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90 anos da primeira conquista do futebol do interior: o título de Santiago del Estero em campeonato argentino

O ano de 2019 não verá a El Gráfico, criada em 1919, completar seu centenário, após a revista anunciar sua descontinuidade em janeiro desse ano. Talvez saia alguma edição especial. Temos a que, em 3 de junho de 1959, comemorava os “40 anos consagrados ao esporte”. Ela é reveladora sobre uma façanha pouco relembrada nacionalmente, a da primeira conquista futebolística de algum rincão do interior argentino: o título de Santiago del Estero no velho campeonato argentino de seleções regionais. Título que premiou como nunca a capital mais antiga do interior do país, fundada em 1550. Título que hoje completa 90 anos.

Em meados do século XIX, o território argentino chegou a ter guerra civil. O governante da província de Buenos Aires, Juan Manuel de Rosas, era na prática um ditador nacional. Em 1852, foi derrubado por Justo José de Urquiza, caudilho da província de Entre Ríos. Urquiza desejava um governo central efetivo, mas com maior liberdade às “Províncias Unidas do Rio da Prata”, similarmente ao modelo dos EUA. Mas em 1861 foi a vez de Urquiza ser derrubado por Bartolomé Mitre, que voltou a centralizar em torno da capital o poder do imenso território (ironicamente, Mitre batizaria um certo clube importante nessa história; Mitre e Rosas hoje são vizinhos de Evita no pomposo cemitério da Recoleta). Reflexo disso é que um terço da população nacional se abrigou no entorno de Buenos Aires. A ponto de o campeonato argentino chamar-se de “argentino” embora no início só abrigasse clubes da região metropolitana da capital.

Mesmo já existindo equipes espalhadas pelo país, havia até cláusula literal de barreira, com a retirada em 1900 do Lobos Athletic, bivice-campeão que se situava a “módicos” 90 Km de Buenos Aires. Somente em 1939 é que Rosario Central e Newell’s foram admitidos no campeonato “argentino”. Nos anos 40, foi a vez da dupla santafesina Unión e Colón ser admitida na AFA; nos anos 50, a do Sarmiento de Junín (em homenagem póstuma a Evita, crescida nessa cidade) e nos anos 80, o trio Talleres, Instituto e Racing de Córdoba (não confundir com o de Avellaneda). Exceto os três cordobeses, desfiliados nos anos 90, até hoje a AFA só admite de filiados essas exceções aos clubes não situados entre a Grande Buenos Aires e La Plata. O pessoal do interior segue indiretamente afiliado – a filiação é feita através das associações regionais.

Segundo Luna na capa de 1926 da revista El Gráfico e em duas imagens de 1927 – ao meio, na recordada vitória sobre Rosario: protagonista maior da história, iria às Olimpíadas de 1928

O campeonato argentino só veio a se nacionalizar em 1986, a partir da segunda divisão, permitindo que desde então vez ou outra clubes das províncias de Mendoza (Godoy Cruz, San Martín), Tucumán (Atlético e outro San Martín) ou Jujuy (o Gimnasia local) joguem no torneio, além de clubes que, embora sejam da província de Buenos Aires, também são filiados indiretamente em função da larga distância à capital federal – como o Olimpo, da liga da Bahía Blanca, ou o Aldosivi, da de Mar del Plata. Assim, até então o campeonato autodenominado “argentino” , em visão justa, nada mais era que um torneio regional (de longe o mais prestigiado, é verdade) entre tantos que apareciam pelo país. Tanto que entre 1967 e 1985 ele foi renomeado de Torneio Metropolitano, quando dividiu calendário com o Torneio Nacional.

O Nacional, criado politicamente pela ditadura de Juan Carlos Onganía, tratava que opor os melhores do Metropolitano (que costumava ser mais valorizado pelos “puristas”) com os melhores de seletivas do interior. Mas não rendeu muito espaço a Santiago, só representada três vezes, sempre nas últimas posições – em 1967 e em 1971 pelo Central Córdoba, e em 1982 pelo Estudiantes. A província não aparece desde 1992 na segundona nacionalizada, com a queda do Central. Bem antes dos velhos Torneios Nacionais, existiu dos anos 30 ao início dos anos 40 a Copa Ibarguren, que era um tira-teima entre os campeões das duas ligas mais prestigiadas: a “argentina” e a rosarina. Apontava moralmente o verdadeiro campeão nacional.

Mas um campeonato mais verdadeiramente argentino seria o Interligas, entre combinados das diversas ligas regionais (não necessariamente provinciais) do país. Inclusive, a cidade de Buenos Aires tinha seleção separada da província de mesmo nome. Torneios assim ainda existem de modo valorizado em outro esporte bretão popular na Argentina, o rúgbi, mas no futebol ele foi disputado pela última vez em 1989, e seu prestígio só durara até o fim do amadorismo, no início dos anos 30. Toda essa longa introdução visa apresentar o contexto da glória dos santiagueños naquele 12 de outubro de 1928.

Seleção argentina de 1927: Juan Evaristo, Ludovico Bidoglio, Octavio Díaz, Humberto Recanatini, Juan Fossa e Luis Monti; Alfredo Carricaberry, Pedro Ochoa, Manuel Ferreira, Manuel Seoane e o “intruso” Segundo Luna

Além do entorno da capital federal, o reconhecimento, quando muito, chegava ao futebol rosarino. A seleção até havia chamado pontualmente jogadores de fora das associações “argentina” e rosarina, casos de Miguel Dellavalle (do Belgrano de Córdoba, em 1921) e Pedro Rithner (único atleta vindo do Baradero, dos rincões da província de Buenos Aires, e boa parte porque era irmão de Juan José Rithner, goleiro da seleção que jogava na capital). A primeira glória coletiva do interior foi mesmo aquela de 90 anos atrás. Não foi algo repentino, inclusive. Se nas primeiras edições do Interligas a seleção de Santiago caía cedo ou levava vexame nas fases agudas, em 1925 os santiagueños passaram por Salta (4-0) e Mendoza (4-1) e nas semis já caíam por econômicos 2-0 para os portenhos.

Em 1926, algo similar: semifinais diante da província de Buenos Aires, vencedora por 1-0. Àquela altura, a preparação era mais séria, com concentrações em regimentos militares e preocupação com preparo físico incomum para a época. Inclusive rendeu um sonoro 6-1 sobre Rafaela na decisão pelo terceiro lugar. Rendeu até personagem de capa na El Gráfico, o ponta-esquerda Segundo Luna, convocado para uma seleção argentina não-oficial que naquele ano visitou o Brasil. A grande sensação, porém, deu-se em 1927, simbolicamente quando as ligas chamadas Cultural e Santiagueña unificaram-se. Santiago não chegou às semis, mas derrotou Rosario por 3-2, na prorrogação, no estádio do Boca. Até ali, ou a taça era da cidade de Buenos Aires ou da província de Buenos Aires. A imagem que abre a matéria, com Luna carregado, é da comemoração nesse jogo.

A campanha chamativa de Santiago em 1927 já tinha frutos colhidos antes do torneio seguinte: a Copa América de 1927, a primeira que a Albiceleste ganhou fora do país, convocou o tal Luna, que ainda tem uma das médias absolutas de gol mais altas da Argentina. Na verdade, Luna chamava-se Segundo Nepomuceno Gómez; o sobrenome Luna era de seus meio-irmãos maternos Nazareno e Ramón, com quem dividia o ataque na seleção. As súmulas das partidas de fato registravam o sobrenome Gómez, mas para público e crítica ele era um Luna mais – o que propiciaria uma curiosa escalação. Luna jogou só duas vezes pela Argentina, ambas naquela Copa América, mas com três gols, dois no 7-1 sobre a Bolívia (incluindo o primeiro do torneio) e o da virada provisória de 2-1 sobre o rival Uruguai, derrotado ao fim por 3-2.

Naquele ano, Luna voltou a ser reportado pela El Gráfico. Eis alguns dizeres: “Segundo Luna, o excelente winger esquerdo do Club Mitre, de Santiago del Estero, é, na ordem nacional, um footballer popularíssimo; mas ali na sua província, é ainda mais: um ídolo. É querido de um modo extraordinário e quase excessivo. Lhe admiram por ser quem é e como é. Os fãs o aplaudem e saúdam, onde esteja que o encontrem. Haverá quem não conheça quais e quantas são as glórias históricas da província; haverá quem não recorde como se chama o governador e o bispo; mas nem um só de seus co-provincianos ignora que Segundo Luna é astro que brilha no firmamento do esporte santiagueño. E se houvesse alguém que o ignorasse, esse homem cometeria uma blasfêmia, semelhante à do cristão que afirma não conhecer Deus”.

O curioso ataque (Nazareno) Luna, (Luis) Díaz, (Ramón), Luna, (José) Díaz e (Segundo) Luna, cujo rosto indígena e “peloduro” aparece no destaque à direita. O uniforme santiagueño lembrava o do Corinthians

A nota prosseguia narrando como Luna, de visíveis ascendência nos povos originários daquela região, tornou-se ainda mais querido ao recusar ofertas constantes de clubes da capital, onde poderia ser em paralelo servidor público – preferindo o filho de 26 anos de Doña Antonia Gómez de Luna jamais deixar o Mitre (o qual defendia o time adulto desde os quinze) e o ofício modesto de carpinteiro. O título continental classificou a Argentina para suas primeiras Olimpíadas, que na época tinham valor de Copa do Mundo. E para os jogos de 1928 a seleção não levou só Luna, mas também Alberto Hellmann, seu colega no Mitre e na seleção santiagueña, ainda que nenhum deles tenha entrado em campo em Amsterdã (Luna, por exemplo, concorria com Raimundo Orsi, depois campeão mundial pela Itália em 1934).

Mas o valor da dupla de seleção seria provado seria reiterado meses depois, em novo torneio interligas. O torneio de 1928 foi uma festa do interior. Foi o primeiro sem nenhum representante de Buenos Aires, seja a capital ou a província. Santiago decidiu contra a seleção de Paraná, que tinha consigo um jovem Enrique Guaita, futuro campeão da Copa de 1934 pela Itália. O título santiagueño, passados trinta anos, foi incluído entre os “dezessete grandes acontecimentos em 40 anos do futebol na El Gráfico“, segundo a primeira matéria daquela edição de 1959. Ela assim resumia, em dizeres hoje talvez politicamente incorretos: “Santiago del Estero é uma província argentina. Onze muchachos, em sua maioria moreninhos e de cabelos mal cuidados, chegam a Buenos Aires para jogar o Campeonato Argentino, então acontecimento culminante do futebol nacional. E se consagram campões!”.

Na versão original, o vocábulo que traduzimos livremente para “cabelo seboso” era Peloduro, como ficaram conhecidos aqueles campeões de uma província que divide o castelhano com o quéchua e castigada na época pela tuberculose e pela doença de Chagas – como contextualizado no livro Héroes de Tiento, sobre o futebol argentino dos anos 20. Já a seção seguinte daquela El Gráfico de 1959, por sua vez, se dedicava aos grandes ataques do futebol argentino até àquela altura. E entre onze formações famosas de Independiente (1926, 1938 e 1953), Boca (1935), Racing (1949), San Lorenzo (1946), Huracán (1928), Estudiantes (1931) e, claro, La Máquina do River dos anos 40, não havia Rosario Central ou Newell’s, mas havia o quinteto campeão há noventa anos:

El Gráfico em 1959 incluindo o quinteto Luna-Díaz-Luna-Díaz-Luna (o segundo da página esquerda, de cima para baixo) entre os onze maiores do futebol argentino até aquela altura

“Nunca uma equipe provinciana causou tanto rebuliço na Capital Federal como aquela seleção santiagueña que em 1928 levou o título de campeã argentina e consagrou esse ataque entre os de maior recordação, tanto pelo que jogava como pelo grude que resultava sua menção: Luna, Díaz, Luna, Díaz e Luna”. O ataque permeava, afinal, Nazareno Luna, Luis Díaz, Ramón Luna, José Díaz e Segundo Luna/Gómez. Ainda havia outro Luna, Ramón. Nas versões indígenas, Nazareno, Ramón, Segundo e Juan eram respectivamente Nasha, Nello, Ita e Juansha, todos do Mitre. A saga começou em 30 de setembro, em mata-matas de modo “normal”. No estádio do Vélez, Santiago aplicou 5-1 sobre Salta, mas a cancha do Racing viu um inapelável 11-0 da capital sobre Formosa. Já a província bateu Villa María por magros 2-1.

No mata-mata seguinte, essas duas seleções principais se cruzaram precocemente e deu capital por 2-1, enquanto os santiagueños faziam 3-2 em Rafaela. O Luna que se sobressaiu nessa tarde foi Ramón, que mais tarde defenderia Atlanta e Argentinos Jrs. Ele fez os três gols da vitória. Mas o próximo oponente, ainda pelas quartas-de-final, seriam os portenhos. E aí foi a vez de Segundo fazer jus ao renome maior entre os Luna. Driblou três adversários (Pablo Bartolucci, Pedro Omar e Humberto Recanatini, todos de seleção argentina) antes de definir na saída do goleiro Mapelli aos dez minutos. Aos 20, foi Luis Díaz, do Estudiantes de Santiago, que acertou um petardo para ampliar. Não que fosse um jogo visitante agradável aos olhos: os santiagueños defendiam como pudiam-se e chutavam de qualquer jeito, sem maior troca elaborada de passes.

Mas, compensando com maior velocidade, tudo dava certo aos Peloduros. Segundo Luna, em especial, estava endiabrado, buscando demonstrar que merecia ter sido usado nas Olimpíadas – a equipe alviazul que melhor lhe aproveitaria seria o Sportivo Barracas, onde jogou emprestado na celebrada excursão brasileira e europeia do início de 1929, marcando gols nas seleções brasileira (derrota de 5-3) e portuguesa (dois na vitória de 3-2), no Barcelona (derrotas de 2-1 e 3-2 e os dois na vitória de 2-1), Milan (na vitória de 2-1), Juventus (derrota de 4-1), Napoli (vitória de 1-0) e no Palestra/Palmeiras (vitória de 2-0); seu irmão Ramón também viajou e marcou na vitória de 2-0 sobre a Lazio a favor de um clube que hoje mora na quarta divisão, mas um gigante na época. Voltando à partida de 90 anos atrás, foi de Segundo o terceiro gol, em cabeceio de cruzamento preparado pelo irmão Nazareno: 3-0, e tudo no primeiro tempo.

Mesma El Gráfico de 1959 colocando a conquista santiagueña de 1928 (no canto superior direito, com a mesma imagem que abre a matéria) como um dos 17 maiores acontecimentos do futebol acompanhados pela então quarentona revista, interrompida em 2018, aos 99 anos incompletos

No finzinho, a capital descontou com Roberto Cherro, maior artilheiro do Boca no século XX. No segundo, Ramón Luna teve um gol invalidado e Juan Maglio diminuiu para 3-2. No fim, no abafa, os portenhos conseguiram uma falta perigosa, assinalada por toque na mão de Teófilo El Indio Juárez (que depois defenderia River, São Paulo e Palmeiras). Ansioso, Cherro soltou o pé e marcou, mas a arbitragem invalidou, pois ainda não havia autorizado a cobrança. Houve natural confusão e os portenhos, revoltados, saíram de campo sob aplausos. Os provincianos não se rogaram em dar uma volta olímpica, ainda que vaiada. Houve registros parabenizando os interioranos, mas o ego ferido se traduziu em nota do jornal Última Hora, resgatada pelo livro Héroes de Tiento, hoje não se admitia a inferioridade dos jogadores dos mais prestigiados clubes argentinos perante desconhecidos do interior; a crítica foi dirigida à federação por programar cedo demais um embate entre capital x província, responsável pela maior bilheteria.

A semi entre Santiago e La Pampa, em contraste, foi vista por poucos no estádio do Independiente, com a maioria rancorosa apoiando os pampeanos. Não adiantou: Nazareno, que ainda tinha 16 anos, recebeu do irmão Ramón e chutou forte demais para o goleiro segurar, aos 33. Aos 35, o classudo Segundo definiu após evitar dois marcadores. Pampa descontou, mas Santiago deveria ter vencido por 3-1 se o árbitro não invalidasse o tento posterior de Luis Maico Díaz, que reagiu tão energicamente que terminou expulso. A final não foi contra Rosario, mas foi contra a seleção que tirara Rosario (que nas quartas vencera Mendoza por 5-1) nas semis, por 1-0, a de Paraná. No dia da posse do segundo mandato de Hipólito Yrigoyen, poderia de fato dar uma ou outra. Para a plateia, que fosse Paraná.

Assim, quando aos 9 minutos o árbitro Consolato Nay Foino interpretou que o goleiro entrou com a bola no gol após petardo de Segundo Luna, objetos começaram a ser arremessados. O juiz se retirou e foi substituído por um dos bandeirinhas. No início do segundo tempo, o futebol mais vistoso de Paraná empatou com pênalti por mão de Ariel Medina, convertido por Juan Darquier (com direito a alguma invasão de campo para comemora-lo). Coube a Ramón Luna, porém, marcar mais dois gols para os Peloduros, escalados com José Trejo, Juárez e Medina, Raúl Alonso, Dalmasio Ruiz e Cornelio Caro, Nazareno, Luis (que pôde jogar normalmente, apesar da expulsão prévia), Ramón, José e Segundo. O presidente Yrigoyen parabenizou os campeões, recebidos com gala no Teatro Colón, embora a verdadeira festa se desse cinco dias depois, no regresso a Santiago para aqueles heróis terminarem carregados em festa popular. “O triunfo da minha patriazinha”, nas palavras de Ita Luna, que ao ser indagado como era a capital holandesa, comparou: “casas mais, casas menos, igualzinho a minha Santiago”.

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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