante da Juventus não virou ídolo millonario eterno mas teve relativo destaque maior virando a casaca, com dois títulos argentinos, uma semifinal de Libertadores em 1990 e um vice na Supercopa de 1992, quando era capitão.

Sergio Berti, anos 80 e 90: reserva do Boca campeão da Supercopa de 1989, se indispôs com a diferença de conforto anuída pela comissão técnica entre os astros e não-astros e passou ao ostracismo até ter o passe comprado pelo empresário Gustavo Mascari – que negociou-o diretamente com o arquirrival. A mudança fez bem: La Bruja Berti teve diversas passagens pelo River nos anos 90, em vaivéns com o futebol europeu. O meia foi vitorioso em todas elas, nacionalmente e no continente, e até emplacou uma convocação à Copa de 1998.

José Luis Villarreal, anos 80 e 90: o Boca passou os anos 80 carente de um título desde 1981. Quebrou-o de modo geral em 1989, com a Supercopa. Mas o nacional só caiu em 1992, no Apertura. Villarreal esteve nas duas conquistas e chegou à seleção, mas a idolatria efêmera passou ao reforçar o River em 1993 após mal-sucedida passagem pelo Atlético de Madrid. Chegou a servir a seleção também como millonario, mas lesões impediram que emplacasse, além de lhe brecarem a carreira.

Gabriel Amato, anos 90: caso raro de um assumido torcedor do Boca na infância que, após defender os auriazuis, teve êxito no Millo. Após ganhar a obscura Copa Master da Conmebol em 1992, rodou até aparecer no River em 1994. Foram dois anos frutíferos em Núñez, incluindo a Libertadores de 1996, a ponto de passar a dizer-se torcedor riverplatense.

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Maidana e Bertolo são os únicos a vencer a Libertadores pelos dois, ambos reservas no Boca de 2007 e titulares no River de 2015

Sebastián Rambert, anos 90: ícone do Independiente de meados daquela década, não decolou na Internazionale e na seleção. Tentou reerguer a carreira em seguida na dupla, ainda sendo a última transferência direta entre os dois, em 1997. Não conseguiu em nenhum uma sequência de boas partidas, tendo uma boa fase fugaz no River que não se manteve ao fim do ano, sendo reserva nos títulos do Apertura e da Supercopa em 1997.

Nelson Vivas, anos 90 e 2000: ainda é o último jogador a defender vindo de ambos a seleção. Formado no Quilmes, esteve nas campanhas noventistas boquenses marcadas por decepções ora por rendimentos irregulares, ora por títulos perdidos nos detalhes. Mas no River, onde esteve por um semestre nada exitoso, só jogou com o nome.

Jonathan Maidana, anos 2000 e 2010: a melhor volta por cima dos vira-casacas. Reserva do Boca campeão da Libertadores de 2007, esteve no rebaixamento do River em 2011, motivando gozações por anos. Permaneceu para o título da segundona (tatuando a data do acesso) e o renascimento a partir de 2014, com os sucessivos títulos internacionais, até chegando à seleção. Foi dele um dos gols dos 3-0 no Mineirão sobre o Cruzeiro na campanha vitoriosa da Libertadores, zombados por Pratto naquela imagem.

Jonathan Fabbro, anos 2000 e 2010: curiosamente, outro ex-Atlético. Reserva no Boca de Carlos Bianchi, quando chegou ao River já havia se naturalizado paraguaio. Esteve na temporada 2013-14, quando o time voltou a ser campeão argentino, mas com participação escassas dele.

Bruno Urribarri, anos 2000 e 2010: reserva do reserva do reserva no Boca que venceu a Libertadores de 2007, não entrando em nenhuma partida na competição. Acumulou dez jogos oficiais em um ano. No River, também esteve em ano de Libertadores, igualmente sem participar. E foram três as partidas.

Nicolás Bertolo, anos 2000 e 2010: como Maidana, venceu a Libertadores de 2007 como reserva no Boca e a de 2015 como titular do River, reforçando-o a partir da semifinal já como titular, ainda que não tenha vingado depois.

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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