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75 anos do capitão do Estudiantes tri da Libertadores: Oscar Malbernat

Erguendo em Old Trafford o Mundial de 1968 cinquenta anos depois, ano passado

Dentre as façanhas do Estudiantes, está o fato de ser o único clube argentino campeão mundial dentro da casa do adversário europeu – o Boca conseguiu superar em 1978 o Borussia Mönchengladbach, mas a partida foi em Karlsruhe, enquanto o Independiente bateu a Juventus em Roma e não em Turim em 1973. Além do mais, esses dois europeus eram os vices e não os campeões continentais, que se recusaram a participar. Não era o caso do Manchester United de 1968, que não se conformou em ver os animals triunfando em pleno Old Trafford. Oscar Miguel Malbernat era o capitão pincharrata. E de animalesco, não tinha nada – assim como aquele elenco vencedor, a bem da verdade. El Cacho fez 75 anos no sábado passado.

Nascido na própria La Plata, Malbernat era integrante da “tercera que mata“, o elenco de juvenis do Estudiantes no início dos anos 60, vice de sua categoria em 1964 e campeão em 1965. El Cacho estreou no time principal já em 23 de agosto de 1964, em vitória de 1-0 sobre o Argentinos Jrs. Não eram tempos bons do Pincha: o time ficou em antepenúltimo, mesma posição ocupada em 1962. Em 1965, a proteção que oferecia na lateral-esquerda já fazia a diferença. Em um país em que os grandes são cinco (Boca, River, Racing, Independiente e San Lorenzo), os alvirrubros terminaram em sexto. Seu técnico, contratado naquele ano, era o estrategista Osvaldo Zubeldía, que ao fim do ano foi então requisitado para treinar a seleção, já classificada à Copa do Mundo.

Segundo o livro Quién es Quién en la Selección Argentina, Malbernat “por condições futebolísticas, entrega, firmeza e compromisso tático, foi um defensor muito bom por qualquer das duas laterias, fundamentalmente a esquerda. Se projetava assiduamente, mas essa não era sua principal virtude. Tinha ascendência sobre seus companheiros, que o escolheram capitão do grande ciclo de conquistas do Estudiantes de La Plata, seu clube de origem”. Com esses predicados, Zubeldía, acumulando o cargo de técnico no clube e na seleção, não duvidou em chamar seu pupilo para amistoso contra a URSS travado em 1º de dezembro de 1965.

A partida ficou no 1-1. E seria a única de Zubeldía à frente da Argentina: sem sentir-se respaldado pela AFA, desligou-se e foi substituído por Juan Carlos Lorenzo, que até testou Malbernat em amistosos prévios não-oficiais: 3-1 no Botafogo em 30 de março de 1966, 4-2 no Eintracht Frankfurt em 6 de abril e derrota de 3-1 para o mesmo clube em 13 de abril. Mas no fim das contas Lorenzo preferiu para o mundial chamar para o posto testado com Malbernat os jogadores Silvio Marzolini (de fato, considerado mais habilidoso, tanto que foi escolhido para o time ideal da Copa) e Nelson López. Naquele ano, o Estudiantes terminou o campeonato argentino em 7º, mas o clube, o técnico Zubeldía e o lateral Malbernat teriam sua redenção em 1967.

A pressão sobre o juiz (Malbernat é o de braçadeira no quadro inferior) foi inútil: o gol ilegal do Palmeiras foi validado na final da Libertadores de 1968. Ainda assim, Malbernat se coroou com a base que seria afixada à taça – atrás dele, Juan Ramón Verón

Até aquele ano, os chamados “cinco grandes” vinham desde 1930 vencendo todos os campeonatos. O último não-grande campeão havia sido justamente o rival platense Gimnasia, no torneio de 1929. Na primeira edição do Torneio Metropolitano, o Estudiantes então soube na semifinal superar, com um a menos, um 3-1 parcial do Platense (do técnico Ángel Labruna) para 4-3 ainda aos 15 minutos do segundo tempo; e bater na decisão o Racing que dali a semanas venceria sua única Libertadores. Adiante, o Pincha também esteve no páreo do título no Torneio Nacional. Foi como vice dessa competição, e não como campeão da outra, que classificou-se à Libertadores de 1968. Parte da história já estava feita ao furar o oligopólio daquele quinteto, mas nada que se comparasse ao que viria a seguir, com a eficiência irritante das artimanhas do Estudiantes se provando no continente.

Embora o time tivesse sobretudo em Carlos Bilardo e Carlos Pachamé jogadores de perna forte, o chamado “antifutebol” criticado pela própria revista argentina El Gráfico se referia à falta de um futebol plástico. Os platenses, cientes de que seu único artista era o ponta Juan Ramón Verón, primavam pelas jogadas ensaiadas de bola parada e por anular os ataques oponentes forçando-lhes o impedimento, uma tática ainda incomum. Zubeldía contaria que era inclusive Malbernat, como capitão do time, quem se encarregava de explicar aos árbitros o uso legal da linha de impedimento nas partidas pelo exterior. A estreia do clube na Libertadores, porém, deu-se ainda na Argentina, copando o copeiro Independiente em plena Avellaneda: 4-2. Malbernat foi figura ativa nesse triunfo essencial para o moral dos novatos. Foi do Cacho a assistência para o terceiro gol visitante, com a partida ainda em vitória parcial de 2-1: recebeu de Bilardo pela esquerda, devolveu e recebeu de novo; estirando-se, entregou para Felipe Ribaudo concluir um petardo no segundo pau.

Ainda que depois se deixasse superar por Dante Mírcoli no lance em que este cruzou para Luis Artime diminuir para 3-2, o capitão alvirrubro também cavou a expulsão do adversário José Urruzmendi, uruguaio que estreava no Rojo e que durou só 120 segundos em campo; começara no banco e ali teria ocorrido um antecedente: “começou no primeiro tempo. Ele estava como reserva e lhe pedi uma tirinha para ajustar as meias. Então me disse que tinha ‘um dedo para…’. Bem, pouco depois de entrar seguiu ‘conversando’, e quando o expulsaram pelo golpe em Aguirre Suárez eu me aproximei para retrucar-lhe: ‘feliz natal, Urruzmendi’, lhe disse… e me pegou a trompada” foi a explicação dada por Malbernat à El Gráfico, que registrou que o adversário Osvaldo Mura também merecia a expulsão em outro lance contra o Cacho. O lance do terceiro gol naquela partida, porém, foi um evento isolado; Malbernat, era um lateral à moda argentina da época, focado na serena marcação do ponta adversário.

A avaliação de Malbernat e dos outros pinchas pela imprensa de Manchester. À direita, o capitão e o treinador Osvaldo Zubeldía

Eis como a mesma El Gráfico avaliou-lhe contra o Millonarios em Bogotá, onde os platenses arrancaram um 1-0 na primeira partida que fizeram fora de casa na Libertadores: “Não deslumbra, não está tocado pela varinha mágica dos virtuosos. Não tem a estirpe de Marzolini e nunca poderá levantar uma tribuna; mas esse pequeno loiro (…) segue sendo o cronômetro mais regular que tem o Estudiantes. Na tarde de Cali, quando os nervos e o calor lhes punham travas nas pernas e na mente, foi o marcador de ponta-direita, (…) o encarregado de dar solidez na última linha, o homem seguro que ia a todas e não perdia nenhuma. (…) Estava ali, multiplicando-se, aguentando o vendaval. Em todo o jogo foi o mais efetivo da retaguarda”. Sem comprometer, Malbernat e colegas adiante avançaram de modo invicto à segunda fase de grupos, onde voltaram a superar o Independiente, além do Universitario. Nas semifinais, o Racing abriu 2-0 em Avellaneda, mas tomou o 3-0 em La Plata. Pela frente, outra “Academia”, a do Palmeiras.

Ademir da Guia chegou a declarar que o Estudiantes terminou campeão contando com um gol impedido, mas foi em posição irregular que os brasileiros abriram o placar no jogo de ida, na Argentina – apesar dos protestos imediatos puxados por Malbernat e da bandeirinha levantada, o árbitro confirmou o gol. A virada platense se consumou nos sete minutos finais. Em São Paulo, os alviverdes surraram por 3-1 um Estudiantes irreconhecível, mas a diferença não tinha peso imediato: uma vitória para cada lado forçou um jogo-extra em Montevidéu. O Pincha venceu por 2-0. E foi com Malbernat um dos poucos cumprimentados pelos derrotados, pelo próprio Ademir da Guia, no registro da El Gráfico., que descreveu a atuação do capitão como “reflexivo. Sensato. Assim como se move no campo é na vida. É dos que nunca alcançam a esfera do brilhante, nem sequer essa exteriorização da elegância pessoal. (…) Tem essa regularidade da gota d’água, de um esforço sobre outro esforço, de um sacrifício sobre o outro sacrifício. E é improstituível juiz de si mesmo. ‘Joguei mal’ – diz quando não encontra o jogo. E analisa detalhadamente o porquê com a frieza de um analista que não admite concessões, nem atenuantes. Dessa vez, (…) foi o ‘rei da antecipação’”.

O Estudiantes em seguida quase emendou o título continental com nova conquista nacional, ficando no vice do Metropolitano de 1968 para o San Lorenzo. Assim, após dois anos Malbernat voltou à seleção, embora sem sorte em reencontros contra brasileiros: perdeu de 4-1 em 7 de agosto e por 3-2 quatro dias depois. Em paralelo, via pela frente como pincharrata um Manchester United glorificado como primeiro time inglês campeão europeu, dez anos após sua tragédia aérea em Munique. Os britânicos, porém, não tiveram vez na Argentina, com Malbernat tendo uma atuação ofensiva medíocre, mas uma defensiva impecável para anular a estrela George Best. Sem violência: o Manchester Evening Reviews, para o jogo da volta, descreveu cada jogador argentino, sem poupar a dupla Bilardo e Pachamé como, respectivamente, one of their hardest players e another hard player ao passo que El Cacho foi elogiado como a fine player.

Ao fim, os argentinos seguraram o 1-1 em ambiente de violência proporcionada não por eles e sim pelos gentlemen ingleses, conforme reconhecido até pelo Jornal do Brasil. Malbernat seguiu na seleção para mais quatro jogos naquele ano na virada de novembro para dezembro: contra o Chile, um 4-0 em Rosario e uma derrota de 2-1 em Santiago pela Copa Carlos Dittborn (uma Copa Roca entre ambos), além de um 1-0 na Polônia e um 1-1 com a Iugoslávia vice-campeã europeia, ambos em Mar del Plata. Sobreveio em fevereiro de 1969 novo título internacional com o Estudiantes, na esquecida Copa Interamericana, tira-teima com o vencedor da CONCACAF (o Toluca, batido por 2-1 em pleno Estádio Azteca). Em março e abril, Malbernat atuou mais duas vezes pela Argentina, ambas em amistosos com o Paraguai, em 1-1 em Rosario e 0-0 em Assunção. Depois, veio o bi da Libertadores, iniciada em maio para o Pincha.

Malbernat não era perfeito e teve atuação descrita como insegura na semifinal (onde o campeão adentrou diretamente) contra a Universidad Católica, mas recuperou-se na decisão contra o Nacional, sedento para vencer pela primeira vez o torneio após dois vices em contraste com os três títulos já levantados pelo rival Peñarol. O oponente teve que se contentar com derrotas nos dois jogos (1-0 no Centenário, 2-0 em La Plata). Na decisão, o capitão ainda não foi exatamente soberano na antecipação, mas foi destacado por “sua tenacidade para voltar à marcação, sua firmeza para cruzar-se, sua recuperação espiritual e física, sua continuidade no jogo e na luta”, em outro registro da El Gráfico. A marcação pessoal do capitão dessa vez deu-se sobre a raposa Luis Cubilla, que deixou cicatrizes. El Cacho desconversou à revista: “se Cubilla me deixou essa marca? Veja, não sei. Depois dos jogos, que cada um fique com suas marcas… eu nunca digo contra o quê as recebo… se foi Cubilla ou qualquer outro, não interessa… não serve para nada…”.

As outras camisas de Malbernat no futebol argentino: na seleção, no Boca e como capitão do Racing (à seu lado e à sua frente, dois com passagem pelo Santos: o peruano Mifflin e o bigodudo brasileiro Manoel Maria)

Se em 1968 a violência deveu-se ao Manchester United, com o passar do tempo tornou-se lugar comum atribui-la de modo automático aos argentinos, pois o “antifutebol” virou sinônimo de time violento pelo que houve contra o Milan na edição de 1969 do Mundial. Em Milão, Malbernat não foi poupado de uma marcação descrita como vacilante em Pierino Prati. Os italianos ganharam de 3-0 e abriram o placar na Argentina. Ainda no primeiro tempo, o Pincha virou para 2-1, mas conforme não conseguia reverter a desvantagem no segundo, viu alguns de seus jogadores perderem a cabeça e atacarem os italianos. Não todos: as agressões, coibidas pelo técnico Zubeldía, partiram em especial de Ramón Aguirre Suárez e do goleiro Alberto Poletti.

Sem pachequismos para justificar a atitude deles, a El Gráfico ressalvou que “tudo tem um limite. O limite que respeitaram Bilardo, Togneri e Malbernat, para citar três exemplos desse Estudiantes que nos reclama uma crítica áspera e até irritada. Quando esse limite se supera e se leva aos extremos de violência e inconduta que alcançaram os desbordes de Aguirre Suárez, Poletti e Manera, nossa sensibilidade se nega a reconhece-los como ‘coisas do futebol”. Outra decepção viria nas eliminatórias; Malbernat não foi utilizado e Argentina foi desclassificada da Copa do Mundo. Após aqueles dois jogos contra o Paraguai em 1969, El Cacho só voltaria à Albiceleste em fevereiro de 1970, em partida não-oficial contra a seleção cordobesa, batida por 3-1. Em seguida, ele e a Argentina perderam de 3-2 para o clube Godoy Cruz naquele mesmo mês, mas no seguinte bateu o Brasil dentro de Porto Alegre, a meses do tricampeonato mundial canarinho.

Naquela partida, Malbernat, além de oferecer “descidas velozes”, teve a seguinte atuação na descrição do Jornal dos Sports: “parou Edu como quis. Apoiou como exige o futebol moderno. Muito bom”. Edu acabaria de fora do time titular no México, mas El Cacho realmente se aposentaria sem jogar uma Copa do Mundo. Meses depois, seu Estudiantes faturaria o tri da Libertadores, mas sem contar com seu capitão nos dois jogos finais. Expulso na semi com o River, o lateral pegou dois jogos de suspensão, um exagero segundo a El Gráfico – para a revista, teria pesado para a Conmebol a má impressão deixada pelo clube no Mundial de 1969. O lateral ainda jogaria mais quatro partidas pela Argentina, até outubro (derrota de 2-1 para o Brasil no Maracanã quatro dias depois do triunfo, vitória e derrota de 2-1 para o Uruguai em abril e 1-1 com o Paraguai em Assunção). Em meio a isso, seria o antagonista argentino mais lembrado pelo Feyenoord no Mundial Interclubes, ao impedir que o carrasco Joop van Daele jogasse de óculos…

Em 1971, o Estudiantes, com Malbernat titular, chegou a nova final de Libertadores, perdendo-a para o Nacional e dando adeus a um ciclo que em 1970 e em 1971 tivera como contrapeso uma certa luta pincharrata contra o rebaixamento nos torneios domésticos. O lateral então rumou primeiramente ao Boca e depois ao Racing, mas sem exibir em ambos os gigantes a ascendência e eficiência demonstrada em La Plata, pendurando as chuteiras ainda aos 29 anos. Após dez anos tentando emplacar negócios fora do futebol, voltou aos gramados como técnico do Argentino de Quilmes, na última estadia do Mate na segundona, em 1981 (dentre os comandados, o ex-colega Verón). Iniciou assim larga trajetória que variou principalmente por times menores de Paraguai, Chile e Colômbia e os principais do Equador – foi o treinador na fase de grupos do Barcelona de Guayaquil vice da Libertadores de 1990, do primeiro elenco do Audax Italiano a se classificar à Libertadores (em 1998) e no início da reestruturação do Nacional de Assunção, a partir de 2007.

Malbernat, Gabriel Flores, o ex-adversário Pat Crerand, Conigliaro, Verón pai e Eduardo Flores na recepção do United aos campeões do Estudiantes no ano passado, cinquenta anos após as hostilidades locais
https://twitter.com/martinmazur/status/1043134098217336836

Atualização em 9 de agosto de 2019: nessa data, infelizmente, Cacho Malbernat nos deixou. Lamentado continente afora, foi velado no estádio ainda em reconstrução do Estudiantes, na presença de velhos colegas e da própria taça do Mundial de 1968. Eis algumas homenagens:

https://twitter.com/escobasybidones/status/1160284963138351106
https://twitter.com/EdelpOficial/status/1160254776308842497
https://twitter.com/EdelpOficial/status/1160551003458064384
https://twitter.com/FEFecuador/status/1160202224183709699
https://twitter.com/CDF_cl/status/1160342477066375168
https://twitter.com/audaxitaliano/status/1160201579754139649

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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